Todos os dias as ruas de Porto Alegre são o cenário de uma corrida que de tão cotidiana já quase não é notada. As 2.712 carroças puxadas por animais e as centenas de carrinhos de ferro com tração humana disputam espaço com os 637 mil veículos de tração motora que circulam todos os dias nas ruas da capital para chegarem antes. Mas antes de quem e para quê? A corrida é contra os caminhões de recolhimento de lixo. O objetivo: separar e recolher a sucata antes do DMLU. O motivo é simples. Lixo é moeda corrente tanto para os que vivem na miséria como para as grandes empresas.
O mercado de reciclagem movimenta muito dinheiro e na ponta estão os papeleiros, pessoas de origem humilde que recorrem a esta prática para ganhar honestamente o seu sustento. Famílias inteiras se dedicam a isso. Parece fácil, mas não é. O trabalho é duro. É preciso andar quilômetros, acordar cedo e dormir tarde, muitos não dormem à noite para aproveitar a madrugada e pegar o trânsito mais tranqüilo. “Feriados e finais de semana, nem pensar”, diz o catador Adilson da Silva, 23, morador da Vila dos Papeleiros, enquanto desmonta caixas de papelão para acomodá-las no seu carrinho. Ele e a esposa Luísa dos Santos, 34 anos e grávida de seis meses, caminham das 8 horas da manhã até às 22 horas, em média, na busca de seu objeto de desejo, o lixo que já não é mais alheio e pertence a quem chegar primeiro. Geralmente os carrinhos são consignados pelos depósitos clandestinos que intermediam a venda do material e “empregam” os papeleiros. “Eu sou empregado de um senhor lá da vila”, diz Adilson. Quando questionado sobre quem seria seu patrão, ele é evasivo. Diz apenas que a referida pessoa não gosta de ser mencionada e que, na verdade, ele não tem carteira assinada e teme falar à reportagem sobre o assunto. “Melhor não falar quem é”, encerra. A informalidade existe mas a exploração do trabalho é institucionalizada. Antônio Maciel, 52 anos, é um desses atravessadores. Trabalha no ramo há mais de 12 anos e ganha uma pequena margem de lucro, “micharia”, segundo ele, no caso do papelão, cerca de oito centavos por quilo. Ele administra um galpão e empresta os carrinhos aos catadores. Antônio vende estes produtos a outros atravessadores que repassam às empresas que reciclam. No caso do alumínio, ele chega a pagar R$ 1,00 o quilo e acresce 30% no repasse para fazer a intermediação. Mas garante que não tira mais do que R$ 300,00 por mês para contribuir com as despesas de sua casa no bairro Santana em uma família de oito pessoas.
Nicanor do Paraguai, 42 anos, catador há dois anos perdeu o emprego como ajudante de pedreiro e foi buscar nos carrinhos de papel o seu sustento diário. “É pouco o dinheiro que a gente ganha mas dá pra gente sobreviver. Consigo até guardar algum para mandar para minha filha no final do ano.” Refere-se a cerca de R$ 150,00 que paga como pensão anual à filha de seu primeiro casamento. Ele mora no próprio depósito onde é feita a separação do lixo e alimenta-se geralmente de doações e embolsa pouco mais de R$ 8,00 por dia, dinheiro utilizado principalmente para vestir-se e ajudar a família.
