Câmeras corporais: muito além do controle policial
Foto: Rodrigo Lopes/ESEM/ USP
Para Leandro Piquet, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) onde também coordena a Escola de Segurança Multidimensional (Esem) da instituição, há uma lacuna no debate sobre os avanços proporcionados pelo uso de câmeras corporais por policiais militares. Não há jurisprudência, convicções ou controle sobre a legalidade do uso das imagens captadas por esses equipamentos durante a ação como provas nas fases de investigação e processo penal.
Um dos especialistas mais requisitados no debate sobre segurança pública, Piquet foi um dos responsáveis pela pesquisa que demonstrou a eficiência do uso de câmeras corporais pela Polícia Militar do Estado de São Paulo (PMESP).
O estudo desenvolvido em conjunto com Joana Monteiro, Eduardo Fagundes, Julia Guerra, pesquisadores do Centro de Ciência Aplicada à Segurança Pública (CCAS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), demonstra que o emprego das Câmeras Operacionais Portáteis (COP) reduziu em 57% o número de mortes e em 63% as lesões corporais decorrentes de intervenção policial na área das unidades que utilizam a tecnologia.
Isso, sem prejuízo da ação ostensiva da PM, que chegou até a aumentar o volume de notificações de ocorrências de baixo potencial ofensivo, como o acréscimo de 78% nos registros de porte de drogas e 24% nos de porte de armas.
Nesta entrevista exclusiva ao Extra Classe, o pesquisador da USP fala da tecnologia empregada nas COP e da politização desse dispositivo. As imagens, em tese, são provas válidas no inquérito policial, mas no Brasil o debate foi por outro caminho.
“Um dos capítulos importantes dessa história das câmeras corporais ficou muito focado na questão do controle policial, produzir conformidade no comportamento do policial”, aponta.
Extra Classe – O senhor fala que o estudo de impacto das câmeras corporais que realizou já foi bem explorado, mas que o que está surgindo de novo diz respeito ao uso das imagens na investigação e no processo e que isso não foi abordado na pesquisa. O que está em jogo?
Leandro Piquet – Um dos objetivos desse sistema de gravação é produzir provas do processo. Provas válidas para o inquérito e a denúncia. Isso é um capítulo que a gente ainda não sabe como vai ser. Não tem jurisprudência, não tem casos suficientes. Há muito questionamento por parte dos acusados com relação ao uso dessas imagens. Alegações de fragilidade na cadeia de custódia dessas imagens. Então, há várias perguntas que ainda não foram respondidas do ponto de vista operacional. Ou seja, não tivemos ainda tempo suficiente para observar esse processo.
EC – Mais dúvidas do que certezas, então?
Piquet – Sim. Tem muitas dúvidas do ponto de vista jurídico. Se você conversar com promotores, com juízes, com delegados, você vai ouvir muita gente falando, “olha, o que eu faço com isso? Não sei”. Eu tenho muitas dúvidas sobre como essa parte ou esse uso esperado, esse impacto esperado das câmaras será de fato consolidado no sistema de justiça criminal.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
EC – Recentemente dois PMs de São Paulo foram acusados por homicídio em uma comunidade do litoral paulista, durante a Operação Escudo. Para o MP, enquanto um obstruía a câmera corporal, outro efetuou disparo de fuzil contra a vítima. Nesse caso, as câmeras foram usadas para a convicção dos promotores, não?
Piquet – Eles foram denunciados, exato. Mas o que eu estou dizendo é que nós não temos ainda a análise, a avaliação desse processo. Nós temos o “anedotário”, né? Há dois casos aqui de denúncia, mas nós não temos número suficiente; eu não conheço nenhuma pesquisa desenhada para avaliar esse processo do inquérito, denúncia e processo. Isso eu não vi antes.
EC – Bom, entendemos então que, na gênese da ideia das câmeras já estava pensada a utilização na forma de provas em processos. Certo?
