Decreto de sigilo nas investigações das enchentes pelo Ministério Público provoca estranheza
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Ainda durante a maior enchente da história do estado, em maio passado, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) anunciou investigação abrangente para verificar a responsabilidade pela falta de manutenção e falhas no sistema de proteção com as cheias em Porto Alegre e na região metropolitana. Quase três meses depois, o órgão informa que a investigação está sob sigilo. Entidades e especialistas estranham a decisão.
Quando o Rio Grande do Sul submergiu à pior enchente da sua história, uma série de falhas e negligências no sistema anticheias foi revelado à mesma intensidade. Diante disso, em meio a tragédia climática em curso, as promotorias de Justiça de Defesa do Meio Ambiente e de Habitação e Ordem Urbanística Mistério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) anunciaram a instalação de uma investigação ampla relativa a todo o sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre e o impacto no regime hídrico do lago Guaíba.
A notícia foi publicada pelo Extra Classe no dia 13 de maio, em primeira mão. Quase 90 dias transcorridos desde a instauração do inquérito, a reportagem foi em busca de informações atualizadas sobre o andamento do processo e previsão de conclusão e apresentação dos resultados à sociedade, mas deu de cara com um monolítico silêncio.
Por meio de sua assessoria, o MP limitou-se a informar que foi decretado sigilo da investigação e não haver previsão de conclusão da investigação. Ao ser questionado o porquê e quem decretou o sigilo, o órgão inicialmente disse apenas que o próprio MP-RS, pelo promotor responsável, é que decretou sigilo para “evitar prejuízos à investigação e eventual comprometimento da finalidade das diligências”. Depois de muita insistência foi revelado que o decreto foi assinado pelo 2º promotor Luis Felipe Tesheiner.
Tesheiner é o mesmo promotor que, em 2016, denunciou oito estudantes, o jornalista Matheus Chaparini, do Jornal Já (e colaborador do Extra Classe), e o cinegrafista independente Kevin D’arc, por dano qualificado e desobediência civil no episódio da ocupação da Secretaria Estadual da Fazenda do RS.
Ele também, em 2008, abriu uma ação civil pública contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para a desocupação de dois acampamentos do MST, localizados próximos à fazenda Coqueiro, na região Norte do Estado. Nesta ação ele e o promotor Benhur Biancon Junior classificaram os acampamentos como “verdadeiras bases operacionais destinadas à prática de crimes e ilícitos civis causadores de enormes prejuízos não apenas aos proprietários da Fazenda Coqueiros, mas a toda sociedade”.
O processo contra Chaparini foi extinto pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) em maio de 2023. A Ação contra o MST foi mais uma iniciativa em uma crescente ofensiva do judiciário e do poder público para criminalização dos movimentos sociais.
Entidades estranham medida
Entidades que representam diversos segmentos sociais ressaltam não verem necessidade de medida de sigilo para essa investigação, assim restringindo acesso de informações à imprensa e, consequentemente, à sociedade da catástrofe climática que afetou milhares de vidas e causou 182 mortes.
O Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) manifestou estranheza à decisão. Segundo a entidade, diante de tamanho e notório descaso das administrações com falta de obras e manutenção do sistema de proteção contra as enchentes, agora, simplesmente, o MP declara sigilo desta investigação, causa estranheza e prejuízo à sociedade. “Foi um descaso notório de negligência que afetou muitas vidas e, por isso, um assunto de interesse geral. Precisa haver uma justificar bem plausível para não ter resultados ainda e, por cima, decretar sigilo”, enfatiza.
Amarildo Cenci, presidente da Central Única dos Trabalhadores no Rio Grande do Sul (CUT-RS), afirma não enxergar razão para esse cuidado nesta investigação, sendo uma questão de notório interesse público. “Claro, temos uma disputa eleitoral, e não duvido que isso possa influenciar o processo. Entretanto, é lógico que não podemos deixar de responsabilizar os agentes que contribuíram para que essa tragédia fosse mais grave ainda, quem quer que seja. Então, a nosso ver, é uma decisão injustificável”, declara o dirigente.
O Sindicados de Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (SindJoRS) reforça que “desde o início da catástrofe climática que atingiu o nosso Estado, procurou noticiar, com o objetivo de informar à população e auxiliar as/os colegas jornalistas, como também acompanhar o trabalho dos veículos de comunicação do RS, sejam eles convencionais ou independentes”.
