Empregadores do RS arcaram com mais de R$ 17,5 milhões em reparações por trabalho escravo no primeiro semestre
Foto: Auditoria-Fiscal do Trabalho/MTE e MPT-RS
O início do ano foi marcado pelo aumento no número de flagrantes de trabalho escravo moderno no país. No primeiro semestre, as equipes de auditores-fiscais do trabalho resgataram 1443 pessoas em situação análoga à escravidão no Brasil, 304 delas no Rio Grande do Sul.
O estado gaúcho foi o segundo colocado em número de pessoas resgatadas em operações no ano, atrás somente de Goiás, 390. Os dados são do Ministério do Trabalho e Emprego, disponíveis na plataforma Radar SIT.
Como forma de reparação social, R$ 17,5 milhões serão pagos por empregadores envolvidos nos casos. Os valores são referentes a verbas rescisórias e danos morais nos primeiros seis meses do ano.
Para chegar nesse montante, a reportagem teve acesso aos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) firmados recentemente no RS e a relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. A reportagem planilhou os valores dos últimos três anos e está disponibilizando junto os 63 relatórios de fiscalização obtidos via Lei de Acesso aqui.
Em maio deste ano, o Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) conquistou um valor recorde como reparação social à exploração de trabalhadores em condições análogas as de escravo em um único acordo: R$ 9 milhões.
Hermano Martins Domingues foi o procurador responsável pela conclusão da investigação e pela negociação dos TACs da Basf e das fazendas Santa Adelaide e São Joaquim. Segundo informa, este é o maior acordo da história do Rio Grande do Sul.
Domingues acredita que a justiça do trabalho de Uruguaiana está conseguindo desempenhar bem no enfrentamento à escravidão moderna. “Salvo um caso, eu sempre consegui acordos com as empresas e as liminares com bloqueios de bens”, contou em entrevista à reportagem.
Fonte: Relatórios de Fiscalização/MTE
O TAC foi fechado com a corporação alemã de agrotóxicos, química, materiais e biotecnologia, Basf. O acordo foi feito de forma extrajudicial, após auditores-fiscais resgatarem 85 pessoas em condições degradantes de trabalho em duas propriedades rurais da cidade. As fazendas forneciam sementes de arroz para a gigante alemã de forma terceirizada.
Indenizações de reparação aos trabalhadores
Dos R$ 9 milhões acordados, R$ 2 milhões serão pagos em danos morais individuais aos 85 trabalhadores resgatados.
Na ponta norte do estado, na Serra Gaúcha, as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton assinaram juntas um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) onde também acordaram pagar R$ 2 milhões por danos morais individuais aos 210 trabalhadores resgatados no final de fevereiro em Bento Gonçalves. Cada trabalhador receberá R$ 9.523,80.
Os homens tinham sido trazidos da Bahia por uma empresa terceirizada pelas vinícolas. Após três vítimas conseguirem fugir do alojamento, elas denunciaram um cotidiano de ameaças e violência física.
Danos morais também à sociedade que será ressarcida coletivamente
À parte os danos morais individuais, que são pagos por empregadores aos trabalhadores afetados, os danos morais coletivos se referem a reparações feitas à sociedade como um todo.
Os recursos são pagos ao MPT-RS, que os destina para projetos sociais de reinserção e capacitação de vítimas, equipamentos e infraestrutura de fiscalização, segurança pública, saúde e assistência social.
No caso da Basf, dos 9 milhões de indenização, R$ 6,5 milhões são revertidos para pagamento dos danos morais coletivos em Uruguaiana, cidade da fronteira com Argentina. Outros R$ 500 mil serão abatidos com a compra de um veículo 4×4 para ser utilizado nas operações da auditoria-fiscal do trabalho da região. Outra parte do montante será utilizada para obras de melhoria na infraestrutura do Hospital Santa Casa de Uruguaiana.
Já na serra, as vinícolas se comprometeram a pagar R$ 5 milhões em danos morais coletivos em duas parcelas. A primeira, em janeiro de 2024, e a segunda em janeiro de 2025. Cada vinícola ficou com uma fração desses valores, sendo a Aurora a responsável pela maior cota e a Garibaldi pela menor.
Apenas nos casos de Bento Gonçalves e Uruguaiana, o valor somado de danos morais coletivos pagos por empregadores chega a R$ 12 milhões.
Em fevereiro deste ano, o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) firmou parceria com a Procuradoria Regional do Trabalho no RS (PRT4) para direcionar os recursos levantados para ações alinhadas com a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. Os valores de reparação acordados com a Basf já estão com destino previsto para o financiamento destes projetos.