Piquet – No mundo inteiro, esse sistema começa como uma forma de melhorar o trabalho policial, mas fundamentalmente produzir provas. Por exemplo, uma resistência à prisão, um desacato. Enquanto a ocorrência está transcorrendo, a imagem pode ajudar no inquérito, pode ajudar como base para a denúncia, pode ser considerada no processo. Todas essas etapas são afetadas pelas imagens. As imagens, em tese, são provas válidas no inquérito policial. Ao mesmo tempo, já fizemos até um debate com a promotoria de São Paulo sobre isso, as dúvidas são enormes. Há lacunas na legislação. A gente não sabe como vai ser isso. Um dos capítulos importantes dessa história das câmeras corporais ficou muito focado na questão do controle policial, produzir conformidade no comportamento do policial. O debate ficou centrado nisso. Está em aberto.
EC – Se no Brasil ainda temos muitas dúvidas, como ocorre em outros países que adotaram as câmeras corporais antes?
Piquet – Nos Estados Unidos, por exemplo, é muito mais fácil. Porque o sistema de justiça criminal é totalmente diferente. O processo de produção de provas, no inquérito e no processo, é aberto. O acusado pode produzir provas a seu favor. Ele pode conduzir investigação e apresentar resultado de investigação. Tem toda essa diferença entre o nosso modelo de natureza inquisitorial e o modelo anglo-saxão que é adversativo, não é? São duas partes brigando. No caso de um crime, é o Estado representando o povo contra o infrator. Mas são duas partes brigando na produção, inclusive, de provas. No nosso sistema, a produção de provas é controlada pela justiça. Só a justiça e a polícia podem produzir provas. O acusado pode se defender e questionar a validade dessas provas. Então, no contexto norte-americano, eu diria que é muito mais tranquilo o processo.
EC – Em síntese, como essa diferença de sistema de justiça criminal nos afeta?
Piquet – Lá, as evidências são produzidas de forma aberta e contínua pelas partes durante o processo. No nosso caso não é assim. Esse monopólio no processo de produção de provas exige que a Justiça e o Ministério Público tenham um regramento muito forte do que vale e do que não vale e ofereça ao acusado, por óbvio, a capacidade de questionar essas provas. E, ao que a nossa legislação tem como princípio vários pontos em que o acusado diz “não, isso não vale porque a cadeia de custódia não está de acordo, etc”, é por isso que eu diria que nos Estados Unidos é mais fácil. O modelo de organização dos sistemas de justiça criminal é completamente diferente. A gente precisa que tudo esteja desde o início na lei porque, senão, não vai acontecer. Lá, o processo é de baixo para cima. Aqui, a lei cria o que se pode fazer. Então essa diferença faz com que o uso dessas imagens seja muito mais fácil no âmbito de processos, no contexto de justiça adversarial, por exemplo, nos Estados Unidos.
EC – Em fevereiro o governo federal publicará regras para o uso de câmeras corporais com a ideia de padronizar o uso da tecnologia pelas polícias militares em todo o país. Ao mesmo tempo, o governo tem a intenção de expandir o uso dos dispositivos, mas não de maneira impositiva. Como o senhor vê?
Piquet – Conheço a proposta. Nós fizemos aqui um seminário na USP e convidamos o representante do Ministério da Justiça, que expôs muito bem o plano de implantação. O plano de incentivo, né? Porque o governo federal, na verdade, ele pode incentivar, não fazer mais do que isso. Ele pode ajudar com o modelo, oferecer, digamos assim, o blueprint (desenho técnico) da tecnologia. “Usa assim, faz assim, usa esses procedimentos aqui e tal”; e colocar dinheiro. Aí os estados vão conseguir se adaptar mais ou menos de acordo com as suas capacidades locais. Eu acho que a ideia do governo federal, pelo menos a do ministro anterior (Flávio Dino), respeita bem o ordenamento federativo e tem essa lógica de gerar incentivos pela recomendação de um determinado modelo. Recomenda e financia. Nesse sentido, é muito bom.
EC – E sobre a resistência à utilização do equipamento? Há os que dizem que no início foi maior e que agora é menor e está focado nas alas mais radicais do bolsonarismo. É por aí?
