Decisão do STF pode oferecer riscos à liberdade de imprensa
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF
Enquanto o acórdão não vem para detalhar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que fixa critérios de responsabilização empresas jornalísticas por divulgação de acusações falsas, muita dúvida e controvérsia há de pintar por aí. A principal polêmica é se a medida fere ou não fere as liberdades de imprensa e de expressão.
Embora o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do STF, já tenha explicado que a decisão da Corte não significa “em hipótese alguma, mudança na jurisprudência da Corte a respeito da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão”, entidades, jornalistas e profissionais do direito têm demonstrado preocupação.
NESTA REPORTAGEM
“O STF não deveria legislar. Esse é um assunto que deve ser decidido a cada caso. E aí tem uma questão: a decisão do STF não ficou clara. Ora, quando temos de discutir para saber o que diz uma decisão do STF é porque não foi uma boa decisão. Por exemplo: entrevistas ao vivo. Um problema que surge disso”, provoca Streck.
STF coloca imprensa em situação de autocensura
Na mesma linha, vai o advogado Marcelo Terra Camargo. Segundo ele afirmou ao Extra Classe, “o primeiro risco é que o STF repassou para a imprensa o papel de fazer a autocensura. Hoje, o repórter não pode noticiar qualquer coisa sem verificar a veracidade. Isso é muito complicado. Você não tem todas a provas ou todo o histórico num primeiro momento. Muitas vezes, o jornalista tem a ponta do iceberg mas não tem o caso inteiro”.
Outra situação apontada por Marcelo é a pessoa não ser condenada ou um determinado processo prescrever.
“Nesses casos não há julgamento para decidir se a pessoa é inocente ou culpada. Simplesmente, do ponto de vista legal, não se pode mais puni-la. Além disso, com o que diz o STF, o jornalista fica com a responsabilidade de fazer o crivo. Acaba a liberdade de a qualquer momento publicar que, por exemplo, um assessor que trabalha com um determinado político revelou que seu chefe pratica rachadinha, peculato, desvio ou qualquer outra forma corrupção”.
Entrevista ao vivo
Outra situação exemplificada por ele é a das situações de entrevista realizada ao vivo.
A decisão praticamente obriga o jornalista a saber previamente o que o entrevistado vai falar. Se a fonte, durante a entrevista, afirmar que fulano ou beltrano está comentando algum crime, a empresa jornalística poderá responder por este conteúdo.
“Muitas vezes, a verdade sobre essas denúncias leva muito tempo para ser apurada. Há investigações que só ocorrem porque fatos foram noticiados pela imprensa. Principalmente se o acusado é um poderoso. Se a imprensa é o quarto poder para dar voz aos que nunca seriam ouvidos sem ela, esta obrigação de autocensura é algo que pode atrapalhar muito a atividade jornalística. Até porque a verificação de veracidade é muito subjetiva”, explica.
Terra alerta que o tribunal sempre poderá interpretar que a verificação de veracidade não foi bem realizada e que a busca foi negligente.
“Os jornais pequenos podem não ter condições de contratar bons advogados para defendê-los. Uma pena o Congresso e a própria Imprensa estarem silentes sobre o assunto. Uma lei bem detalhada talvez pudesse amenizar esta subjetividade e representar melhor os anseios da sociedade”.
Em artigo publicado nesta segunda-feira, 4, na plataforma Sler, Marcelo considera ser “uma lástima que uma obrigação tão difícil e complicada pela imprensa, que pode gerar um enfraquecimento da democracia, não tenha sido objeto de discussão pelo Congresso Nacional, que poderia legislar a respeito, respeitando a vontade dos povo, seus eleitores”.
“Todavia”, diz o advogado, “o entendimento a ser seguido é o determinado pelo STF, e anseio que a imprensa não se cale apesar dos riscos e problemas que poderá vir a ter, se relatar algo informado por terceiro e não puder provar depois”.
E, encerra o texto dizendo: “lamento muito pelos jornalistas, que ficarão cheios de processos judiciais, movidos, em alguns casos, espero que sejam poucos, por grandes e poderosos crápulas”.
Barroso relativiza e entidades mostram preocupação
No dia 1º de dezembro, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e mais sete entidades representativas do setor emitiram uma nota pública manifestando preocupação com os desdobramentos da decisão.
Na nota, as organizações manifestam preocupação com o teor da tese definida, especialmente em relação ao emprego de termos genéricos e imprecisos, que podem ampliar o cenário de censura e assédio judicial contra jornalistas e comunicadores.
Assinam junto com a Fenaj, o Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a Associação de Jornalismo Digital (Ajor), Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Instituto Vladimir Herzog, a Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) e o Instituto Palavra Aberta.
O que mais preocupa é que tese admite a análise e responsabilização dos veículos de imprensa por conteúdo proferido por entrevistados nos casos de “informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais”, além de permitir a remoção de conteúdos sub judice.
Outro destaque do documento diz respeito a que ainda serão passíveis de responsabilização casos em que o entrevistado imputar falsamente crime a terceiro quando, à época da divulgação, houver “indícios concretos” da falsidade da imputação e o veículo deixar de observar o “dever de cuidado” na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios.
“Embora reduzam o escopo de aplicação da tese, os termos utilizados são imprecisos e trazem riscos para a liberdade de imprensa”, diz o texto. Leia a íntegra da nota.
