MOVIMENTO

A terceira margem do trabalho

Marcia Camarano / Publicado em 15 de novembro de 2000

acampmtd6O acampamento visto ao lado da fábrica da GM, entrando pela BR 130, em Gravataí, não é mais uma ocupação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), como podem pensar os desavisados. Trata-se, isto sim, do primeiro acampamento organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), onde, desde maio, convivem 200 famílias vindas da região metropolitana cujos chefes, seja por falta de qualificação, escolaridade, idade, sexo ou qualquer outro “perfil” exigido numa proposta de emprego, não encontram mais lugar no mercado de trabalho.

A área ocupada, com 22 hectares, foi desapropriada no governo Britto e está sub judice. Hoje, os líderes do MTD e o governo do Estado estão negociando um acordo para a desocupação, desde que haja o reassentamento em outro local, com garantia de trabalho e moradia. Enquanto isso não ocorre, os acampados sobrevivem, resolvendo de forma coletiva os problemas que, antes dessa realidade, eram individuais.

“Se estou desempregado, o problema é meu, diz a sociedade lá fora. Mas quando a gente se junta, o problema passa a ser coletivo”, afirma Rosimar Vieira, 33 anos, casado, pai de dois filhos. Metalúrgico, ele ficou quase nove anos no seu último emprego, uma fábrica de armas em São Leopoldo, hoje quase falida, com menos de 10% da força de trabalho que tinha há 10 anos. Demitido e “carimbado” por pertencer ao sindicato da categoria, as portas se fecharam. Então, surgiu a proposta do acampamento e Rosimar abraçou. Hoje, ele faz parte da direção estadual provisória do MTD.

Quem pensa que é só ir chegando para pertencer ao grupo, está enganado. Viver em coletividade tem suas regras e o primeiro acampamento de desempregados organizados tem um regimento interno com normas básicas de comportamento. Quem não cumpre, está fora. As famílias são divididas em núcleos e os adultos têm tarefas a cumprir para manter a vida em comum organizada, seja na educação, higiene, saúde, alimentação e segurança, entre outros itens. As regras são mais rígidas em relação ao consumo de álcool e drogas. Por não se adequarem ao regimento, mais de 40 pessoas já saíram.

“Os que visualizam um futuro, esperança de uma vida melhor, amparados um no outro, esses ficam. Os outros vão embora”, explica Mauro Cruz, um dos coordenadores do MTD. E os que ficam, pelo menos têm o que dividir, pois uma horta comunitária fornece verduras, temperos e até chás. Nela trabalham 10 pessoas, coordenadas por Cézar Carvalho 41 anos, pedreiro de profissão, mas que nos últimos tempos conseguia raros biscates. Ele saiu de Sapiranga e veio para o acampamento, junto com o filho e a mulher, Geci dos Santos, 39 anos, 17 dos quais trabalhando no ramo calçadista. “As duas últimas firmas em que trabalhei faliram”, lembra. Geci, hoje coordenadora de núcleo e integrante da direção do acampamento.

E não é só isso. Para matar a fome no acampamento, que possui 62 crianças, entre seis meses e 16 anos, o grupo instituiu uma mini-padaria, que consegue produzir 50 pães por dia. Isso, no entanto, é uma luta diária. No dia 16 de outubro, por exemplo, não teve pão, porque a farinha acabou. Um problema enfrentado pelo grupo hoje é a falta de estrutura para ampliar o projeto, pois o sonho de quem trabalha na padaria é produzir pães para vender fora do acampamento.

“Se temos problemas, temos que pensar em como resolver juntos”, ensina Marli Vieira, que possui o 2º grau e assumiu a função de professora do Mova (alfabetização de adultos). “Com todas as dificuldades que isso acarreta”, acrescenta. Sim, porque no início, se inscreveram 21 alunos para as aulas, dadas em um galpão que também serve para as reuniões da comunidade.

Lidar com adultos é mais difícil, porque eles têm suas tarefas, seus sistemas de vida e isso significa falta de seqüência das aulas. “Mas a gente vai tocando, porque esse é um projeto importante e muita gente não consegue emprego lá fora porque não é alfabetizada”.

Já as crianças estão sendo matriculadas nas escolas próximas, com a ajuda da Delegacia de Ensino de Gravataí. Porém, muitas não conseguiram vagas, porque chegaram com o ano letivo em andamento. “Encaminhamos para a Secretaria de Educação a proposta de uma escola itinerante, que até é mais conveniente para a realidade das nossas crianças”, informa Marli. Para auxiliar na organização, alguns homens resolveram construir uma ciranda, uma espécie de creche, onde as crianças brincam e aprendem sob os cuidados de um adulto enquanto os pais trabalham.

No local que serve de sala de aula, carteiras e quadro-verde foram doados, assim como as cinco máquinas de costura, equipamento básico para os trabalhos artesanais que estão sendo confeccionados: luva para forno, bolsas, porta-óculos, porta papel higiênico, puxa-saco e capa para colchão.

Todos sonham com cooperativas de trabalho, de onde possam tirar seu sustento. Rosimar informa que está sendo gestada a cooperativa de trabalhadores em construção civil e metalurgia e a outra frente de trabalho é a cooperativa de artesanato.

Bem ao lado da sala de trabalho funciona a farmacinha básica, com alguma coisa para curativos rápidos e dores de cabeça, coordenada por Hélio Coromberque, um vigilante de 47 anos que perdeu o emprego há três meses, e Lídia Selva, 46, uma costureira que não conseguia mais emprego por causa da idade e não agüentava mais ouvir a frase “passa outro dia”. A menina dos olhos deles é a coleção de ervas para chás de todos os tipos, mais conhecidos como fitoterápicos. “Há quatro meses fiz um curso de especialização”, comemora Hélio. Casos mais complicados de doenças são encaminhados para as unidades de saúde ou para o pronto-socorro de Gravataí

Todas as histórias são de vida e de trabalho, de gente que vivia com dignidade e que, com a perda do emprego e sem perspectiva de outro, viu o mundo desmoronar, sem a solidariedade de ninguém. Um segmento cada vez maior da sociedade, o dos desempregados, que até agora não tinham qualquer tipo de organização. “Nós começamos a nos juntar, conversar e resolvemos fazer um núcleo permanente de organização dos desempregados”, lembra Mauro Cruz.

O embrião foi a luta pelo não pagamento de água e luz por quem não tivesse emprego. A idéia se transformou em projeto de lei da deputada Jussara Cony (PC do B) vetado pelo então governador Antônio Britto. Perderam um combate, mas não perderam a guerra e agora, estruturados, a tendência é, cada vez mais, surgirem acampamentos de desempregados pelo Estado e até pelo Brasil. “O primeiro é o de Gravataí, mas o até o final do ano, haverá outros”, diz Mauro Cruz.

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