“O SindJoRS lamenta a decisão do Ministério Público e manifesta publicamente apoio ao Jornal Extra Classe, pois a função da imprensa é manter a população informada sobre qualquer assunto importante, principalmente quando envolve os rumos de investigações importantes e necessárias”, afirma em nota.
A OAB/RS também ficou de emitir manifestação sobre o caso, mas até o fechamento da matéria, não houve retorno. O espaço segue aberto.
Relembre a denúncia
Em maio, o MP-RS abriu investigação para apurar as responsabilidades pelas falhas e erros no sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre e no regime hídrico do lago Guaíba, assim como em toda região metropolitana.
Na ocasião, em vídeo, o promotor de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre Felipe Teixeira Neto antecipou alguns pontos da investigação.
“Considerando o grande impacto causado pelas cheias nos últimos dias, não só em Porto Alegre, mas também em toda a região metropolitana, o MP vai instaurar uma investigação para apurar as causas e consequências deste fenômeno, principalmente em relação ao sistema de proteção contra as enchentes já existentes”, afirmou.
O objetivo era apurar como se dava a interação desse sistema com o regime hidrológico, do Guaíba e todos os rios que chegam até o lago. A partir desse levantamento, verificar quais seriam os pontos que deveriam ser enfrentados para prevenir imediatamente transtornos semelhantes, assim como apontar soluções a médio e longo prazo para este problema.
Além dessa investigação maior, já havia outros inquéritos sobre o tema em andamento, mais pontuais, referentes a locais específicos, afirmou o MP-RS em maio.
Fora do sigilo
Foto: Mateus Raugust/PMPA
Enquanto isso, sem sigilo decretado, a Promotoria de Justiça Especializada Criminal da Capital – 1º Núcleo do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) denunciou na última segunda-feira, 5, Alexandre Garcia, que é ex-diretor do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) de Porto Alegre e o ex-vice-prefeito de Pelotas, o advogado Fabrício Tavares, por corrupção passiva. O caso não tem relação direta com as enchentes, mas diz respeito a fatos recentes envolvendo a manutenção do sistema de prevenção e manejo pluvial.
O caso ocorreu durante os primeiros dois anos da administração do prefeito Sebastião Melo e foi alvo de denúncia na Câmara de Vereadores de Porto Alegre pelo empresário Luiz Augusto França, então diretor na MG Terceirização, que prestou serviços à administração pública da capital.
Alexandre Garcia chegou junto com Melo na Prefeitura da capital em 2021 e chefiou o Dmae até fevereiro de 2023, ocasião em que foi substituído pelo engenheiro Maurício Loss. Ele foi indicação do então PTB (agora PRD, resultante da fusão do PTB e Patriota), da base de apoio do governo municipal. Garcia foi vice-prefeito de Pelotas, onde também foi diretor do Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas (Sanep), entre 2017 e 2020, no primeiro mandato da prefeita Paula Mascarenhas (PSDB). Também integrou o governo de Eduardo Leite (PSDB) enquanto prefeito. Ao sair da Sanep deixou o cargo para Michele Larroza Alsina, que era superintendente administrativa do órgão. Michele foi chefe de gabinete do então vice-prefeito Fabrício Tavares entre 2009 e 2013.
Conforme o MP, depois que assumiu o cargo, em 2021, Alexandre Garcia solicitou e recebeu, por meio de um intermediário (Tavares), um valor de R$ 517 mil de forma indevida por parte da empresa terceirizada responsável pela manutenção preventiva e corretiva dos sistemas de manejo de águas pluviais na cidade, MG Terceirização.
O responsável pela investigação e pela denúncia oferecida à Justiça é promotor de Justiça Flávio Duarte. Segundo ele, o ex-diretor teria recebido propina em 22 ocasiões, de forma direta e indireta.
“Os investigados receberam 5% de todos os valores que eram pagos pelo Dmae para a empresa terceirizada, dos quais 4% foram sacados em espécie e 1% por meio de operações bancárias”, destaca o promotor.
O intermediário, Tavares, também foi denunciado por corrupção passiva. Ainda, na denúncia do MP-RS, foi postulada a fixação de valor mínimo para a reparação de danos causados à empresa.