O governo federal e o governo do estado do Rio Grande do Sul foram condenados pela insuficiência de ações para combater a mortalidade materno-infantil. A condenação ocorreu durante a primeira reunião do Tribunal Permanente dos Povos no Rio Grande do Sul, realizada no último dia 29 de julho, na Assembléia Legislativa. A sessão simbólica teve o ritual de um julgamento formal, com advogados de defesa e de acusação, depoimentos de testemunhas e júri. A sociedade também foi condenada por omissão diante do quadro em que se encontram as crianças e as mulheres nos estados do Sul.
O júri foi composto por 13 representantes da comunidade e de organizações não-governamentais, entre as quais Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, Pastoral do Menor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Movimento de Justiça e Direitos Humanos e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Foram relatadas sete denúncias: a morte de crianças, por falta de atendimento médico, em acampamento sem-terra e em aldeia indígena; mulheres que tiveram filhos natimortos por não terem acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e acompanhamento médico durante a gravidez; tortura, maus tratos e morte de adolescentes na Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem); a proliferação da Aids por falta de uma política séria de prevenção; a exploração sexual de meninas; e o alto índice de mulheres que morrem em conseqüência da gravidez ou parto sem atendimento e acompanhamento médico. (Veja box)
Depois de ouvirem também o relato de seis programas implantados pelo governo para diminuir a mortalidade materno-infantil, o júri condenou, por unanimidade, o governo federal e o governo estadual por não cumprirem a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente e não desenvolverem políticas sociais necessárias para atender a população carente. Ao votar, cada jurado justificou o seu voto.
SENSIBILIZAR – O Tribunal Permanente dos Povos é uma entidade internacional, com atuação reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU). Criado em 1979 pelo jurista italiano Lélio Basso, o organismo investiga, julga e propõe soluções para questões sociais de relevância mundial.
Os dois principais objetivos da sessão internacional do Tribunal Permanente dos Povos no Brasil é sensibilizar os governantes e a sociedade sobre a distância que há entre os fatos do dia-a-dia e as normas estabelecidas tanto na declaração Universal dos Direitos da Criança, da ONU, como na Constituição Brasileira e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); e avaliar a ECA e sua vinculação às políticas públicas. No Rio Grande do Sul, a sessão simbólica foi organizada pela OAB/RS.
MOBILIZAÇÃO – O resultado do julgamento será levado para um encontro nacional a ser realizado em São Paulo no dia 27 de novembro, onde serão apresentados os resultados de sessões semelhantes em outras regiões brasileiras. Houve sessões em Belo Horizonte, Manaus e Cuiabá, discutindo violência e exploração sexual infantil, situação das crianças de rua e exploração da mão-de-obra. Depois, os documentos serão encaminhados à sede do Tribunal Permanente dos Povos, em Roma.
“Foi um ato político inédito”, assegura o advogado criminalista Nereu Lima, um dos promotores do julgamento. “Este tribunal não tem o poder de sanção, mas tem o poder de denunciar ao mundo os países que estão descumprindo os direitos humanos e desrespeitando a filosofia de proteção integral da criança e do adolescente. E a denúncia ética é uma das piores porque atinge a consciência política”.
O advogado e coordenador dos trabalhos do evento no Rio Grande do Sul, Jayme Paz da Silva, diz que a OAB está preparando os anais da sessão do Tribunal em Porto Alegre. A publicação contará todo o processo, das investigações ao veredicto. “Este tribunal levantou o problema e pode dar subsídios para o prosseguimento das discussões, inclusive, em nível parlamentar”, observa. “Que se forme a discussão para que passem a surgir trabalhos que possam realmente melhorar esta situação social”.
Acusações julgadas
Crianças mortas
Mês de junho. Acampamento de sem-terras no Distrito Industrial de Viamão. Em decorrência das precárias condições em que viviam, quatro crianças morreram vitimadas por doenças pulmonares infecciosas, juntando-se às duas que já haviam perdido a vida no mesmo acampamento. A denúncia foi apresentada pelo Fórum Pela Reforma Agrária e Justiça no Campo.
Acusação: Omissão do governo federal quanto à reforma agrária e com as populações migrantes que perambulam de lugar em lugar esperando a efetivação do Plano Nacional de Reforma Agrária; e omissão da Secretaria de Estado da Saúde, responsável no estado pela assistência à saúde da população, que só passou a atender aquela comunidade parcialmente após a morte das crianças.
Morte de bebês
Mês de abril. Assentamento Segredo Farroupilha, no município de Encruzilhada do Sul. Por falta de atendimento médico, três gestantes tiveram filhos natimortos em partos realizados no Hospital Santa Bárbara. Denúncia apresentada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do RS. Acusação: A Secretaria de Estado da Saúde não assegura atenção materno-infantil às populações com difícil acesso aos municípios, e o Sistema Único de Saúde (SUS) não dispõe de mecanismos para assegurar o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher(PAISM). O Estado descumpre a Constituição, o ECA e não implementa a Plataforma de Beijing, de 1995, através da qual o país assumiu junto à comunidade internacional a redução de mortes maternas.
