Indulto de Bolsonaro tem desvio de finalidade e cunho eleitoral, afirmam juristas
Foto: Reprodução/Youtube/Canal Jair Bolsonaro
O perdão da pena, decretado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL-RJ) nesta quinta-feira, 21, ao deputado federal aliado Daniel Silveira (PTB-RJ), após condenação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no dia anterior, sofre questionamentos da comunidade jurídica.
Daniel Silveira foi condenado a oito anos e nove meses de prisão pela Corte Suprema. Os crimes foram uso de violência ou de ameaça para obter vantagem em processo judicial (coação no curso do processo) e de incitação à tentativa de impedir o livre exercício dos poderes.
NESTA REPORTAGEM
Impessoalidade
“O sentimento é de revolta. A sensação que aferi é de completo espanto sobre o quanto se ultrapassou do grau de limite do que é respeito à Constituição”, diz o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho. Para ele, é evidente que o caráter da impessoalidade foi desconsiderado.
“Bolsonaro não decidiu dar Graça a uma pessoa por critérios que a Constituição prevê. Ele faz um uso político. Ele concede para um aliado ideológico e político dele, ferindo os institutos da Graça ou Indulto”, afirma Botelho.
Conhecido no jargão jurídico como desvio de finalidade, o tema foi recorrente nas rodas jurídicas em pleno feriado de Tiradentes.
Agressão à democracia
Foto: Maryanna Oliveira/Câmara dos Deputados
“Dizer o quê? Foi o ato mais grave de agressão à democracia cometido por Bolsonaro. Ao conceder a Graça ao deputado, Bolsonaro ofende o STF. Há nítido desvio de finalidade. Se o STF decidiu quais os atos que ferem a democracia, o presidente não pode ser o superintérprete”, declara Lenio Luiz Streck, professor titular das universidades do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Estácio de Sá (Unesa) e da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
O advogado Arruda Botelho vê na iniciativa do mandatário “uma completa afronta” ao STF.
“Do ponto de vista macro, é, sim, uma prerrogativa do presidente da República, de forma exclusiva, monocrática, conceder Indulto ou Graça. Mas, o caso concreto (o do deputado Silveira) pode se analisar sob vários aspectos, de várias óticas, o quanto é ilegal a decisão do Bolsonaro”, analisa.
Processo em andamento
Apesar de em seu decreto Bolsonaro fazer constar que a Graça concedida a Silveira é “incondicionada e será concedida independentemente do trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, o tema é controverso.
Além do já citado desvio de finalidade, o criminalista Botelho vê uma ilegalidade muito clara no fato de o processo não ter sido concluído. “Jamais poderia se conceder Indulto ou Graça em uma decisão que ainda é passível de recurso. Os advogados do Daniel certamente irão entrar com recurso no STF para discutir a questão”, registra.
Para Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional, Fundamentos de Direito Público e Teoria Geral do Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Bolsonaro “se põe como guardião da Constituição, seu intérprete final, papel que cabe ao STF”, com a sua concessão de Graça ou Indulto individual.
Foto: Igor Sperotto
“Só no nazismo o chefe do Executivo era o guardião da Constituição. Gravíssimo atentado à democracia constitucional”, assevera.
Inelegível
Gustavo Binenbojm, especialista nas áreas de direito constitucional, administrativo e regulação econômica e professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) afirma que, mesmo se considerada válido, a Graça de Bolsonaro teria apenas efeito primário, ou seja, poderia somente livrar Silveira da prisão.
De forma secundária, explica Binenbojm, a inelegibilidade do parlamentar se mantém. É uma penalidade derivada, que não tem natureza penal. Assim, Silveira não pode concorrer nas eleições deste ano, apesar das hostes bolsonaristas e do próprio presidente entenderem o contrário.
O professor da UERJ também vê desvio de finalidade no ato de Bolsonaro. “Chamou a atenção o uso como instrumento político. É a utilização de um instrumento lícito para uma atividade ilícita do ponto de vista constitucional”, critica.
Binenbojm frisa que tanto a Graça quanto o Indulto são instrumentos utilizados em casos como o de apenados com saúde fragilizada ou que já cumpriram grande parte de suas sentenças, e que têm caráter humanitário. Inclusive, exemplifica, há pareceres de Conselhos Penitenciários para ajudar na decisão.
Narrativa eleitoral
Botelho é taxativo sobre a medida tomada por Bolsonaro. “Ele fez o que fez sabendo que o Supremo pode tecnicamente revogar sua decisão para inverter a narrativa e dizer que estão intervindo em uma prerrogativa do presidente, uma prerrogativa constitucional”.
Na opinião de Botelho, “a iniciativa é um movimento maior do que conceder a Graça para Daniel. É retornar a setembro do ano passado, quando Bolsonaro ameaçava uma ruptura institucional, ameaçava não atender decisões judiciais. É um retorno a uma construção autocrata, antidemocrática do governo. Para mim, nada é por acaso. É o começo de uma construção narrativa eleitoral do presidente”, afirma.
Como uma sintonia, logo após a live em que o presidente anunciou sua decisão, as redes sociais foram tomadas por perfis se utilizando de declarações antigas dos ministros do STF Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes que faziam alusão ao fato que indultos são prerrogativas do presidente da República.
De fato, em 2019, o próprio STF já decidiu isso. O presidente da República pode conceder indultos sem que sofra interferências do Judiciário.
Gustavo Binenbojm acredita que, agora, para decidir diferente, o STF “vai ter que ir a fundo no que eu entendo ser um claro desvio de finalidade”.
Para ele, o real objetivo de Bolsonaro foi beneficiar um aliado em um claro desrespeito a uma decisão de dez votos contra um no STF. “O que diria Bolsonaro se Dilma indultasse todos os condenados pelo Mensalão? Registro que o histórico é de benefício de detentos nos decretos de indulto de Natal e é falsa a ideia de que houve uma comoção na sociedade”, conclui ao se referir à condenação de Daniel Silveira.
O que é instituto da Graça
A Graça se dirige a um indivíduo determinado condenado por crimes comuns. Ela pode ser pedida pelo preso, pelo Ministério Público, por conselho penitenciário ou por autoridades administrativas. A possibilidade do perdão de penas judiciais se embasa no Artigo 84, inciso 12, da Constituição Federal. Segundo o regramento, é uma competência exclusiva do presidente da República.
Na história do Brasil, os indultos são tradicionalmente concedidos por ocasião do Natal. Mas duas exceções ficaram especialmente registradas na imprensa.
No ano de 1945, foram beneficiados integrantes da Força Expedicionária Brasileira (FEB) que praticaram crimes na Itália.
Em 1960, por considerar a transferência da capital da República do Rio de Janeiro para Brasília um “acontecimento de singular relevância para a Nação Brasileira”, o presidente Juscelino Kubitschek concedeu perdão a mais de 2 mil sentenciados primários com penas de até três anos.
Já em 1962, o presidente João Goulart decidiu que não iria mais conceder indulto ou comutação de penas sem pareceres favoráveis do Conselho Penitenciário. Dois anos após, Jango, como era conhecido, foi deposto pelos militares que ficaram à frente da nação durante 21.