É comum a sucata passar por até dois atravessadores antes de chegar a seu destino final, as empresa recicladoras ou mesmo as próprias indústrias. Mas são eles, os papeleiros, que fazem o serviço “sujo”. Para isso é preciso algum conhecimento dos trajetos do DMLU e dos horários de coleta em todas as vias. Para valer a pena é preciso recolher o filé: latas, papelão, cobre, vidro. A recompensa: centavos a cada quilo, dependendo do material, mas a féria diária, apesar de pouca, é fundamental. Em geral fica entre R$10,00 e R$15,00. Difícil saber quanto isso vale para as empresas. Trata-se de um segredo de estado, em geral guardado a sete chaves. É o caso do Grupo Gerdau, maior comprador de lata ferrosa dos galpões de reciclagem. A empresa paga em torno de R$ 50,00 por tonelada aos atravessadores e R$ 40.00 aos galpões de reciclagem. Utiliza 2 milhões de toneladas deste material por ano na fabricação de aço, representando compras na cifra de R$ 10,5 milhões. Sabe-se que o negócio é vantajoso, mas quanto de vantagem isto significa em dinheiro não é revelado. “Esta é uma questão considerada estratégica e ninguém do grupo está autorizado a falar no assunto”, informa a assessora de imprensa da empresa do outro lado da linha. Na questão do vidro não há segredos. Wilson Khols, coordenador de matéria-prima da Vidraria Santa Marina (Subrasa), em Canoas, diz que a margem de economia é de 5% no que se refere ao custo por tonelada e 25% no consumo de energia para o processamento do material. “O grande ganho é ambiental”, afirma. Segundo ele cada tonelada de matéria-prima teria um custo total no processo de industrialização do vidro de R$ 100,00 e o material reciclado sai por R$ 92,00. Como a cada mês são recicladas 4 mil toneladas, a economia é de cerca de R$ 34 mil. Já na área de plásticos, a economia chega a 25% em cada tonelada. Lívio Schwarz, diretor executivo da Associação Brasileira de Materiais Plásticos, ressalta que se trata de um grande negócio, uma vez que é possível ter um ganho adicional de até R$ 500,00 em cada tonelada.
Hoje, no Brasil, são utilizadas 300 mil toneladas por ano deste tipo de sucata pela indústria. O preço da tonelada paga aos galpões de triagem nas vilas e depósitos fica em torno de R$ 130,00 a R$ 230,00. Ou seja, as empresas lucram nas duas pontas, no processo de produção e pagando mais barato por esta matéria-prima, menos de 50% do valor real.
O papel é justamente o principal componente reciclável do lixo produzido no país. Representa entre 20% e 28% do lixo produzido e resultou em um terço da produção de papel brasileira em 1999, segundo a Associação Brasileira de Celulose e Papel (Bracelpa). “Dos 180 fabricantes de papel no Brasil, 124 são recicladores. Este tipo de indústria já existe, aqui há 110 anos e não é novidade. São produzidos mais de 2,4 milhões de toneladas com material reciclável. Agora quanto se ganha com isso ninguém vai dizer. Nem eu que também sou empresário do setor”, diz Alberto Fabiano Pires, consultor da entidade, admitindo tratar-se de um negócio lucrativo. Para ele, é bom que seja assim, pois se dependesse apenas da questão ecológica, seria um negócio deficitário e não iria adiante. “É preciso acabar com este mito de que reciclar papel poupa árvores. Não é verdade. Dá dinheiro, gera empregos e divisas para o País. Esta é a verdadeira importância”, esclarece.
Uma vila de papel
D.M.S., 13 anos, órfão de pai e mãe: “Recolho papel porque nuncamais quero voltar para aquele lugar (a Febem). Aquilo lá é muito ruim. A gente apanha. É triste”. Ele não freqüenta escola. “Eu trabalho”, justifica.
Só para se ter uma idéia da importância da reciclagem de papel, uma vila inteira vive do recolhimento deste e de outros materiais. Trata-se da Vila dos Papeleiros, uma pequena favela localizada entre as avenidas Voluntários da Pátria e Castelo Branco, em Porto Alegre. São pelo menos 250 famílias que habitam casebres, muitos deles construídos com a própria sucata. Vivem em sub-habitações e condições muito precárias de higiene e saneamento básico simplesmente não existe. Não raro surge uma outra questão delicada, a do trabalho infantil. Torna-se quase inevitável pois muitas vezes a participação de cada um é fundamental para que os ganhos possam suprir as necessidades diárias de todos. É o caso de D.M.S., 13 anos, órfão de pai e mãe. Ele vive com o irmão mais velho, de 18 anos, que também é papeleiro, e tem um irmão preso na Febem, onde também já esteve por ter roubado um par de tamancos. Há ainda outros dois irmãos menores que foram adotados. “Recolho papel porque nunca mais quero voltar para aquele lugar. Aquilo lá é muito ruim. A gente apanha. É triste”. Douglas não freqüenta escola. “Eu trabalho”, justifica.
