Justiça concede pensão vitalícia à viúva de Vladimir Herzog
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Foto: Carlos Ebert/ Acervo IVH
A decisão reconhece que o jornalista foi vítima de perseguição política e que Clarice Herzog (foto) tem direito à reparação financeira correspondente ao valor que ele receberia caso estivesse vivo
Foto: Carlos Ebert/ Acervo IVH
Depois de exatos 50 anos do crime e no curso de uma extensa batalha judicial por verdade e reparação, a sentença anunciada pela justiça federal no último dia de janeiro foi tratada com discrição pela grande imprensa. Na decisão liminar de caráter provisório e urgente, o juiz federal Anderson Santos da Silva, da 2ª Vara Federal Cível de Brasília, determina o pagamento mensal de R$ 34.577,89 a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, que foi assassinado por agentes da ditadura militar em outubro de 1975.
O valor de R$ 34,5 mil mensais deve ser pago como reparação econômica pelo eventual reconhecimento de Herzog como anistiado político. Tal reconhecimento ainda não ocorreu, apesar da constatação da perseguição sofrida pelo jornalista, conforme processos conduzidos pelas Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e Comissão Nacional da Verdade.
O assassinato de Herzog pelas mãos de agentes da repressão estatal, que chegou a ser simulado como suicídio, foi reconhecido também pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2018, quando o Brasil foi condenado por não ter esclarecido a contento as circunstâncias da morte do jornalista.
“Em suma, diante das fartas evidências a respeito da detenção arbitrária, da tortura e da execução extrajudicial de Vladimir Herzog, o pedido autoral de reconhecimento da sua condição de anistiado político, com as suas consequências legais, apresenta plausibilidade jurídica”, escreveu o juiz responsável pelo caso.
O magistrado justificou a urgência da decisão reparação econômica em prestações mensais vitalícias com o fato de a viúva do jornalista já ter 83 anos de idade e sofrer de Alzheimer em estágio avançado. O magistrado abriu prazo para que a União conteste a decisão.
A defesa de Clarice requereu também mais de R$ 2 milhões em pagamentos retroativas dos últimos cinco anos, mas esse pedido ainda não foi analisado pelo juiz. Ele afirmou que mesmo o valor da pensão mensal poderá ser reavaliado após a instrução regular do processo.
Não há prazo definido para o julgamento de mérito, definitivo, sobre o caso, que tramita no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).
Em nota, Ivo Herzog, presidente do Conselho do Instituto Vladimir Herzog e filho do jornalista, afirma que a decisão judicial representa “uma importante vitória”. Confira a íntegra:
“Clarice Herzog luta por justiça há quase 50 anos. Está hoje com 83 anos. Trabalhou como pesquisadora de forma workaholic até seus 75 anos de idade. Trabalhou para poder ser independente. Garantir uma boa educação e saúde para seus filhos e preparar-se para uma velhice com dignidade.
Clarice nunca moveu um processo contra o Estado Brasileiro buscando uma reparação financeira. Sempre buscou a justiça pelo assassinato do meu pai e para isto foi uma defensora da revisão da Lei de Anistia, da Democracia e da Liberdade.
O destino lhe trouxe algo que ela não esperava. Esta doença terrível que é o Alzheimer. A doença levou aquela pessoa que nós conhecíamos e nos trouxe uma pessoa agora em paz, sem a inquietação que era característica à Clarice.
Para este novo capítulo de sua vida, ela tem o bem mais valioso ao seu lado todos os dias, todos os momentos. Seu companheiro de mais de 45 anos, Gunnar.
Nós da família, a fim de dar segurança para Gunnar e Clarice, com todo o aparato médico necessário, decidimos agora buscar o que minha mãe sempre teve direito: reparação econômica.
A sentença do último dia 31 de janeiro irá garantir os cuidados que ela e Gunnar precisam neste momento da vida. É uma vitória daquela que luta há quase 50 anos pela verdade e justiça”.
Suicídio forjado
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Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog
Herzog na redação da Rádio BBC de Londres, em 1966
Foto: Acervo Instituto Vladimir Herzog
Assassinado em uma cela das dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (antigo Doi-Codi), órgão de repressão e da prática de torturas à época do regime militar, Herzog teve seu atestado de óbito forjado como “suicídio”, fraude que seria desconstruída anos depois.
Herzog havia sido preso por sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Torturado e morto, a alegação oficial foi a de que teria se enforcado com um cinto em sua cela. Fotos forjadas chegaram a ser divulgadas. No entanto, em 1978 a Justiça brasileira decidiu pela condenação da União pelo crime.
Vlado Herzog nasceu em 1937, na Croácia (antiga Iugoslávia), morou na Itália e veio ao Brasil em 1942. Naturalizou-se brasileiro, mudou seu nome para Vladimir, morou em São Paulo e começou a trabalhar como jornalista em 1959. Passou por veículos como BBC, quando morou em Londres, pelo jornal O Estado de São Paulo e pela TV Cultura, da qual era diretor de telejornalismo no momento de sua morte.
Também foi professor de telejornalismo na Fundação Armando Álvares Machado (FAAP) e Escola de Comunicações e Artes da USP.
Reparação
O jurista Lênio Streck, professor dos cursos de pós-graduação em Direito da Unisinos considera que a decisão judicial representa uma reparação justa, ainda que concedida de forma tardia.
“O estranho nessa história toda é que tenham demorado tantos anos depois do assassinato do Herzog para conceder uma pensão à Clarice, que é citada em uma das músicas mais belas do cancioneiro brasileiro, que é O bêbado e a equilibrista”, lembra o advogado.
“Por todas as razões, o Estado brasileiro, que era uma ditadura, portanto não era um estado de Direito, retirou o Vladimir do lar, do covívio, tirou o esposo, uma renda. Portanto, o Estado é responsável por isso”, afirma.
O Estado brasileiro, pela Lei 9140, de 1996, já reconheceu que todas as pessoas perseguidas ou mortas pela ditadura militar tinham direito à indenização, lembra Streck. “Daí é muito fácil fazer o raciocínio de que a viúva de uma pessoa assassinada e como ficou comprovada a responsabilização do Estado, é legal, justo que a Clarice receba uma pensão vitalícia do Estado brasiuleiro”, conclui.
Para o jornalista Luiz Cláudio Cunha, consultor da Comissão Nacional da Verdade e é autor do livro Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios – uma reportagem dos tempos da ditadura, a liminar representa “um mínimo gesto de reparação e elegância que o Brasil deve a ela. Quem quiser saber o que fizeram os comparsas e assassinos de Herzog, basta acessar o arquivo da Comissão da Verdade. O horror está todo lá”.
Ele lembra que em países como Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Paraguai, “os generais-presidentes foram despojados de sua arrogância e saíram dos tribunais direto para os calabouços”, enquanto no Brasil os militares que torturaram e mataram durante a ditadura permanecem impunes.
“Apesar de Herzog e outras centenas de vítimas fatais, além de milhares de presos e torturados, o Brasil ostenta uma vergonhosa, humilhante ‘taxa zero’ de punição pelas violências praticadas em duas décadas. Nenhum militar, de qualquer posto ou hierarquia, e nenhum policial foi julgado, condenado e punido pelos crimes e mortes que cometeu a partir de 1964”, ressalta.
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