A Justiça brasileira é desigual quando julga magistrados, diz jurista
A recente história da jornalista Schirlei Alves, condenada a seis meses de prisão e a pagar uma multa de R$ 400 mil por ter disseminado o termo “estupro culposo” em matérias produzidas para o site The Intercept sobre o Caso Mariana Ferrer é mais um exemplo entre tantos para o jurista Fábio Leite sobre como funciona a Justiça brasileira em temas relacionados à liberdade de expressão.
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Para ele, que é coordenador do grupo de Pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil (Pleb) e professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), outra faceta agrava a situação: a discrepância de tratamento entre magistrados e demais cidadão nas ações.
O contraste com a advertência aplicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ao juiz Rudson Marcos, responsável pela audiência onde a influenciadora foi constrangida por advogado em processo que defendia réu acusado de a ter estuprado, é uma das tristes realidades presenciadas por Leite.
Enquanto a atuação considerada negligente no cumprimento do cargo de juiz rendeu à Marcos a pena mais branda das sanções administrativas aos magistrados, ações promovidas por ele e pelo promotor público Thiago Carriço contra a jornalista rendeu para ela uma dupla condenação por crime de difamação contra funcionário público.
Falta de sensibilidade do STF juristas
É uma rotina que “aparentemente não sensibiliza o STF (Supremo Tribunal Federal)”, observa. Diante disso, o jurista defende que o tema seja levado em caráter de urgência para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
“A notícia sobre a condenação da jornalista, embora seja absurda, não me surpreende. Faço pesquisa sobre liberdade de expressão há pouco mais de 15 anos e há um tempo tenho alertado que precisamos falar sobre a honra dos magistrados. Porque, na teoria, se aceita a ideia de que figuras públicas, agentes políticos e servidores públicos têm uma proteção menor à honra e à privacidade do que os demais cidadãos. Mas, na prática, a honra dos juízes (que são agentes políticos) é muito, mas muito maior do que a dos demais cidadãos”, denuncia.
No último dia 18, o presidente do STF Luís Roberto Barroso disse que o Supremo “sempre” servirá como garantidora da liberdade de expressão em julgamentos na última instância.
A fala de Barroso se deu no contexto de um ofício que recebeu Associação Brasileira de Imprensa (ABI) solicitando atenção para o caso da jornalista do The Intercept.
A ABI denuncia “assédio judicial a que estão submetidos jornalistas e comunicadores, notadamente em ações movidas por membros do Judiciário”.
Magistrados recebem indenizações maiores
Leite coordenou a pesquisa A Liberdade de Imprensa no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que analisou processos cíveis movidos contra as duas maiores empresas de jornais impressos do Rio de Janeiro, a Infoglobo (O Globo, Extra e Expresso da Informação) e a Editora O Dia (O Dia e Meia Hora).
O levantamento alcançou apelações cíveis julgadas pelo Tribunal de Justiça do RJ (TRRJ) entre janeiro de 2010 e dezembro de 2016. De 221 processos vistos, sete foram movidos por magistrados. Seis foram julgados procedentes nas primeira e segunda instâncias.
“Esse dado, por si só, já deveria acender o sinal amarelo, ou mesmo o vermelho. Mas o dado mais chocante refere-se às indenizações”, diz o professor. “Há uma nítida diferenciação entre os valores determinados para o chamado cidadão comum, até mesmo políticos, com a indenização concedida à magistrados”.
Enquanto a primeira categoria recebeu em média indenizações que variaram de R$ 16.674 na Infoglobo e R$ 19.911 na Editora O Dia na primeira instância, os magistrados alcançaram R$ 58.000 em média.
Já na segunda instância, há “um aumento extraordinário”, descreve o professor. Se nos processos em recurso por não magistrados os valores não mudam muito e ficam na ordem de R$ 18.483 e R$20.320 respectivamente, nos casos de magistrados pulam de R$ 58.000 para R$ 100.000.
Vestindo a carapuça
Leite ainda apresenta dois casos que cita como exemplo de falta de sensibilidade do STF com a situação que, registra, crítica. Ambos mexem com subjetividade e indicam que pessoas estão sendo condenadas simplesmente porque alguns magistrados se sentem ofendidos.
O mais recente é o da advogada e escritora Saíle Bárbara Barreto condenada a pagar R$ 50 mil de indenização por danos morais pela Justiça de Santa Catarina.
No livro de Saíle, Causos da Comarca de São Barnabé, o juiz de Direito Rafael Rabaldo Bottan disse que o personagem “Floribaldo Mussolini” seria uma alusão a ele.
Como justificativa, entendeu que o nome do personagem era um trocadilho com o seu sobrenome “Rabaldo”, uma forma da autora humilhá-lo por discordar de suas decisões judiciais.
A defesa de Saíle acionou o STF apontando censura prévia da Justiça catarinense no caso. Ela foi ordenada a remover posts de sua página de Facebook chamada “Diário de uma advogada estressada” que criticavam as decisões judiciais de Bottan.
Não adiantou. Em outubro o STF manteve a condenação da escritora por obra e publicações contra juiz e disse que o TJSC não restringiu a liberdade de manifestação da autora.
A carapuça como objeto de estudo
O exemplo mais antigo, Leite chegou a usar como objeto de estudo. Foi a situação vivenciada pelo jornalista José Cristian Góes. Em 2013, Góes foi condenado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE) por causa da crônica ficcional Eu, o coronel em mim.
Acontece que o desembargador Edson Ulisses, então vice-presidente do TJSE, antecipando o caso da advogada Saíle se identificou também com uma das personagens.
“Eu apresentei esse caso, mudando os nomes das partes, para 100 profissionais de direito – a maioria da área criminal – para saber como eles julgariam o processo: 97 entenderam que não houve crime de injúria e apenas três condenariam o réu. No caso real, o jornalista foi condenado nas duas instâncias. O caso chegou à segunda turma do STF, mas o tribunal indeferiu o pedido do recurso”.
Góes foi condenado há sete meses e 16 dias de prisão, o Sindicato dos Jornalistas de Sergipe denunciou que a juíza responsável negou que duas testemunhas fossem ouvidas pela defesa. Uma delas o então governador Marcelo Déda, personagem chave para esclarecimento do processo que era cunhado do desembargador.
Mais uma vez, disse o professor Leite, o STF indeferiu o pedido do recurso. Ele diz não saber se no caso da jornalista Schirlei Alves, “o STF terá maior sensibilidade” por conta da repercussão do assunto que chegou a inspirar até uma lei, a 14.245/21, e uma sanção disciplinar do CNJ.
“É possível que adote outra postura. É possível, mas não saberia dizer se é provável. O caminho mais seguro me parece recorrer ao sistema interamericano de direitos humanos (Comissão Interamericana de DH e Corte Interamericana de DH)”, conclui o jurista.