Empresas terceirizadoras de serviços praticam dumping social e concorrência desleal
Foto: Tony Winston/Agência Saúde
Foto: Tony Winston/Agência Saúde
O dumping, a grosso modo, é uma expressão utilizada quando uma empresa pratica preços muito abaixo do mercado para literalmente eliminar a concorrência. É mais ou menos isso que algumas empresas que participam de licitações públicas fazem para conquistar polpudos contratos em licitações em diversas esferas do poder público. Não raro, economizando às custas do trabalhador terceirizado. Além de baixíssimos salários, a sonegação de direitos corre solta. Direitos, que invariavelmente só serão resgatados na Justiça, fazendo com que o Estado pague duas vezes. Ou seja, um barato que pode custar caro para o Estado.
Com base nesta realidade, a procura do trabalho do MPT-RS Priscila Dibi Schvarcz fez sua intervenção no Seminário sobre Terceirização, evento promovido em uma parceria entre a Escola Judicial do TRT-4 e o Instituto Trabalho e Transformação Social (ITTS), no último dia 18 de outubro, com o objetivo de discutir questões do mundo do trabalho provocadas pelo quadro atual de ampla terceirização nos setores público e privado.
Schvarcz ocupa atualmente a função de vice-coordenadora da Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret).
Ela discorreu sobre o sobre o que classifica como “dumping social” verificado em decorrência, segundo ela, não somente da terceirização ampla e disseminada nos serviços públicos, mas sobretudo da ausência de fiscalização efetiva por parte do Poder Público quanto ao pagamento de encargos sociais, trabalhistas e previdenciários dos empregados, assim como das nítidas falhas decorrentes da habilitação de empresas que não possuem a mínima capacidade e estrutura em processos licitatórios de contratação de prestadoras de serviços.
A procuradora abordou a legislação que rege processos de contratação e terceirização no serviço público e as principais irregularidades verificadas pelo MPT nas investigações que conduz, como alta taxa de inadimplência de direitos trabalhistas por parte de prestadoras de serviços terceirizados, principalmente próximo ao fim do contrato; uso de ardis para evitar o pagamento dos trabalhadores, entre outras.
PRINCIPAIS IRREGULARIDADES VERIFICADAS PELO MPT:
- Alta taxa de inadimplência de direitos trabalhistas por parte das empresas prestadoras de serviços
terceirizados, principalmente quando se aproxima o fim do contrato celebrado entre a prestadora de
serviços e o ente público; - Alto índice de contratações emergenciais para assegurar a continuidade do serviço, ocasionando a
dispensa de licitações e mais fraudes aos direitos dos trabalhadores ao fim de cada curto período de
contratação; - Uso de ardis, pelas empresas prestadoras, para não pagar os trabalhadores e enriquecer ilicitamente,
muitas vezes cobrando da administração pública verbas não repassadas aos trabalhadores ou
equipamentos de proteção individual e uniformes não fornecidos, bem como medidas de saúde e
segurança não implementadas; - Elevado número de litígios trabalhistas na Justiça do Trabalho, em razão da inadimplência no
pagamento de verbas trabalhistas pelas empresas prestadoras de serviços terceirizados para a
administração pública; - Dificuldades de obtenção de valores e/ou bens na execução trabalhista, em decorrência do “sumiço”
das empresas ou da falta de patrimônio das empresas e de seus sócios, com ampla utilização de
“laranjas” nas sociedades; - Prejuízos ao patrimônio público, visto que a Administração Pública, muitas vezes, é condenada a
pagar obrigações trabalhistas, como responsável subsidiária, por força da má fiscalização dos contratos.
O que é dumping social
De acordo com o enunciado 4 da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), o dumping social é sinônimo de dano á sociedade e carece de indenização suplementar. São as agressões reincidentes e inescusáveis aos direitos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem indevida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhecido “dumping social”, motivando a necessária reação do Judiciário trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás já previam os artigos 652, “d” e 832, §1º da CLT.
