Apenas 13,3% dos denunciados por trabalho escravo foram condenados na região Sul
Foto: Auditoria-Fiscal do Trabalho/MTE e MPT-RS
“O primeiro resgate que fiz, no setor pecuário, em Quaraí, o empregador me falou com essas palavras: ‘eles não são gente como nós’”, contou Aline Galvão, auditora-fiscal do trabalho há 11 anos, que participou de diversas operações de fiscalização no Rio Grande do Sul. Dentre elas, Aline participou da que ocorreu em março deste ano, em dois arrozais de Uruguaiana, fronteira do Brasil com Argentina, onde foram libertados 85 trabalhadores, sendo 11 adolescentes.
“Me afetou muito ver adolescentes, meninos de 14, 15 anos, trabalhando nessas condições. É impossível não pensar nos seus filhos e nos filhos dos empregadores, né? Que estão em uma situação completamente diferente”, expressou a auditora em entrevista para a reportagem. Ela contou os detalhes da operação que resultou em indenizações de mais de R$ 9 milhões pelos trabalhadores.
No dia 10 de março, Aline disse que saíram para a fiscalização ela e outro auditor-fiscal, um procurador do trabalho e uma equipe de policiais federais para fazer a segurança. Eles imaginavam que encontrariam em torno de 10 ou 12 pessoas no local. A fazenda fica a pouco mais de 40km do centro de Uruguaiana — não é um local de difícil acesso. O nome da propriedade é Agropecuária Santa Adelaide, local que já foi alvo de outros processos judiciais.
A denúncia, anônima, falava sobre condições péssimas de trabalho, sem fornecimento de comida ou local para fazer refeições. Tinham notícia, também, de que havia menores de idade trabalhando junto no combate ao arroz vermelho — uma planta indesejada no processo de multiplicação das sementes de arroz branco.
“Nós chegamos umas onze e pouco da manhã, beirava os 40 graus e já nos deparamos com diversos trabalhadores tentando se abrigar do Sol na sombra de uns eucaliptos”, conta Aline.
No entorno, disse ela, os auditores encontraram restos de comida jogados ao chão. Alguns trabalhadores explicaram que traziam comida de casa — cedo da manhã — e, muitas vezes, as refeições apodreciam antes do meio-dia. Não havia geladeira, banheiro, nem água disponível.
Preso em flagrante, solto em seguida
Um dos intermediários, responsável pela contratação de parte dos trabalhadores, apareceu no momento da fiscalização tentando entender o que estava acontecendo. Ele foi preso em flagrante.
“Foi solto no dia seguinte, acredito”, comenta Aline. Não havia motivos para ficar preso. Assinou, assim como o outro intermediário e o responsável pelas fazendas, Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público do Trabalho.
O responsável pela granja Santa Adelaide, Jorge Milano Bergallo, não teve responsabilidade reconhecida pelos auditores-fiscais. Bergallo foi condenado pelo STJ em 2020 pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, artigo 149 do Código Penal. O crime, porém, prescreveu.
A fiscalização ocorrera em 2009 na mesma fazenda, e a primeira sentença condenatória saiu tarde demais, em 2016. Ou seja, apesar de ter sido condenado em todas as instâncias, a prescrição fez com que, legalmente, Jorge seja inocente.
“Ao longo dos depoimentos, percebemos que o dono da Granja não era o empregador. O empregador era efetivamente a Basf”, disse Aline. A propriedade mantinha um contrato com a Basf, multinacional do setor químico, de materiais, grãos e agrotóxicos, que, por sua vez, contratava serviço de um engenheiro agrônomo terceirizado, responsável técnico da produção. O engenheiro recebia e repassava uma parte do dinheiro para os dois intermediários — “gatos” — que gerenciavam os trabalhadores.
Na Serra Gaúcha, mais antecedentes de violação
Cerca de 15 dias antes da operação de Uruguaiana, no final de fevereiro, 210 trabalhadores trazidos da Bahia foram libertados por auditores-fiscais na Serra Gaúcha, ponta norte do RS.
Os noticiários ferveram com os depoimentos horríveis sobre o cativeiro, as ameaças e a violência física sofrida por aqueles homens. O empresário que comandava a empresa terceirizada em benefício das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton foi preso em flagrante, mas pagou fiança para responder em liberdade. Logo descobriu-se que ele já havia tido outra empresa auditada e já punida por diversas irregularidades trabalhistas.