O catador Breno Gonçalves, 42 anos, ex-servente de obras relata que trabalha com papel há três anos, desde que perdeu o emprego e teve que vender sua casa na Lomba do Pinheiro, onde já não tinha condições de pagar sequer as contas de água e luz. “Mal sobrava dinheiro para comer”, confessa o pai de oito filhos, observado pela esposa da porta do casebre à beira da rua, com um bebê no colo. As demais crianças ficam à volta do pai ajudando a descarregar o carrinho para triagem do material. “Aqui pelo menos não preciso pagar água nem luz e a gente tem um lugarzinho para se esconder. O único problema é a dor nas pernas. Mas isso a gente resolve dando uma espichada antes de dormir”, diz com um desconcertante otimismo.
“É como se vivessem num lixão”, afirma Mário Diniz Xavier, superintendente de Ação Comunitária e Regularização Fundiária do Departamento Municipal de Habitação (Demhab). Segundo ele, existe um projeto de recuperação urbana de toda a região considerada porta de entrada da capital gaúcha.
Entre as áreas a serem recuperadas está a Vila dos Papeleiros, porém ela não consta entre os locais em que serão implementadas as primeiras ações, que devem iniciar a partir de janeiro de 2001. “As soluções habitacionais devem ser feitas de forma integrada. Se separarmos esta questão da garantia de renda destas famílias, o projeto fracassa e elas acabam migrando para outros locais e construindo novos casebres”, explica Xavier. Para o superintendente trata-se ter certeza de que estas famílias conseguirão se manter a partir de sua atividade econômica principal, no caso, o recolhimento e a comercialização de lixo reciclável.
Mas nem todos os que vivem da reciclagem compartilham a mesma realidade. Existem pelo menos oito unidades de reciclagem espalhadas em toda a capital com o objetivo de realizar a triagem do material recolhido pela coleta seletiva coordenada pelo DMLU. Os galpões são patrimônio do município com equipamentos cedidos na forma de comodato. Cerca de 450 pessoas são ocupadas nestes galpões com renda média de dois salários mínimos. Conforme Rosalino Mello, coordenador do departamento, embora os catadores de rua recolham duas vezes mais que os caminhões, conseguimos gerar trabalho, ganho ambiental e econômico para estas comunidades carentes com o que é obtido na coleta seletiva. “Apenas 60 toneladas, das 250 do lixo reciclável é aproveitado em Porto Alegre. Ao todo são 950 toneladas/dia. Se os moradores se conscientizarem, mais material poderá ser reciclado e um maior número de famílias beneficiada e teremos uma consideral economia de espaçõ e aumento da vida útil dos aterros”, adverte.
Celoi Saraiva da Rosa, 31 anos ex-catadora e atual presidente da Associação de Recicladores do Loteamento Cavalhada, resume a questão da seguinte forma: “ou tu é explorado, ou vira ladrão. Para o pessoal das ruas o carrinho é questão de sobrevivência. Tu trabalha de dia para comer à noite”. Celoi recorda que foi catadora de rua desde os 7 anos. Atualmente lidera a associação. “Agora não precisamos mais recolher o lixo, correndo riscos no trânsito. Já vi gente ser atropelada e morta. Aqui as pessoas encontram uma forma de trabalho digno e sentem orgulho disso, não vivem à margem, excluídas. Fazem parte de um processo maior que traz contribuições tanto para nosso ganho pessoal como de toda comunidade”, diz. A coleta é feita pelos caminhões da prefeitura. Os ex-papeleiros se resposabilizam pela triagem do material para venda direta à indústria, sem intermediários. Os galpões funcionam 24 horas e os trabalhadores se revezam em turnos.