As armas da polícia: fuzis, baionetas, metralhadoras, espingardas calibre 12, revólveres e até armas de alta precisão, inclusive com miras a laser, gás lacrimogêneo, granadas de efeito moral. As armas dos colonos: pedras, foices, enxadas, facões, facas de cozinha. São os dois lados de uma luta desigual que já dura quase 20 anos, no Rio Grande do Sul, desde que o movimento por reforma agrária foi retomado, a partir do despejo de camponeses na Reserva Indígena de Nonoai, em 1979.
O movimento nunca foi visto por autoridades civis e militares como uma questão social mas caso de polícia. “A justiça, no modo de produção capitalista, está a serviço dos proprietários”, atesta Christa Berger, professora de Teoria da Comunicação na Ufrgs, autora de uma tese sobre o Movimento Sem-Terra sob o olhar da grande imprensa.
Para o professor de Sociologia da Ufrgs, José Vicente Tavares dos Santos, é um equívoco tratar uma questão social como fato policial e as autoridades deveriam ser chamadas à responsabilidade por essa confusão. “É uma situação de conflito que pode levar a uma guerra civil, como já acontece em outros países”, alerta.
Brigada Militar e camponeses se veem frente a frente, sempre que acontecem ocupações ou deslocamentos. Nesses momentos, a tensão é constante. Às vezes, o combate é iminente, com o perigo de um novo conflito, como o que ocorreu na Praça da Matriz, em 1991, que resultou na morte de um soldado da BM e dezenas de agricultores feridos.
“Sabemos que a estratégia do governo é repetir a Praça da Matriz. Um brigadiano que se machuque e eles vão faturar politicamente, indo no hospital, visitando a mulher dele. Em Santo Antônio das Missões, um soldado confessou para nós que eles estavam com medo de morrer”, revela Augusto Olsson, da direção estadual do MST. “Nas últimas ocupações, o governo do Estado preparava um despejo violento para botar a culpa na gente. Mas conseguimos colocar a imprensa no meio e eles não puderam fazer nada”, denuncia.
O secretário de Segurança do Estado, José Fernando Eichenberg, refuta as acusações e afirma que, em três anos e meio de governo Britto, não houve nenhum confronto, “ao contrário de outros estados do país, que registram mortes e agressões violentas”. Porém, ele mesmo lembra da Fazenda Guabiju (Jóia), quando os colonos tentaram ultrapassar a barreira da BM. O encontro causou ferimentos nos dois lados.
MILÍCIAS – Ao contrário dos colonos, os fazendeiros exibem armas e criam suas próprias milícias. Primeiro, com peões em cada fazenda, depois, com atitudes mais ostensivas: armados, impediram o Incra e a Polícia Federal de revistarem as propriedades em Bagé no início de abril e tentaram institucionalizar uma milícia armada em Santana do Livramento – que a pressão de entidades como OAB e Igreja, não deixou prosperar.
“As milícias dos fazendeiros sempre existiram e isso que está acontecendo em Bagé tem articulação do governo. Os fazendeiros sempre portaram armas, têm seu arsenal. A diferença é que hoje eles tentam tornar isso legal”. O governo do Estado se posicionou contra a criação das milícias, mas o MST diz que essa postura só foi adotada por causa da intervenção da OAB.
Olsson afirma que em algumas ocupações polícia e fazendeiros atuaram juntos. “Na fazenda Guabiju, nosso acampamento foi tiroteado por duas noites. A polícia diz que não foi ela. Então quem foi?”, questiona o líder sem-terra. Na fazenda Santa Fé, em 1990, houve enfrentamento com representantes da União Democrática Ruralista (UDR) que, segundo ele, portavam armas pesadas. “Às vezes, a Brigada Militar passa até vergonha perto do que os fazendeiros têm. Às vezes, a Brigada usa os carros dos fazendeiros e come churrasco com eles”, acusa.
“Desde o início, antes do Britto assumir, eles avisaram que o MST seria tratado como caso de polícia. Nesses quatro anos de governo, a única coisa que fizeram foi botar a polícia em cima de nós. Desde o governo Amaral de Souza (que exportou camponeses para o Mato Grosso para se livrar do problema), esse foi o único governo que não fez nenhum assentamento”, denuncia Olsson. O Rio Grande do Sul tem hoje 3.800 famílias acampadas. Para assentá-las, seriam necessários 60 mil hectares, segundo o MST.
REVISTA – Olsson e mais 39 líderes estão com prisão preventiva decretada. Um deles, Ailton Croda, com duas preventivas acumuladas, foi afastado pelo movimento para não ser pego. “É mais uma forma de intimidar o movimento”, garante Olsson. Nas revistas feitas pelos policiais, não escapam sequer crianças e mulheres. “Eles tiram cortador de unha, faca de cozinha e até garfo. Somos tratados como presidiários”.
Durante a última caminhada, em abril, que começou com cerca de 3.200 sem-terra procedentes de despejo das fazendas Guabiju (Jóia), Capão do Leão (Santo Antônio das Missões) e Rubira (Piratini), a polícia realizou diversas revistas à procura de armas e só achou instrumentos agrícolas. “Em São Lourenço, a P2 criou um clima de guerra. Eles passaram pela cidade antes de nós e picharam as placas com ‘fora, MST assassino’. Disseram que iríamos saquear as lojas. A gente teve de passar no comércio perguntando se queriam que assinássemos alguma coisa nos comprometendo a não saquear e quebrar nada”, lembra Olsson. Em Porto Alegre, linha de chegada da marcha, o grupo somou mais de 10 mil participantes.