Priorizar fiscalização
Ela afirmou, ainda, a necessidade de o poder público, quando contrata serviços terceirizados, priorizar a fiscalização para garantir não apenas a prestação devida do serviço, mas o respeito às garantias constitucionais básicas do trabalhador. E salientou que essas falhas e violações repercutem diretamente no número de ações trabalhistas em tramitação, na medida em que, segundo dados do CNJ, temas referentes ao pagamento de verbas rescisórias, os mais básicos direitos que alguém possui no encerramento de um vínculo de emprego, ocupam as cinco primeiras posições em número de ações pendentes de julgamento na Justiça do Trabalho, sendo que, as empresas prestadoras de serviços terceirizados ocupam nove posições na listagem dos 30 maiores devedores do Brasil, inscritos na Certidão de Débitos Trabalhistas do TST.
“É imprescindível que a Administração Pública adote medidas efetivas de fiscalização das empresas prestadoras de serviços, assim como medidas para melhoria dos editais de licitação para garantir que empresas que ofertam preços mais baixos a custa de fraudes trabalhistas e comprometimento dos direitos trabalhistas não possam se ver vencedoras de processos licitatórios.
A Administração Pública deve, no mínimo, adotar as medidas previstas no artigo 121, §3º da Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações), como exigência de cauções, fianças, inclusive seguro garantia de algumas obrigações; condicionar o pagamento à comprovação do cumprimento das obrigações mínimas trabalhistas; pagamento direto dos trabalhadores, quando verificado inadimplemento, retendo o valor desse contrato para evitar esse montante pago ao final como responsável subsidiário. Medidas para evitar violações sistemáticas a direitos básicos de quem recebe muito pouco, de quem recebe um valor mínimo”, declarou a procuradora.
Foto: Guilherme Lund / Secom TRT-RS
Estado paga duas vezes
Nos editais, empresas oportunistas praticam os menores preços para serem selecionadas, recebem o recurso do poder público e desaparecem sem pagar os trabalhadores, gerando judicialização e forçando o Estado a pagar duas vezes pela contratação.
“Nem todas as terceirizações são inadequadas, mas a precarização se dá quando ocorre o dumping social de que falei”, explica a procuradora Priscila Schvarcz.
O artigo 121 da nova lei de licitações (14133/21) prevê a criação de uma conta vinculada em que só o ente público pode movimentar, determinando que as empresas depositem valores suficientes para quitar passivos trabalhistas e evitar calotes. Prevê ainda a responsabilidade do Estado em fiscalizar o contrato.
Melhorar licitações para evitar fraude
“O Estado tem responsabilidade sobre o que está acontecendo. Estamos presos a uma ideia de austeridade, engessada, incapaz de perceber a inexequibilidade dos contratos”, pontua a representante do MPT. Para Priscila Dibi Schvarcz, os novos modelos de editais públicos devem aprimorar as contratações evitando fraudes e calotes na administração pública responsabilizando o Estado como fiscal do contrato e prevendo conta vinculada para assegurar pagamento aos contratados.
“A administração pública paga o dobro por aceitar o menor preço e não fiscalizar sequer se o valor proposto cobre o pagamento do salário e verbas rescisórias”, enumera a especialista que viu exorbitar as ações trabalhistas após a terceirização. “Não faz o menor sentido não selecionar de forma adequada, não adotar medidas efetivas de fiscalização como já prevê o Artigo 121 da Nova Lei de Licitações 14133/2021”, declara Schvarcz.
A especialista destacou o acordo de cooperação técnica firmado em março, entre a AGU e o MPT, capacitando gestores. “Boa fiscalização evita calote e ações judiciais”, afirma. O Estado tem o ônus de fiscalizar. É só seguir o cheklist exigido na Instrução Normativa do Ministério do Planejamento, recomenda.
Foto: Guilherme Lund / Secom TRT-RS
Falta de regulamentação
A reforma trabalhista sem regulação vem aprofundando a insegurança jurídica em vários segmentos, sobretudo os relacionados à administração pública, que, no limite, afasta empresas sérias e povoa o mercado de empreendimentos de rapina.
