JUSTIÇA

Bahia revisa programa de proteção a testemunhas após assassinato de líder quilombola

Secretário diz que já havia ameaças contra Mãe Bernadete Pacífico assassinada dia 17 e que todos os protocolos de proteção a testemunhas são revisados
Por Gilson Camargo / Publicado em 21 de agosto de 2023
Bahia revisa programa de proteção após assassinato de Mãe Bernadete

Foto: Conaq/ Divulgação

Líder quilombola estava no programa de proteção a testemunhas do governo da Bahia e mesmo assim foi assassinada

Foto: Conaq/ Divulgação

O governo da Bahia está revisando todos os protocolos de proteção de defensores de direitos humanos, após o assassinato de Maria Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete.

A mãe de santo e liderança quilombola foi assassinada na última quinta-feira, 17, dentro de casa no Quilombo Pitanga dos Palmares, no município Simões Filho (BA).

De acordo com o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, Felipe Freitas, equipes do governo estadual e do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania estão atuando juntos para discutir com os órgãos de segurança pública o aperfeiçoamento dos programas de proteção.

“A morte de uma defensora de direitos humanos é uma tragédia, ainda mais se ela já tenha sido ameaçada. O governo federal e o governo da Bahia estão revisando, obviamente não só na Bahia, como em todo o Brasil, todos os protocolos de proteção. Uma tragédia como essa precisa fazer com que a gente aprimore o programa, aprimore as medidas de proteção, aperfeiçoe as ações de policiamento em todo o país”, ressaltou.

Segundo Freitas, as equipes estão em campo, reforçando a segurança de ativistas da comunidade e da região. Familiares de Mãe Bernadete foram retirados do Quilombo Pitanga do Palmares como medida de proteção.

Em nota publicada no sábado, 19, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania informou que a Coordenação-Geral do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos estará na Bahia para “cumprir agenda voltada ao fortalecimento do programa de proteção no estado”.

Os representantes do governo federal farão visitas a comunidades ameaçadas e querem reunir informações para a reformulação dessa política pública.

No âmbito federal, fica a cargo da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos a articulação entre os diversos órgãos e entidades.

O programa, no entanto, é implementado por meio de convênios realizados com governos estaduais que, por sua vez, celebram parcerias com organizações da sociedade civil.

Na Bahia, o programa estadual é executado por meio da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, que conta com uma entidade da sociedade civil como equipe técnica para garantir os atendimentos.

“O mais importante, nesse momento, é a prioridade nas investigações. Porque o primeiro passo de uma profunda revisão dos programas de proteção passa por encontrar, efetivamente, quem foram os executores de Mãe Bernadete. Toda a Polícia Civil está mobilizada. Nossa obrigação é oferecer uma resposta para esse caso e qualificar ainda mais a política de prevenção à violência e de proteção de pessoas que se acham ameaçadas”, disse o secretário Felipe Freitas.

Segurança no quilombo

Bahia revisa programa de proteção após assassinato de Mãe Bernadete

Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Freitas: “uma tragédia como essa precisa fazer com que a gente aprimore o programa, aprimore as medidas de proteção, aperfeiçoe as ações de policiamento em todo o país”

Foto: Redes Sociais/ Reprodução

Atualmente, na Bahia, estão sob proteção 94 defensores de direitos humanos como quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais. Outros 25 casos estão sob análise.

“O Brasil é um país muito violento. Infelizmente, estados que têm riquezas naturais, ativos minerais importantes, são objetos de disputas muito intensas entre o poder econômico e comunidades tradicionais. A Bahia é um dos estados com maior número de comunidades indígenas e comunidades quilombolas e isso certamente faz com que haja, em torno dos direitos territoriais dessas comunidades, uma forte disputa”, explicou.

Levantamento da Rede de Observatórios de Segurança, realizado com apoio das secretarias de segurança pública estaduais e divulgado em junho deste ano, já apontava a Bahia como o segundo estado do Brasil com mais ocorrências de violência contra povos e comunidades tradicionais.

Atrás apenas do Pará, a Bahia registrou 428 vítimas de violência no intervalo de 2017 a 2022.

Mãe Bernadete estava no programa de proteção desde 2017, quando seu filho, Binho do Quilombo, foi assassinado.

Câmeras de segurança foram instaladas na casa da mãe de santo e a Polícia Militar fazia rondas no Quilombo Pitanga do Palmares.

Segundo Freitas, ela recebia visitas diárias da escolta, às vezes mais de uma por dia, em diferentes horários, e tinha o contato telefônico dos comandantes da região.

“Além disso, ela foi atendida, em maio, por uma equipe interdisciplinar que fez uma entrevista em profundidade com ela para poder fazer uma atualização das avaliações de risco”, disse o secretário de Justiça e Direitos Humanos, explicando que não houve mudança de cenário que pedisse reforço na segurança recentemente.

“Em que pese, nas falas que ela fazia, referir-se ao tema da ameaça como um problema permanente nas comunidades e fosse muito enfática na manifestação pelo julgamento dos assassinos do seu filho, ela não relatou para as equipes, nos relatórios que nós temos, nos contatos diários com a polícia, algo específico que pudesse ensejar uma outra medida”, explicou.