O quão comum é essa aparente impunidade? Ao longo de quatro meses, a reportagem se debruçou sobre números e relatórios relacionados ao trabalho escravo moderno, voltando a atenção ao RS. O objetivo foi compreender essa trágica continuidade histórica e, principalmente, qual a responsabilização dos empregadores.
Apesar de ser uma punição digna de um crime contra a liberdade e a dignidade humana, a reportagem descobriu que quase ninguém vai preso por explorar trabalho análogo ao escravo no Brasil.
Raio-X das ações judiciais no país revela impunidade para trabalho escravo
“É difícil conceber que, em 3.450 operações de fiscalização realizadas no período de 2008 a 2019, com o resgate de 20.174 trabalhadores contabilizados neste estudo, somente se atribua responsabilidade penal a apenas 112 pessoas”
As palavras são da conclusão do único relatório extensivo sobre os processos judiciais envolvendo trabalho escravo moderno no país, o “Raio-X das Ações Judiciais de Trabalho Escravo”, elaborado pela Clínica do Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (CTETP) e a Clínica de Segurança Pública da UFMG.
O arquivo PDF está disponível em um local escondido do portal gov.br, inclusive com uma descrição pouco (ou nada) explicativa.
Conforme o texto, “das pessoas que foram acusadas da prática do crime de redução à condição análoga à de escravo, no período de 2008 a 2019, 1% (N=27) pode expiar pena privativa de liberdade”. Ou seja, a cada 100 pessoas denunciadas pelo Ministério Público Federal, somente uma tem chance de ir para a prisão.
“Para ver o quanto isso é triste e assustador: percentualmente, é mais provável dois trabalhadores serem presos por furtarem alimentos do dono da fazenda, do que o dono ser preso por reduzir trabalhadores a condição análoga à escravidão”, expressou Lívia Mendes Moreira Miraglia, professora adjunta de Direito do Trabalho da UFMG e coordenadora da CTETP, em entrevista à reportagem.
No panorama nacional, a prescrição, como no caso da fazenda Santa Adelaide, correspondeu a 5,58% dos casos analisados. “Normalmente, as pessoas processadas têm acesso a bons advogados, têm uma condição financeira melhor e vão conseguir usar a favor delas os recursos, inclusive a mora do judiciário”, comentou ela. Os processos criminais levaram, em média, quase quatro anos da denúncia até o trânsito em julgado.
“De fato, há ainda uma grande impunidade”, frisou a profesora. “É um crime que, talvez, ainda esteja compensando.”
A diferença no percentual de condenação para a efetiva possibilidade de prisão reside no fato de que a maior parte das penas, por terem duração entre 2 e 4 anos, é revertida para penas alternativas, como serviços comunitários e multa.
Segundo Lívia, até hoje a Clínica só ficou sabendo de uma única pessoa presa pelo crime do art. 149, em Minas Gerais. “E o que é tragicômico, é que essa pessoa possivelmente só foi presa porque não recorreu”, disse.
“Há um déficit, digamos assim, de resposta penal do Estado. Eu não tenho dúvida”, afirmou o procurador da República Pedro Henrique Oliveira Kenne da Silva, do Ministério Público Federal do RS (MPF-RS), integrante do GACEC-TRAP, Grupo de Apoio ao Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, em conversa com a reportagem. Segundo ele, é necessário que as equipes de fiscalização intensifiquem a coleta de provas durante a operação. Fotos e vídeos são essenciais para um resultado melhor nos tribunais.
Provas insuficientes são a razão de 46% das absolvições penais
A maior taxa de condenações de réus em casos julgados entre 2008 e 2019, segundo o estudo, foi de 17,3%, no Tribunal Federal da 3ª Região (TRF3), abrangendo São Paulo e Mato Grosso do Sul. Os estados do RS, Santa Catarina e Paraná integram a jurisprudência do TRF4, cujos números foram um pouco inferiores: 13,3%.
Como comparação, segundo o mesmo documento, a média mundial de condenações pelo total de denunciados criminalmente é de 60%.
O problema é tão estrutural que chegou ao Supremo Tribunal Federal em 2021. O tema 1158 definirá qual o “standard probatório” — a quantidade mínima de evidências para uma condenação -, que afetará a importância dada às provas coletadas no momento da fiscalização, e se “diferenças regionais” podem justificar condições precárias de trabalho.