“Sem regulamentação, a terceirização é a total desproteção do ambiente de trabalho”, afirma o jurista Marthius Sávio Lobato um dos painelistas do Seminário. Mestre e doutor em Direito, Estado e Constituição pela UnB, Lobato, falou do atraso civilizatório e a violação da dignidade humana promovidos pela ausência da regulamentação da terceirização, desencadeada na esteira da reforma trabalhista.
Os recursos judiciais explodiram, junto com reclamações constitucionais necessitando de debates para construir novos consensos regulatórios. Regramentos para civilizar as contratações e reduzir a precarização foram aspectos aprofundados nas mesas de debates com especialistas do Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Advocacia-Geral da União, profissionais do direito do trabalho, entidades empresariais e sindicais vinculadas ao trabalho terceirizado.
Lei Anti-calote, alterações nas leis de licitações, regulação no uso abusivo das MEI, ajustes na representação sindical, apuro na fiscalização dos contratos públicos e tratamento das lacunas criadas pela desregulamentação proposta pela reforma trabalhista na pauta.
Os terceirizados recebem 27% menos salário e trabalham três horas semanais a mais que os contratados diretamente. A cada cinco acidentes com morte, quatro são terceirizados, exatamente os que não têm direitos mínimos.
A questão básica é que os trabalhadores e trabalhadoras precisam, no mínimo, receber pelo serviço prestado e assegurar a dignidade humana consistida na Constituição Federal, completa Lobato.
Foto: Guilherme Lund / Secom TRT-RS
Foto: Guilherme Lund / Secom TRT-RS
Trabalho escravo e licitações inconsistentes
No setor privado, o Brasil resgatou, em 2023, 3.151 trabalhadores em condições análogas à escravidão. Só em agosto de 2024, foram libertados 593 trabalhadores nessa situação e o número de auditores fiscais do trabalho está no menor nível em 30 anos.
Em contratações desqualificadas, a prática empresarial é paga com a vida. No RS, só no setor elétrico ocorreram oito óbitos neste ano.
No setor público, a terceirização desregulada tem paralisado serviços na área de educação e saúde, entre outras, com interrupções de atividades como alimentação escolar, limpeza e segurança.
A normatização possível
Com 45 anos de advocacia sindical o coordenador do Instituto Trabalho e Transformação Social (ITTS), Antônio Escosteguy Castro, pontuou que diante da ampla liberação da terceirização pelas decisões do STF após a Reforma Trabalhista, resta buscar brechas para normatizar alguns procedimentos que evitem maior precarização.
“O recente Decreto Federal 12.174 dá garantias aos contratos trabalhistas terceirizados da União e é tido como um início auspicioso de possibilidades”, entende Castro. Entre as alternativas estão a exigência das empresas contratadas depositarem valores para assegurar os direitos trabalhistas e levar isso a outros entes da federação.
Três desafios
Para o especialista, há três desafios para avançar: regular a utilização dos MEIs como forma de contrato para evitar mão de obra terceirizada irregularmente; especificar quem pode ser objeto de contratação dos MEI e discutir a representação sindical para consensuar quem representa os trabalhadores/as em acordos coletivos para assegurar trabalho decente, como preconiza a Organização Internacional do Trabalho (OIT), desde 1999.
“O patronato não pode fazer qualquer coisa. Não é verdade que as decisões do STF acabaram com direitos trabalhistas e é preciso disputar as brechas deixadas”, reitera o coordenador do ITTS, entidade que promoveu o Seminário em parceria com a Escola Judicial do TRT4 (Ejud). Para o coordenador da Ejud, o desembargador Fabiano Holz Beserra, o seminário contribui para debater e formular conceitos fundamentais da terceirização, mas também pontuar lacunas e ambiguidades existentes na sua regulamentação”.
Lei gaúcha anti-calote inspira soluções nas contratações públicas
Foto: Guilherme Lund / Secom TRT-RS
O autor da Lei Nº 16.110, vigente desde 9 abril de 2024 no RS, o deputado estadual Luiz Fernando Mainardi, tratou da chamada Lei Anti-calote, aprovada neste ano na Assembleia Legislativa do RS para garantir cumprimento de obrigações trabalhistas, exigindo das empresas capacidade contábil e financeira.
