JUSTIÇA

Falta de reação da vítima e consentimento inicial não afastam estupro

Sexta Turma do STJ decide que qualquer manifestação contrária da vítima não atendida pelo agressor caracteriza crime de estupro
Por Gilson Camargo / Publicado em 16 de agosto de 2024
Falta de reação da vítima e consentimento inicial não afastam estupro

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2023 foram registrados quase 84 mil crimes de estupro no Brasil

O STJ decidiu que, para o reconhecimento do crime de estupro, basta qualquer manifestação da vítima – não atendida pelo agressor – de que não deseja continuar o ato sexual, mesmo que tenha havido consentimento no início.

De acordo com o tribunal, essa discordância quanto ao prosseguimento da relação íntima não precisa se dar de forma enérgica ou drástica, pois a legislação não prevê uma forma específica para que seja caracterizada a relação sexual não consentida.

Mesmo tendo havido consentimento inicial para o sexo, a simples discordância da vítima em prosseguir na relação – quando essa negativa não é respeitada pelo agressor – basta para a caracterização do crime de estupro.

Não se exige, em tais casos, que a recusa seja drástica ou que a vítima tenha uma reação enérgica no sentido de interromper o ato sexual.

O entendimento foi adotado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria de votos, ao reformar acórdão de segundo grau e restabelecer sentença que condenou um homem a seis anos de reclusão por estupro.

Ao decidir pela absolvição, o tribunal local havia entendido que, embora a mulher tivesse se recusado a seguir no ato sexual inicialmente consentido, não ficou comprovado no processo que essa discordância se deu de forma mais enfática, a ponto de ser percebida efetivamente pelo réu.

“O dispositivo do Código Penal que tipifica o delito de estupro não exige determinado comportamento ou forma de resistência da vítima. Exige sim, implicitamente, o dissenso, o que restou comprovado nos autos”, afirmou o ministro Sebastião Reis Junior no julgamento.

Recordes de crimes no Brasil

No ano passado foram registrados quase 84 mil estupros no Brasil, de acordo com a última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgada em julho. Um aumento de 6,5% em relação a 2022 e um novo recorde para esses casos. No comparativo com o início da série história, em 2011, quando ocorreram mais de 43,8 mil casos, houve um aumento de mais de 91% nesses crimes.

As principais vítimas continuam sendo meninas, mais de 88% dos casos. 52% são negras e mais de 61% têm no máximo 13 anos. O crime de estupro de vulnerável, aqueles em que as vítimas são menores de 14 anos ou incapazes, responde por 76% das ocorrências em 2023.

A prevalência de estupros de crianças e adolescentes na faixa de 10 a 13 anos, ficou em quase 234 casos para cada 100 mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. No caso de bebês e crianças de 0 a 4 anos, a taxa chegou a 68,7 casos por 100 mil, também superior à média no país.

Consentimento do início ao fim

No voto acompanhado pela maioria do colegiado, o ministro comentou que, no crime de estupro, o constrangimento da vítima pode se dar por meio de violência ou grave ameaça (artigo 213 do Código Penal).

No caso dos autos, o magistrado apontou que, em seu depoimento judicial, a vítima afirmou ter dito ao réu que não desejava seguir na relação íntima, mas, mesmo após ouvir o “não”, ele seguiu no ato sexual mediante força física.

De acordo com Sebastião Reis Junior, a concordância e o desejo inicial têm que perdurar durante toda a relação, pois a liberdade sexual pressupõe a possibilidade de interrupção do ato.

“O consentimento anteriormente dado não significa que a outra pessoa pode obrigá-la à continuidade do ato sexual. Se um dos parceiros decide interromper a relação sexual e o outro, com violência ou grave ameaça, obriga a desistente a continuar, haverá a configuração do estupro”, afirmou.

Contato posterior com agressor

Segundo o ministro, o fato de a vítima não ter “reagido física ou ferozmente” à continuidade do ato sexual não afasta o estupro, pois houve manifestação clara de discordância por parte dela.

Pela mesma razão, apontou, o crime não deixa de estar configurado porque a vítima, após a resistência inicial, finalmente se submeteu ao ato, apenas aguardando que terminasse.

“A (relativa) passividade, após a internalização de que a resistência ativa não será capaz de impedir o ato, não é, por diversos fatores, incomum em delitos dessa natureza”, declarou o ministro ao lembrar que, segundo o processo, passada a resistência inicial, a vítima percebeu que não teria forças para impedir o ato e apenas esperou “que a violência chegasse logo ao fim”.

Também no entendimento do ministro, a informação de que, após o crime, a vítima teria trocado mensagens com o agressor não é suficiente para descaracterizar o estupro, como chegou a apontar o tribunal local – em “viés desatualizado e machista da situação”, segundo Sebastião Reis Junior.

O ministro argumentou que, além de permanecer a demonstração da recusa durante a relação, o contato posterior pode indicar que a vítima buscou mecanismos para diminuir o “peso errôneo da culpa”, ou mesmo para sobreviver física e mentalmente à violência à qual foi exposta.

“Se tal pensamento fosse a solução certeira para o caso, não se caracterizaria o delito de estupro quando mulheres são subjugadas, dentro do lar, por seus maridos e companheiros à violência sexual, porque, mesmo dissentindo claramente do ato, submetem-se de maneira passiva aos desejos sexuais do consorte por inúmeros e inimagináveis motivos, como dependência financeira, emocional, forma de criação, pela cultura patriarcal enraizada em nossa sociedade, que vê o homem como uma figura que deve ser servida, temida e obedecida a todo instante pela mulher”, concluiu o ministro.

Com informações do STJ e Agência Brasil.

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