Bebês indígenas mortos
Inverno de 1998. Município de Passo Grande. Pelo menos três bebês indígenas morreram por infecções respiratórias, de fome e falta de acesso aos Sistema Único de Saúde (SUS).
Denúncia apresentada pelo Fórum Permanente Intermunicipal sobre a Questão Indígena.
Acusação: O governo federal, através da Funai, é cúmplice das mortes das crianças quando permite que os índios – sem terras demarcadas para suas reservas – morem na beira de estradas, sem as menores condições de dignidade. A Fundação Nacional de Saúde é omissa quanto à saúde das populações indígenas. Falta de uma política para a questão indígena no estado.
Morte de adolescentes
1996/1997 e 1998. Fundação Estadual do Bem Estar do Menor (Febem). Capital do Estado. Nos últimos três anos, a Febem foi palco de 31 rebeliões. Nove adolescentes de 14 e 18 anos de idade foram mortos: cinco queimados, três enforcados e um de causa ignorada após sofrer uma queda misteriosa. Denúncias de torturas, maus tratos e o uso de psicotrópicos para controle da população de internos. Denúncia apresentada pelas Comissões de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e da Câmara de Vereadores de Porto Alegre.
Acusação: O governo do estado contribuiu para as mortes das crianças e adolescentes e para a situação de caos a que chegou o Instituto Criminal do Menor (ICM) – descumprimento, por parte da então presidente da Febem, de todos os princípios do ECA.
Epidemia da Aids
Brasil. Por ser considerada uma doença de grupos de riscos (restrita a homossexuais masculinos e prostitutas), a Aids proliferou no Brasil. Hoje, são aproximadamente 100 mil mulheres infectadas pelo HIV, vírus da Aids. O vírus é transmitido na gestação, parto e amamentação aos bebês. Denúncia apresentada pela Rede Nacional de Pessoas com HIV Positivo.
Acusação: Incompetência do estado na contenção da epidemia, principalmente por não ter a capacidade de analisar o perfil epidemiológico da doença, tratando-a como doença de gays e prostitutas. A política adotada comprometeu o conhecimento da população quanto as reais formas de contágio do vírus HIV. A Secretaria de Estado da Saúde reproduziu a mesma política.
Exploração sexual
Brasil/Rio Grande do Sul. Uma rede de tráfico de crianças para fins de exploração sexual funciona em todo o país. No Rio Grande do Sul, um conjunto de ações da sociedade e de leis municipais têm tentado barrar este comércio espúrio. As meninas são levadas para hotéis, hospedarias e pensões, passando a integrar o comércio e o turismo sexual. Nos jornais dominicais os anúncios oferecem programas com garotas. As meninas de ruas são outra faceta da marginalização da adolescência, vítimas fáceis da violência, doenças sexualmente transmissíveis, inclusive a Aids e a gravidez precoce. Denúncia apresentada pela Campanha Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
Acusação: O estado tem sido incapaz de desenvolver uma política eficaz de combate à violência contra as crianças, e que a sua forma de atuar neste campo desrespeita a organização determinada pela ECA. Políticas sociais eficazes foram desmontadas.
Morte materna
Brasil/Rio Grande do Sul. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), no Brasil, o risco de uma mulher morrer em conseqüência da gravidez ou parto é, em média, de 1 a cada 130 casos, um índice, no mínimo, 20 vezes superior ao que a própria OMS pode admitir, que é de uma morte a cada três mil casos. Situadas em setores do mercado de trabalho pior remunerados e nos quais não se reconhece a escolaridade feminina, as mulheres acessam menos de 45% da renda em relação aos homens. Enormes parcelas são chefes de família, mas vivem sem a garantia de direitos trabalhistas, operando em domicílio. A violência doméstica é fator de risco de vida e de saúde. As mulheres negras são as mais penalizadas pelo modelo econômico imperante, não havendo políticas públicas federais e estadual para retirá-las da miséria e da doença. Denúncia apresentada pelo Fórum Municipal da Mulher e Associação Cultural da Mulher Negra.
Acusação: O governo federal não cumpre a Plataforma de Beijing. O governo estadual aborda esta realidade com políticas ineficazes e sem controle epidemiológico das mortes maternas – sendo omisso na sua responsabilidade de assegurar a atenção à saúde da mulher e que não dispõe de política de criação de empregos e melhoria sócio-econômica para as mulheres, desrespeitando, ainda, as instâncias de participação democrática.