Segundo o procurador Pedro Kenne, é raro que o STF se debruce sobre as provas de um processo, e, por isso, o caso merece atenção. A decisão a ser tomada pelos ministros terá repercussão em todo judiciário brasileiro.
As dificuldades relatadas pelos procuradores já eram evidenciadas pelo relatório da Clínica do Trabalho Escravo. As principais razões de absolvição de réus no âmbito penal são por prova insuficiente, do crime e de autoria, seguido de atipicidade (quando juízes consideram que o caso relatado não é o crime que foi denunciado).
Em decisão de 2020, a 7ª Turma do TRF4 negou chance de recurso ao MPF, que queria a condenação do fazendeiro Aparecido Christofolli no caso de 13 paraguaios que estavam sendo despejados, em situação precária de moradia, sem recursos para se comprar comida ou voltar ao país de origem.
Em seu voto, a desembargadora Salise Monteiro Sanchonete considerou que o caso delineava perfeitamente o que é chamado de “escravidão moderna”.
A relatora, Claudia Cristina Cristofani, porém, foi na direção oposta: a magistrada acusou os padrões de dignidade propostos pelas normas trabalhistas de “elevados e irrealistas”.
Sanchonete foi vencida por 2 votos a 1, e o réu foi absolvido em definitivo.
“A Secretaria de Inspeção do Trabalho não faz esse acompanhamento”
A reportagem solicitou, via Lei de Acesso à Informação, acesso a relatórios e levantamentos relacionados ao trabalho escravo moderno e desfechos de processos no tema.
As solicitações variaram na formulação e foram feitas ao Ministério do Trabalho e Emprego, ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Nacional do Ministério Público, ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, ao Tribunal Superior do Trabalho e aos Ministério Públicos do Trabalho e Federal da 4ª Região.
Nenhum dos órgãos tem relatórios ou levantamentos próprios sobre o tema. A indicação comum foi a de consultar as plataformas Radar SIT e o Observatório de Erradicação do Trabalho Escravo.
Sobre os desfechos judiciais, a Secretaria de Inspeção do Trabalho, responsável pelas fiscalizações, não faz esse acompanhamento. A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete), sediada no Ministério dos Direitos Humanos, também não.
Segundo contou o procurador Pedro Kenne, somente a partir de 2020 passaram a ser registradas as decisões judiciais em banco de dados, sendo possível aos integrantes do judiciário consultarem os processos por assunto e analisarem seus desfechos.
Foi o que informou, também, o Conselho Nacional de Justiça para a reportagem em resposta à solicitação via Lei de Acesso. Apesar de existir esse registro interno ao judiciário, não há dados consolidados de sentenças disponíveis.
Nem o Conatetrap (Comitê do Conselho Nacional do Ministério Público voltado ao tema) tem informações de desfechos judiciais possíveis de serem consultadas.
Conseguir essas informações sobre processos e seus desfechos foi um desafio também para a Clínica de Trabalho Escravo. “Não é uma tarefa fácil. A gente chegou a ir em cada Tribunal Regional Federal para conseguir os dados”, contou Lívia Miraglia.
Todos os pedidos de informação feitos pela reportagem e as devidas respostas estão disponíveis online.
A justiça possível
As principais vitórias das vítimas costumam ocorrer na esfera trabalhista. Seja por via judicial ou por acordo extrajudicial, com o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), a principal responsabilização de empregadores identificada pela reportagem foi pecuniária — no bolso.
Na esfera administrativa, os auditores-fiscais do trabalho calculam e cobram os valores de rescisão dos contratos informais de trabalho que existiam, enquanto na esfera trabalhista são cobrados danos morais individuais e coletivos, em reparação aos trabalhadores e à sociedade.
A reportagem fez um levantamento dos valores nos últimos anos baseado em dados disponíveis nos relatórios de fiscalização recebidos via LAI e documentos obtidos junto ao MPT-RS: só em 2023, foram mais de R$ 17,5 milhões em reparações no RS.
Ainda assim, a frustração existe em quem está na linha de frente desse enfrentamento.
“Muitas vezes, quem rouba — nem rouba, né? -, quem furta um leite para alimentar uma criança que tá passando fome, costuma ter penas muito mais duras”, compara Aline Galvão.
“Mas isso não pode deixar a gente desanimado de fazer nosso trabalho. É um trabalho pesado emocionalmente, fisicamente, mas que transforma, naquele momento, a realidade do trabalhador, que é nosso principal objetivo.”, diz a auditora-fiscal do trabalho.
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Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2023.
O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.