O caso Richtofen e a violência em família
Foto: Luara Leimig/TV Vanguarda/ Reprodução
Os assassinatos do engenheiro Manfred von Richthofen, 49 anos, e de sua mulher, a psiquiatra Marísia, 50 anos, durante a madrugada de 31 de outubro de 2002, no Brooklin, bairro nobre de São Paulo, suscitaram à época todo tipo de teses para enquadrar o comportamento de jovens que matam os pais. Concebido pela filha do casal, Suzane Louise, então com 19 anos, o crime foi executado pelos irmãos Daniel Cravinhos de Paula e Silva, 21, namorado de Suzane, e pelo irmão dele, Christian, de 26 anos. Planejado em detalhes e concretizado com frieza, o crime chocou menos pela violência do que pela motivação alegada pela jovem: Suzane decidiu eliminar os pais porque eles eram contra seu namoro com Daniel. Livre dos pais, ficaria com o namorado, com a casa da família e a herança estimada em US$ 1 milhão. Em sua confissão, perguntou ao delegado como poderia vender a casa dos pais e deixou escapar a sentença que, para alguns especialistas, pode ser o fio da meada: “Matei por amor”. A reportagem a seguir é uma repercussão do caso junto a especialistas sob o ponto de vista da violência em família e foi publicada originalmente na edição de dezembro de 2002 do Extra Classe.
Assassinatos em família sempre foram um prato cheio para a psiquiatria – e para os meios de comunicação. A cada barbárie cometida na sala de jantar, especialistas são desafiados a estabelecer o que acontece na cabeça de um jovem, pobre ou de classe média, para que ele concretize o impulso de exterminar pais, irmãos, ou avós, como quem remove um obstáculo que se interpôs entre ele e o objeto do seu desejo – ou do seu desejo de consumo.
Transtorno de personalidade ou psicopatia são os conceitos mais citados pelos médicos para definir os assassinos de pai e mãe. Para alguns especialistas, no entanto, é preciso retroceder um pouco mais no histórico de violências cometidas todos os dias contra crianças e adolescentes no âmbito de famílias desestruturadas para tentar entender o fenômeno.
O psiquiatra forense e professor do curso de especialização da Faculdade de Ciências Médicas de Porto Alegre, Rogério Alves da Paz, afirma que o comportamento de Suzane nos dias que se seguiram ao crime é sintomático.
“Enquanto os pais viajavam, ela vivera um período de liberdade. Após o crime, disse que matou por amor. Se queria se libertar da censura dos pais e ficar com o namorado, por que não fugiu com ele? Porque tinha o ganho da herança”.
Segundo o psiquiatra, um dos traços de comportamento que caracteriza a psicopatia é a “ação em favor de um objetivo”, ao contrário da psicose (loucura), que não tem ganho na realidade.
“Quanto mais psicopata o sujeito é, menos os outros percebem. Isso porque a pessoa que desenvolve esse comportamento, que não é uma doença, joga areia nos olhos dos outros, usa a lábia e a sedução para atingir seus objetivos e age de forma dissimulada. Ela tem noção da realidade, do certo e do errado, embora seja incapaz de formular juízo moral. Não tem limites sociais, ultrapassa todas as barreiras. Mas como tem noção de que isso é errado, age de forma dissimulada”, define.
O médico assinala que, depois de chorar no velório dos pais, Suzane promoveu uma festa de aniversário junto à piscina da casa onde os pais foram assassinados.
O gatilho da violência
Analisar o comportamento da jovem de forma isolada, na opinião do médico, ajuda a entender o caso von Richthofen. Ele adverte, porém, que é impossível enquadrar os assassinos de pai e mãe em um único perfil.
“Cada caso tem o seu contexto e pode ter sido motivado por diversos fatores como dependência química, doença mental, traumas psíquicos, depressão, psicose, embora esses crimes comumente estejam associados a algum grau de desestrutura familiar”.
Rogério lembra que abusos cometidos contra crianças e adolescentes, em alguns casos, podem ter sido muito maior do que a violência desencadeada contra os pais. Funciona como um dispositivo que é armado durante a infância e que vai explodir durante a adolescência.
“A violência é disseminada. Vai da violação sexual ao abuso de autoridade em defesa de conceitos como ‘educação’ e ‘limites’.
A intensa rigidez afetiva e o amor opressivo dos pais pode levar os filhos à perda da capacidade crítica, ao distanciamento da realidade e à total ausência de afeto. O amor opressivo dos pais, na verdade, é um desamor, pois leva ao embotamento dos sentidos”, alerta.
As fantasias de morte em relação aos pais são comuns em determinado período da vida de qualquer pessoa. Trata-se de um impulso inconsciente que tende a desaparecer ao longo da vida para a maioria saudável.
“A saúde mental faz com que isso permaneça somente como fantasia. Mas, em alguns casos, esse desejo não é refreado”.