Fonte: Relatórios de Fiscalização/MTE
Faltam servidores públicos para fazer as fiscalizações
Há 2 anos no MPT-RS, atuando em Uruguaiana, Domingues esteve à frente de outros acordos judiciais e extrajudiciais relacionados ao trabalho análogo ao escravo, como o de R$ 220 mil, em São Borja, e os de R$ 40 mil e R$ 50 mil em Quaraí. A grande dificuldade, segundo ele, está na falta de auditores-fiscais do trabalho e no sucateamento das instituições de fiscalização.
“Várias regiões do Brasil, principalmente as mais carentes, não têm auditor-fiscal do trabalho, ou, quando tem, eles estão extremamente sobrecarregados”, comenta. “Sem fiscalizações preventivas, se tornam mais comuns os casos de trabalho escravo pela sensação de impunidade.”
Aline Galvão, auditora-fiscal do trabalho que atuou no caso dos arrozais de Uruguaiana detalhou o problema em entrevista. “Em Uruguaiana, por exemplo, somos quatro ‘AFT’ [auditores-fiscais do trabalho], mas só três em efetiva atividade de fiscalização, um exerce a chefia”, conta.
Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho (Sinait), o número de servidores ativos na função é o menor em 30 anos. Com 3644 cargos, 46,8% deles estão vagos. O último concurso público ocorreu há mais de uma década, em 2013.
A auditora-fiscal trouxe alguns dados sobre a disponibilidade de servidores no RS. São 142 ativos, mas o número de agentes aptos a receber ordens de serviço é 104, 27% menor. “Ou seja, quando vamos olhando as estatísticas, o número de auditores que podem ir à rua é ainda mais baixo”, alerta Aline.
Após a alta de resgates neste ano, um novo concurso foi anunciado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Estão previstos 900 novos auditores-fiscais do trabalho para todo o país, pouco mais da metade dos cargos vagos.
Número incompleto
A reportagem não conseguiu acesso à íntegra dos Termos de Ajustamento de Conduta realizados no RS até o fechamento da matéria. O valor empenhado por empregadores para causas relacionadas ao trabalho escravo moderno em 2023 é, portanto, ainda maior que os R$ 17,5 mi.
Se considerado o período de janeiro de 2020 até junho de 2023, apenas com os dados obtidos pela reportagem, soma-se R$ 26.882.621,39 empenhados por empregadores para reparações relacionadas ao trabalho escravo, conquistadas pelas equipes gaúchas de auditores-fiscais e procuradores do trabalho.
A planilha de operações realizadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho no RS teve adicionado a ela pela investigação os valores de rescisão cobrados e efetivamente pagos pelos empregadores, quando constantes em Relatório de Fiscalização, e os danos morais individuais e coletivos que foram possíveis de localizar, ou que tiveram valor fornecido pelo procurador Hermano Domingues. O documento está disponível online.
Em resposta ao pedido de informações, o MPT-RS forneceu apenas uma lista dos acordos firmados, por data, de 2018 a 2023.
Nos primeiros seis meses deste ano, já foram firmados 19 Termos de Ajustamento de Conduta. A reportagem teve acesso a apenas 5.
Segundo a ouvidoria do MPT-RS, não existe um sistema que gerencie os pagamentos constantes em acordos extrajudiciais ou causas ajuizadas, de modo que não seria possível apresentar os valores exigidos e efetivamente pagos por empregadores.
Para listar os valores definidos nos documentos, é necessário aguardar o fornecimento de TACs devidamente censurados de informações protegidas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Entendendo as Proporções
A Basf teve lucro líquido (net income) de mais de 15 bilhões de euros ao redor do mundo nos últimos cinco anos. Convertido para reais, com cotação de 27/06, o valor representa R$ 78,9 bilhões.
Seria possível pagar o valor do Termo de Ajustamento de Conduta firmado com o MPT-RS, de R$ 9 milhões, todos os dias do ano, por 23 anos, e ainda não extinguir o montante do lucro líquido declarado.
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Esta reportagem foi realizada na disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da Universidade do Vale do Rio do Sinos – Unisinos, sob a supervisão da professora Luciana Kraemer, no primeiro semestre de 2023.
O Extra Classe e a Unisinos firmaram Termo de Cooperação, no início de 2022, para a veiculação no jornal de reportagens produzidas pelos estudantes da disciplina de Jornalismo Investigativo do curso de Jornalismo da instituição e o acompanhamento dos estudantes na produção das edições mensais impressas do Extra Classe.