Em algumas ocupações, a proporção chega a ser de um colono para um brigadiano. Além de não poupar armamento, a corporação demonstra vigor estratégico, como no caso da Fazenda Bom Retiro, em 93, talvez o confronto com o maior número de policiais militares envolvidos. O cerco aos colonos foi feito, pela frente, com o Grupamento de Elite, pelos fundos, com os camuflados, pelas laterais com a polícia de choque e, por trás, os cachorros.
“Nós não vemos Justiça, Legislativo e Executivo como poderes paralelos. Todos estão a serviço do Britto. A única que teve uma visão mais social da situação foi a juíza de Piratini. Os outros juízes obedeceram cegamente às determinações do governador. Em Guabiju, tinham dado um prazo de duas horas para a desocupação, mas o Britto telefonou e o juiz retirou o prazo”. Para o MST, o governador é inimigo declarado do movimento. “Britto proibiu o Milton Seligman (presidente nacional do Incra) de vir aqui a primeira vez. Agora, ele veio por pressão da OAB, Movimento de Justiça e Direitos Humanos e Igreja”, conta.
O secretário Eichemberg acha as acusações dos sem-terra exageradas. “Em momento algum, nesses três anos e meio de governo, houve violência, ao contrário de outros estados do país, que registram mortes e agressões violentas”. Ele assegura que não há qualquer preconceito contra o MST, mas reitera que não admitirá a quebra da ordem pública. “A BM trata a questão da segurança pública de forma impessoal”. Eichemberg ressalta que essa é uma questão legal e que os colonos estão contra a ordem pública quando invadem terras, órgãos públicos e praças. “Isso exige intervenção das autoridades, para prevenção”, diz, acrescentando que, se outros movimentos agirem da mesma forma, também sofrerão represálias. “Não vamos permitir que eles usem seus instrumentos de trabalho na cidade. Isso não cabe”. Para ele, a polícia agiu corretamente em todos os momentos, mas admite que tensões constantes podem gerar conflitos e que sua intenção é evitá-los.
Em todo deslocamento dos sem-terra serão feitas barreiras e desarmamentos, garante o comandante geral da BM, José Dilamar Vieira da Luz. Segundo ele, o papel da Brigada é fazer barreiras para o desarmamento, admitindo nessa atitude um componente psicológico. “Quando se fala em desarmamento cívico, nas entrelinhas queremos desarmar o espírito também”.
Ele defende que seus homens estejam armados durante as ações porque não seria razoável um soldado andar desarmado ao lado de uma pessoa com uma foice ou uma gadanha. “Se chegam três mil colonos aqui e dizem por antecipação que vão fazer invasões, tenho de agir”.
Dos 4.200 soldados da região metropolitana, 450 foram deslocados para acompanhar o acampamento que se instalou em Porto Alegre, em abril. “Desde o momento que vieram para Porto Alegre, o objetivo deles era invadir e entrar em prédios públicos. Não desejamos entrar em choque, mas nossos policiais estão preparados”. Quem dá o alerta é o comandante do Policiamento Metropolitano, Arlindo Bonete.
PECUARISTAS – Os fazendeiros comemoram a revisão dos índices de produtividade que será feita a partir de uma comissão formada para esse fim. O produtor rural Luiz Olavo Sallis, de Bagé, diz que essa decisão é fruto do movimento que fizeram os ruralistas da cidade, capitaneados pela Associação Rural e Farsul, impedindo a entrada de fiscais do Incra em suas terras.
“Nosso governo só age sob pressão. Eles só atenderam quando resolvemos radicalizar, não deixando que entrassem com aqueles índices absurdos”. O presidente do Incra, Milton Seligman, nomeou uma comissão para que, no prazo de 30 dias, faça a apreciação dos índices da pecuária. Sallis revela que o produtor rural se deu conta que, se reivindicar em bloco e organizado, consegue o que quer.
Sallis nega que os fazendeiros estejam obstruindo o trabalho dos fiscais do Incra que, por força de uma liminar, conseguiram com que a Polícia Federal fosse requisitada para acompanhá-los. A PF também não pôde entrar nas fazendas. “Nós não estávamos impedindo nada. Eles só não poderiam entrar nas propriedades para fazer um trabalho que discordávamos”. Ele diz que os produtores têm muita desconfiança do Incra, por ser “muito politizado, numa luta ideológica que não tem fundamento”.
Dorival Sostisso, superintendente adjunto do Incra, discorda que a comissão para estudar os novos índices de produtividade seja fruto da pressão dos fazendeiros. “Os colonos também fazem pressão”, argumenta. Mas, se os pecuaristas acham que vão levar a melhor nessa luta, é melhor aguardarem os resultados. Na avaliação de Sostisso, a pecuária não acompanhou o processo de inovação que se verificou na agricultura, por exemplo. “Pecuária de campo extensivo significa o atraso”, sentencia, criticando a ação dos proprietários de Bagé: “uma quebra do estado democrático de direito”, classifica.