Líder combatia racismo e exploração econômica

Bahia revisa programa de proteção após assassinato de Mãe Bernadete

Foto: Janaína Neri/EBC

Casa da Mãe Bernadete, liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, assassinada na Bahia

Foto: Janaína Neri/EBC

De acordo com o secretário de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, existem várias linhas de investigação em curso e nada foi descartado ainda.

“A gente não sabe de qual tipo de atuação de Mãe Bernadete decorreu a execução”, disse, explicando que a combatividade de defensores de direitos humanos é causa de incômodo “a certos poderes econômicos que querem, muitas vezes, violar direito dessas comunidades”.

A delegada-geral da Polícia Civil, Heloísa Brito, lidera pessoalmente as equipes na investigação sobre os executores e mandantes do crime.

“Não é possível afirmar a qual interesse Mãe Bernadete havia contrariado uma vez que ela era uma pessoa que, na sua posição de defender sua comunidade, podia estar incomodando muitas pessoas e grupos. Desde grupos ligados ao tráfico de drogas se sentiram, certamente, incomodados com a liderança de Mãe Bernadete, grupos econômicos que tinha interesse na exploração do território, os responsáveis pela morte do filho dela também podem estar muito incomodados com a sua militância”, disse Felipe Freitas.

Há ainda, a conotação de racismo religioso para o crime. Para o secretário, o racismo e a exploração econômica de grupos de territórios tradicionais geram mais vulnerabilidade para essas lideranças.

“Seja lá o que tenha sido motivação, é inevitável reconhecer que o racismo e a intolerância religiosa e que os conflitos territoriais fazem parte do contexto da vida das comunidades tradicionais”, acrescenta.

“A Polícia Civil está empregando todos os recursos necessários para a identificação e responsabilização dos autores”, afirmou a delegada Heloísa Brito. A diretora-geral do Departamento de Polícia Técnica (DPT), perita criminal Ana Cecília Bandeira, e outras autoridades se reuniram com o governador o governador Jerônimo Rodrigues (PT), no sábado, para avaliar as investigações.

A Polícia Civil instalou um grupo de trabalho multidisciplinar composto por Departamentos e Coordenações especializados para a apuração do caso. Ações investigativas em campo e de inteligência policial são realizadas com a utilização de recursos tecnológicos.

Defensores da democracia

Com história de ativismo e produção acadêmica ligados ao movimento negro, Felipe Freitas conhecia Mãe Bernadete há mais de 16 anos e, segundo ele, o sentimento pessoal e coletivo é de consternação com o crime brutal.

A líder quilombola foi executada com tiros no rosto enquanto via televisão com dois netos e mais duas crianças na sala de sua casa e terreiro religioso.

“Nós não estamos aqui tratando apenas do nosso dever, da nossa obrigação de servidores públicos de investigar e elucidar a morte de uma cidadã baiana que foi vítima de uma violência brutal. Nós estamos também aqui investigando a morte de uma amiga, de uma pessoa que era aliada nossa, aliada dos nossos interesses comuns no campo dos direitos humano”, disse Freitas, contando que ela integrou conselhos de direitos do governo da Bahia e participou ativamente de iniciativas de programas governamentais.

Mãe Bernadete também era dirigente da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e ex-secretária de Promoção da Igualdade Racial de Simões Filho.

O secretário Felipe Freitas lembrou que defensores de direitos humanos e lutadores sociais compõem um papel fundamental na vida democrática.

“Uma pessoa como Mãe Bernadete cumpria um papel importante na vida daquela comunidade, não só porque ela lutava por direito, mas porque ela, na prática, era alguém que lutava por serviços públicos muito práticos, que fazia acolhimento de famílias, que ouvia pessoas, que intermediava o acesso das pessoas aos serviços públicos, que favorecia a entrada do poder público no local. Isso é uma coisa que é fundamental para a vida democrática e é obrigação do Estado brasileiro reforçar, intensificar, qualificar e aprimorar as medidas de proteção de pessoas como ela”, destacou.

Território quilombola

Na última década, pelos menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas, segundo levantamento divulgado pela Conaq. “A maioria das vítimas liderava territórios quilombolas. Os assassinatos ocorreram dentro dos quilombos e com uso de armas de fogo”, destaca o documento.

Os estados com maior número de assassinatos são Bahia (11), Maranhão (8) e Pará (4). Há casos registrados em Pernambuco, Paraíba, Minas Gerais e Alagoas.

“O caso de Mãe Bernardete se junta a esses assassinatos que estão sem resolução nenhuma. Essa situação é muito grave. Trinta pessoas tiveram as vidas ceifadas ao longo dos anos. Queremos cobrar do Estado brasileiro uma posição. Não dá para o Sistema de Justiça ignorar as violências que acontecem nos territórios quilombolas”, afirma coordenador da Conaq, Denildo Rodrigues, em nota divulgada pela coordenação.

Para Rodrigues, a maioria dos assassinatos está relacionada a pressões sobre os territórios quilombolas. “Existe uma disputa por terra muito ferrenha da qual nós negros e negras, apesar de estarmos nos territórios há mais de 400 anos, foi negado a nós o direito à terra. Isso é fruto do racismo fundiário que existe no país e esse racismo é responsável por deixar pessoas longe da terra”, aponta.

*Com Agência Brasil e Secom Bahia.

Comentários