Piquet – Muita resistência. Muita resistência. Não diminuiu de jeito nenhum. De jeito nenhum. Mas não dá para atribuir só ao bolsonarismo. Assim, vamos pensar, o caso genérico é controle. É controle do policial na ponta, em vários sentidos. Eu acho que é um cara que vê que não pode descansar, não pode sentar, não pode fazer coisas que fazia; não pode ficar olhando o celular. É um mecanismo poderosíssimo de controle e produção de conformidade. Você vai aumentando a conformidade com as regras. Por isso os oficiais de São Paulo gostam muito do programa de câmeras.
EC – Em São Paulo onde a tecnologia é usada em maior escala, foi uma iniciativa da corporação…
Piquet – Sim. Foram eles. O coronel Cabanas (Robson, agora na reserva) que desenhou um brilhante programa. Eu acho que foi o melhor programa do Brasil, de longe. E tem apoio do Estado-Maior, tem apoio de todos os oficiais. Ele fez um trabalho que teve apoio, eu diria, quase que consensual entre os oficiais. Agora, o praça não gosta. Porque é uma interferência, é uma forma de, além da Corregedoria, além do oficial que fica circulando pela cidade, olhando se o policiamento está no lugar certo, exercer mais controle. Com as câmeras, você tem capacidade de fazer isso de forma remota, amplia muito o poder de controle.
“Na polícia as relações de trabalho, hierárquicas, de comando, são muito difíceis. O de baixo não tem voz. Não é um ambiente profissional em que você vai lá e discute o que vai fazer. Te ordenam e é assim que vai ser”
EC – E a politização em torno do assunto?
Piquet – Não dá para entrar na politização fácil de “porque é bolsonarista e tal”. Também tem muita coisa em polícia que é o seguinte: relações muito difíceis de trabalho, hierárquicas, comando. O de baixo não tem voz, não tem opinião. Não é um ambiente profissional em que você vai lá e discute o que vai fazer; o cara te ordena e é assim que vai fazer. E isso também faz com que muitas vezes existam, como é normal nessas estruturas muito hierárquicas e fechadas, percepções, problemas de conflito que são resolvidos de forma tipo “olha, vou dar uma olhada na sua câmera, vou ver, vou encontrar alguma coisa aí do que você está fazendo, entendeu?”. Então tem uma lógica de controle que não é um controle positivo, do tipo “olha, eu quero que você atue dentro das regras e vou fiscalizar”. Tem também o controle da diferença, da desavença por conta da hierarquia, da falta de abertura dessas estruturas.
Foto: Acervo Pessoal
EC – Por que o uso da câmera incomoda o policial?
Piquet – Então, a resistência também é porque a câmera é vista como se fosse mais um elemento de opressão do policial na ponta, entende? Ele fica ainda mais oprimido pelo oficial e ele reclama por isso, ele diz, “mas eu não quero mais essa coisa, eu não aguento mais isso”. E faz a campanha; faz a movimentação corporativa. Aí sim, entrando na politização – alguns oficiais, alguns secretários – compram essa agenda para agradar a tropa; para usar a tropa como base eleitoral. É outra coisa. Não é porque o cara que está lá na ponta é bolsonarista e quer fazer qualquer coisa. Não é isso. Ele está cansado dessa carga em cima dele. Polícia tem muito isso, tem muito estresse profissional, é uma dificuldade muitas vezes lidar com essa estrutura fechada, hierárquica, que gera essas diferenças e desavenças aí dentro da estrutura.
EC – Essa resistência é só no Brasil?
Piquet – Aqui, o acionamento é remoto, via a Central de Operações (Copom). É, talvez, o mais avançado hoje em uso, em larga escala.
EC – Como assim?
Piquet – O policial, na maioria das experiências norte-americanas, aciona a câmera justamente pensando nesse processo de sua proteção contra falsas acusações e também na produção de provas durante as ocorrências. Já no nosso caso, é gravado de forma contínua em baixa resolução, mas, quando o Copom aciona o despacho de uma viatura, capta som e imagem de alta qualidade. Com isso, ele (o Copom) é mais efetivo como mecanismo de controle, mas se choca ainda mais com a cultura da estrutura, exatamente.
