MOVIMENTO

Em nome da Pátria

Dois Santos dos Santos / Publicado em 24 de outubro de 1999

Raramente houve patriotismo tão explícito, homogêneo, unâni-me e ululante quanto o que se encarna no espírito dos que ora governam o país. Uma verdadeira “possessão patriótica” tomou conta dos Donos do Poder, coisa saudável não fosse o ressaibo demagógico e oportunista que dali às vezes exala.

Vários patriotas exemplares têm produzido frases no estilo “os juízes não pensam no bem do Brasil”, do ministro Bresser Pereira, comentando sentença do Supremo Tribunal Federal contra a União, ou “ele queria o melhor para o país”, sobre a preferência do ex-ministro Mendonça de Barros por uma das empresas, no leilão do Sistema Telebrás. Quem tiver paciência pode coletar um monte, patriota é o que não falta. Mas ninguém se aproxima, nesse terreno, do patriotismo messiânico de Sua Excelência, o excelso Sr. Presidente da República.

Durante meses este escrevinhador guardou com a foto de Sua Excelência esta frasezinha comprobatória desse patriota irreprochável: “Eu barganho, sim, eu barganho pelo bem do Brasil”. Apesar de se eleger, no primeiro mandato, prometendo combater o fisiologismo, nunca, segundo seus críticos, a máquina do Estado foi tão intensa e avassaladoramente usada a serviço do processo político quanto neste reinado. De barganha em barganha, ele conseguiu aprovar quase tudo o que quis, começando pela emenda da reeleição, a que mais lhe interessava (“para o bem do Brasil” , mas que segundo o jornalista Elio Gaspari “… é a mais profunda e daninha reforma constitucional da história republicana…”) até as incongruentes reformas estruturais do Estado.

É provável que jamais alguém assim ilustrado haja assumido a presidência do país. No entanto, sob o rótulo da qualidade pode-se ocultar um defeito. Lembra a frase atribuída ao escritor José Lins do Rego a respeito dos concretistas. Quando lhe perguntaram o que achava daquele grupo de poetas excepcionalmente cultos e informados, disse: “Eles são inteligentes demais, deviam tomar um banho de burrice”. Também a inteligência superlativa de Sua Excelência nos humilha, nos ofende e nos oprime, a nós, os neobobos, os caipiras, a esquerda burra e tutti quanti. Lá das alturas, a sua arrogância intelectual troveja sobre os mortais um saber que repele qualquer contestação. Está sempre com a razão contra o resto do mundo. Em vez de se perguntar “o que há de errado comigo, que o povo me rejeita?”, ele pergunta “o que há de errado com o povo, que não consegue me entender?”

Se fosse um pouquinho burro (só o suficiente), se tropeçasse no equívoco, se esbarrasse no engano, se cometesse algum erro, desacerto, logro, falta ou trapalhada como a gente comum e normal, talvez pudéssemos aceitá-lo, ou amá-lo. Porque só a burrice humaniza e salva, dando-nos a dimensão verdadeira das coisas. Nelson Rodrigues, o grande dramaturgo, fazia abluções freqüentes na burrice para alcançar a iluminação.

Para concluir, vamos propor uma tese simplória, anti-acadêmica, na tentativa de explicar o pensamento de Sua Excelência, o Excelso. Em “1984”, romance de George Orwell, há um capítulo que trata de uma nova língua, a novilingua, que utiliza técnicas especiais de pensamento, uma delas chamada duplipensar, definida como “a capacidade de guardar na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas”. Assim, devemos ver pelo avesso as afirmações de Sua Excelência. Quando ele diz “nunca se fez tanto pelos pobres no Brasil”, leia-se “os pobres foram abandonados a si mesmos”; quando brande “tantos milhões foram incluídos em meu governo (ao consumo, acima da linha de pobreza)”, leia-se “os excluídos são a maioria da nação”; quando nos informa que “os juros são os mais baixos dos últimos anos”, leia-se “os juros estão na estratosfera”. E daí por diante, pegue qualquer exemplo, inverta, e estará mais próximo da realidade. Senão, como em “1984”, sob a sua chibata retórica ainda vamos acabar concordando que dois mais dois são cinco.

Já que estamos na ficção de Orwell, às vezes este escriba sente- se tentado a fantasiar, imaginando se o “Grande Irmão”, personagem incorpórea, vaga e invisível que se confunde com o Sistema, não estará entre nós, dissimulada na pessoa de Sua Excelência, o excelso, visto que a maioria dos atributos deste coincidem com os daquela Entidade: – “No alto da pirâmide está o Grande Irmão. O Grande Irmão é infalível e onipotente. Cada sucesso, realização, vitória, descobrimento científico, toda a sabedoria, sapiência, virtude, felicidade, são atribuídas diretamente à sua liderança e inspiração”.

* Poeta, autor de Sobre Corpos e Ganas (1995)

Comentários

Siga-nos