A expectativa das entidades é de que o Supremo, na redação do acórdão do julgamento, apresente parâmetros mais concretos sobre o que entende como “indícios concretos” da falsidade das informações divulgadas e quais atos de cuidado deverão ser observados pelos veículos para que não sejam responsabilizados por informações ditas por terceiros, respeitando os preceitos da liberdade de imprensa que não podem ser restringidos ou afetados.
Sindicato dos jornalistas aprova decisão
Já Laura Santos Rocha, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul (SindJoRS), vê com bons olhos a decisão do STF.
“O SindJoRS entende que a decisão do STF, num primeiro momento, vem ao encontro do que a entidade defende, que é a produção de conteúdo de qualidade, responsável, com o uso de fontes confiáveis e direito ao contraditório”, explica.
Para ela, é importante que as empresas percebam que contratar jornalistas com formação reflete em “informação ética e responsável”.
“No entanto, é preciso estar atento para que, ao se produzir uma notícia, a ou o jornalista não seja impedido de exercer sua tarefa de forma a configurar uma prática de censura. É importante as entidades estarem atentas para garantir uma imprensa livre, um dos pilares da democracia”, defende.
A fala da sindicalista vai ao encontro do que disse o ministro Barroso em sua fala na última quinta-feira, 30, quando ele ressaltou que a imprensa profissional é um dos “alicerces da democracia brasileira e tem no Supremo um de seus principais guardiões”.
Critérios de responsabilização
O ministro ressaltou que, no julgamento ocorrido nesta quarta-feira, 29, envolvendo reportagem publicada pelo jornal Diário de Pernambuco, o STF reiterou sua jurisprudência para, em seguida, definir que, como regra geral, um veículo de comunicação não responde por declaração prestada por entrevistado, salvo se tiver atuado com intenção deliberada (dolo), má-fé ou grave negligência.
Segundo o presidente do STF, esses são critérios de responsabilização em toda parte do mundo.
“Portanto, não há nenhuma decisão cerceadora da liberdade de expressão”, afirmou. “A liberdade de expressão não é o único valor que deve prevalecer numa sociedade civilizada, e toda pessoa, inclusive pessoa jurídica, pode ser responsabilizada por comportamento doloso, por má-fé ou por grave negligência”.
Barroso lembrou que, antigamente, os jornais de um dia eram usados para “embrulhar peixe” no dia seguinte e deixavam de ser fonte de informação. Mas, hoje, a notícia fica disponível na Internet de forma perene. Assim, alguém que tenha sido falsamente acusado de um crime terá suas atividades pessoais e profissionais comprometidas por aquela informação”.
O caso analisado no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1075412 diz respeito a uma entrevista publicada pelo jornal pernambucano, em maio de 1995. Nela, o entrevistado dizia que o ex-deputado Ricardo Zaratini teria sido responsável por um atentado a bomba, em 1966, no Aeroporto dos Guararapes (PE), que resultou em 14 feridos e na morte de duas pessoas.
“A imputação era sabidamente falsa, e esse homem passou a vida inteira enfrentando a notícia falsa de que havia praticado um ato terrorista. Imaginem o mal que isso fez para sua mulher, para seus filhos, para sua família”, ponderou Barroso.
Nesse caso, a seu ver, houve entrevista maliciosa e negligência na apuração dos fatos, já que Zaratini nem sequer havia sido denunciado pela prática do crime.
Entenda o que foi decidido
Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu as condições em que as empresas jornalísticas estão sujeitas à responsabilização civil, ou seja, ao pagamento de indenização, se publicarem entrevista na qual o entrevistado atribua falsamente a outra pessoa a prática de um crime.
A decisão se deu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1075412, concluído na quarta-feira, 29, com a definição da tese de repercussão geral (Tema 995).
Segundo a decisão, a empresa só poderá ser responsabilizada se ficar comprovado que, na época da divulgação da informação, havia indícios concretos da falsidade da acusação. Outro requisito é a demonstração do descumprimento do dever de verificar a veracidade dos fatos e de divulgar a existência desses indícios.
A tese também estabelece que, embora seja proibido qualquer tipo de censura prévia, a Justiça pode determinar a remoção de conteúdo da internet com informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas.
O recurso ao STF foi apresentado pelo jornal contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que confirmou a condenação ao pagamento de indenização, considerando que, como já se sabia, na época, que a informação era falsa. Segundo a empresa, a decisão teria violado a liberdade de imprensa.
Liberdade de imprensa não é absoluta, diz Fachin
No voto condutor do julgamento, o ministro Edson Fachin observou que a Constituição proíbe a censura prévia, mas a liberdade de imprensa e o direito à informação não são absolutos, o que possibilita a responsabilização posterior em caso de divulgação de notícias falsas. Acompanharam esse entendimento os ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski (aposentado), Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso (presidente) e a ministra Cármen Lúcia.
Ficaram vencidos o relator original, ministro Marco Aurélio (aposentado), e a ministra Rosa Weber (aposentada). Eles consideram que, se a empresa jornalística não emitir opinião sobre a acusação falsa, não deve estar sujeita ao pagamento de indenização.
Os parâmetros definidos no RE 1075412 serão aplicados a pelo menos 119 casos semelhantes que aguardavam a definição do Supremo.
Tese de repercussão geral
- A plena proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia. Admite-se a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais. Isso porque os direitos à honra, intimidade, vida privada e à própria imagem formam a proteção constitucional à dignidade da pessoa humana, salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas.
- Na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios.
Leia documento de esclarecimento à sociedade elaborado pelo STF