EC – Não funcionou muito bem na questão da operação escudo, não é?
Piquet – Humanos são capazes de desenvolver estratégias inteligentes para qualquer situação de controle, não é verdade? Então, aí começa a aprender como é que faz. Um vira para a parede enquanto o outro está fazendo sei lá o que; enquanto o cara bate no outro de costas, entendeu? Aí tem várias coisas que possíveis. No Rio de Janeiro, em dois dias, o sistema já não funcionava mais.
EC – No Rio, as câmeras foram adotadas pela PM por determinação do STF.
Piquet – Lá era e é uma fraude. Ninguém sabia onde tinha aquelas imagens. O cara saia com chiclete colado na câmera. No Rio de Janeiro, não tem como você chegar lá e falar “eu vou organizar isso aqui, porque eu vou colocar uma câmera corporal no policial”. Infelizmente, não.
EC – Ainda sobre a Operação Escudo. Uma decisão do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo derrubou uma liminar que determinava que os policiais na ocasião fizessem uso das câmeras devido a denúncias de execuções, destruição de provas e abusos da PM. No final das contas, o plenário reestabeleceu a liminar, mas como o senhor viu isto tudo?
Piquet – Corrigiram um, digamos, tropeço monocrático. Foi muito ruim, porque justamente as câmaras ajudam no processo como eu já falei, sobre o processo de conformidade, de produzir ajuste às regras, às normas, aos procedimentos internos. Em especial, nas operações desse tipo, que envolvem não só complexidade do ponto de vista do cenário, da baixada, mas também do desafio de responder à morte de um colega, que sempre causa a emoção, sempre causa essa tensão na força. É mais uma razão para usar a câmara corporal como um instrumento de controle no sentido de garantir o procedimento, garantir a legalidade desses processos.
EC – Na campanha eleitoral, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) prometeu retirar as câmaras, mas, depois de eleito, recuou, desdenhou das COP e disse que elas não são prioridade. Mas quando pressionado, ele alega que as câmaras estão mantidas, que os contratos foram prorrogados e podem ser estendidos por mais dois anos. Como o senhor vê essa postura dúbia do governador?
Piquet – Alguns desses políticos, digamos, dessa coisa bolsonarista, dessa constelação bolsonarista, têm base eleitoral no setor policial. E o maior número de policiais na ativa são soldados, sargentos, cabos. São esses que estão na rua, fazendo policiamento efetivo, e são os que estão vocalizando esse descontentamento. Aí, sim, a política conta. Isso bateu durante a campanha como uma demanda corporativa, “tira as câmeras; vamos lá, tira as câmeras”. Só que tem, digamos assim, um Estado Profundo, né? Depois que o governador ganha a eleição, tem que conversar com quem faz. Não adianta ficar tendo ideia em abstrato. Tem que, na hora que vai começar o governo, ter uma lógica, ver que tem uma história, tem uma estrutura, tem uma engrenagem pesadíssima. É uma negociação que quase sempre o Estado Profundo ganha.
EC – O governador foi enquadrado, no caso?
Piquet – Então, acho que o que aconteceu com o governador foi isso. Ele chegou e se deparou com os oficiais que são menos vocais nessas redes bolsonaristas. Mais qualificados e menos vocais nesse debate corporativo nas redes. Volto a dizer, as câmeras têm muito apoio entre os oficiais, muito apoio. Em geral, é uma polícia muito séria a de São Paulo. Os oficiais estão preocupados em aumentar a legitimidade, melhorar o treinamento, melhorar os procedimentos, controlar, evitar a corrupção. Eles pensam dia e noite nisso. Eles estão vendo nisso (câmeras), a chance de melhorar a conformidade com as regras. Estão vendo a chance de reduzir as mortes decorrentes de intervenção policial e atos de agressões. Estão vendo vantagens em um processo de longo prazo, de construção de uma instituição que tenha legitimidade, que não seja questionada como uma força que pratica arbitrariedade, viola direitos. Eles estão cansados desse dedo apontado para eles.