Pela lei já em vigor, os órgãos públicos contratantes devem exigir caução, fiança bancária, seguro-garantia com cobertura para verbas rescisórias inadimplidas e conta-corrente vinculada – bloqueada para movimentação da empresa, assegurando recursos para pagamento dos trabalhadores/as em caso de descumprimento das obrigações com os prestadores do serviço.
“Esta legislação traz algumas garantias para evitar que empresas oportunistas apresentem o menor custo e desapareçam com os valores pagos pelo estado sem pagar os trabalhadores e trabalhadoras, prática constatada em grande escala em todo o país”, observou o parlamentar.
Diálogo social e ato na Assembleia Legislativa
O superintendente Regional de Trabalho e Emprego, Claudir Nespolo, apresentou o trabalho realizado conjuntamente com entidades sindicais empresariais e laborais e propõe ajustes na Lei Federal das Licitações 14.133/21 e na Lei estadual 16.077/23 para determinar que o gestor público adote mecanismos de garantia para execução integral dos contratos.
Documento formulado nos debates Câmara Setorial do Trabalho Terceirizado (CSTT) será entregue dia 11 de novembro, 14h, em ato na Assembleia Legislativa, reunindo representantes de diferentes poderes, empresários e trabalhadores integrando o Pacto pelas Boas Práticas Trabalhistas e Enfrentamento à Concorrência Desleal firmado em dezembro passado.
As medidas visam combater a recorrente descontinuidade na prestação de serviços por empresas que deliberadamente assinam contratos que não podem cumprir, prejudicam empreendedores sérios, lesando trabalhadores, interrompendo a prestação dos serviços e onerando o poder público.
Nespolo é entusiasta do diálogo social como meio consistente para construir soluções e dar segurança a quem sobrevive nesse meio.“Temos que enfrentar o diálogo social como forma de recolocar parâmetros equilibrados nas relações laborais. Não é possível que o trabalhador terceirizado fique inseguro e o Estado moderno se mantenha a custa do trabalho precário no ambiente público e privado”, afirmou o dirigente do MTE no estado.
Foto: Guilherme Lund / Secom TRT-RS
Acordo federal paga 10 mil trabalhadores em litígio
O Governo Federal enfrentava 12 mil processos de trabalhadores que não tiveram seus salários pagos pelas empresas que prestavam serviços à União e acionaram a justiça, informou a advogada da Advocacia-Geral da União, Mônica Casartelli, painelista no evento.
Ela divulgou o acordo feito em setembro, que extinguiu 95% desses 12 mil processos que envolviam a União e terceirizados. Destes, 70% tramitavam há mais de 10 anos; 80% não chegavam a R$ 25 mil, 39% não chegavam a R$ 15 mil.
Defesa da CLT
“O modelo atual não é bom. Quanto mais se trabalha menor valor tem. Os operadores do direito administrativo têm dificuldade de humanizar a atividade. Atrás daqueles processos têm pessoas fragilizadas que não receberam seus direitos. O mesmo Estado que não quer pagar o direito do trabalho é o mesmo que paga o bolsa-família”, alerta.
“A precarização do trabalho nunca gerou desenvolvimento. As formas de organização do trabalho se alteram, as tecnologias ficam obsoletas, mas o ser humano e seus direitos basilares precisam de solidez e segurança. Os direitos básicos garantidos na CF/88 precisam de concretude. Não deixemos de nos sensibilizar e tenhamos coragem”, afirmou Casartelli. A especialista destaca que mesmo que seja legal e constitucional, a terceirização precisa cuidar dos direitos por ser um processo civilizatório.
“O terceirizado da administração pública é mais precarizado que na iniciativa privada”, disse Casartelli.
“Sou advogada da União e há diferentes visões de mundo o que gera problema estrutural, longe do ideal”, concluiu a pesquisadora que está prestes a lançar um livro sobre o tema. E pondera: Sem pacificação do tema, a cada julgamento o cenário fica mais complexo.