Em todo o Brasil, as rádios comunitárias já chegam a dez mil. No Rio Grande do Sul são 250 emissoras aguardando autorização para funcionar dentro da lei. Confundidas com rádios piratas, muitas emissoras comunitárias sofrem com repressão e apreensão de seus equipamentos.
Fotos:René Cabrales
Fotos:René Cabrales
Das tantas Medidas Provisórias editadas pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso – uma média de duas por dia – uma, encaminhada agora em maio, garante o funcionamento das mais de 600 rádios comunitárias que estão com seus pedidos de concessão no Congresso Federal. No Rio Grande do Sul, são 26 as rádios que podem funcionar a partir dessa MP. Mas o que a princípio é para ser comemorado passa a ser alvo de desconfiança e crítica por parte dos líderes de um movimento que, a cada dia que passa, ganha mais espaço em todo o país: a luta das comunidades para se expressarem livremente, através de um canal que fale das suas realidades.
“O governo federal lançou essa Medida Provisória pressionado pelo movimento, pois já somam mais de dez mil rádios comunitárias em todo o país, mas o correto seria o trâmite mais rápido da avaliação e concessão dos pedidos”, argumenta Domingos Freitas de Oliveira, presidente da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias no Rio Grande do Sul (Abraço/RS). No Estado, são 250 instituições aguardando o direito de entrar em funcionamento.
Como quem espera nunca alcança, a maioria enfrenta os rigores de uma lei que muito dificulta e pouco facilita, colocando seus programas no ar. Ao todo, em solo gaúcho, são 60 funcionando. Se elas estão contra a lei? O próprio Domingos Oliveira dá a resposta. “O funcionamento é legítimo, porque as próprias comunidades dão essa legitimidade”. Porém, o preço a pagar pela desobediência é alto, a repressão é muito grande. O Rio Grande do Sul é um dos estados que mais sofrem com a pressão pelo fechamento de rádios comunitárias. Muitas entram no ar, ganham a solidariedade das comunidades, mas em seguida são fechadas.
“A Agert (Associação Gaúcha de Emissoras de Rádio e TV) é a entidade das rádios comerciais, que tem todo o interesse em nos manter fechadas. Ela faz as denúncias para a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações, responsável pela regulação do setor), que manda a Polícia Federal para cima. Aí acontece apreensão de equipamentos, prisões. Eles chegam com um aparato como se fossem prender marginais”, desabafa Oliveira. Ele conta que a pressão das rádios comerciais e grandes empresas de comunicação é muito forte para que as comunitárias permaneçam fechadas.
Oliveira ainda aponta uma estranha coincidência. “No mesmo período em que não se verificou sequer uma concessão de rádio comunitária, dezenas de comerciais ganharam permissão de funcionamento. E, ao contrário dos nossos processos, que são demorados, os deles são bem rápidos”. Por conta da demora da esfera federal em liberar as concessões, várias rádios estão conseguindo na justiça o direito de ir ao ar.
Domingos Oliveira ainda denuncia que várias rádios estão conseguindo suas concessões sem serem verdadeiramente comunitárias, atropelando muitas que estão há longo tempo na espera. “Muitas concessões estão sendo feitas por interesse político. O caráter comunitário é só de fachada. Nós defendemos as rádios realmente comunitárias, conforme a lei determina, com um conselho comunitário formado por, no mínimo, cinco entidades. Aliás, essas rádios de fachada é que estão contra a lei, pois às comunitárias é proibido o lucro e o vínculo político ou religioso”.
O presidente da Abraço/RS está nessa luta há quase cinco anos, desde que teve a idéia de colocar no ar, em Cachoeira do Sul, onde mora, a Rádio União Comunitária, uma das primeiras no Estado com esse caráter. Ela foi ouvida pela primeira vez em dezembro de 1996. De lá para cá, foi fechada quatro vezes, com prisões e apreensão dos equipamentos. “A comunidade é que adquiriu os equipamentos e estamos lutando para reavê-los. Cada vez que a polícia leva o material, o prejuízo é de R$ 3 a 4 mil. Agora mesmo, estamos fora do ar e sem equipamento”. Oliveira acha que, por toda a história de enfrentamento, talvez a rádio que ele representa nunca receba sua concessão. “Mas é importante abrir caminho para que outras consigam”, enfatiza.
O presidente da Agert, Paulo Sérgio Pinto, afirma que a entidade nada tem contra as rádios comunitárias. “Pelo contrário, sou a favor. Agora, sou contra as que funcionam ilegalmente, as que não cumprem as leis trabalhistas, até porque não têm funcionários, as que não pagam impostos, não têm respeito à ética, não reproduzem a Voz do Brasil…nada. Às legais, tudo, às ilegais, os rigores da lei”.
Pinto acrescenta que a demora para a concessão de funcionamento não atinge somente as rádios comunitárias, mas também as comerciais e que muitas delas esperam por isso há mais de seis anos. “A morosidade tomou conta desse país.” Ele confirma a ação direta da Agert, junto com a Anatel e a Polícia Federal, nos casos de fechamento de rádios sem permissão para funcionar. “No Colégio Padre Reus há uma rádio ilegal. Há dois meses, fomos lá e fechamos, mas eles conseguiram uma liminar. Vamos entrar com uma série de ações contra o diretor dessa escola, pois ele está ensinando a prática da ilegalidade”.
A Anatel acaba de lançar um vídeo no qual, para explicar suas funções, faz alertas que chegam a assustar: “Sinal organizado é um bom sinal; a má utilização, quando não atrapalha, mata”. Chama a atenção para a poluição das ondas, ou do espectro de rádio freqüência. Conforme a entidade, uma das vítimas dessa poluição, “que não tem cheiro, não tem cor, mas se reflete na segurança”, é a aviação. O problema de interferência nas ondas é resolvido pela Anatel com fiscalização e punição. O uso não autorizado do espectro ocasiona sanções financeiras que podem chegar a R$ 50 milhões, fora a apreensão dos equipamentos e as prisões dos infratores.
Edilson Ribeiro dos Santos, gerente geral de fiscalização da Anatel, reitera que a clandestinidade é um crime de ação penal pública incondicionada e o infrator está sujeito a uma pena que varia de dois a quatro anos, que pode ser dobrada se causar danos a terceiros. O presidente da agência, Pedro Navarro Guerreiro, aponta três objetivos da Anatel: fazer a regulamentação do setor de comunicações, licenciar empresas para operarem e fiscalizar os serviços. “O espectro de rádio freqüência é um bem finito, que precisa ser utilizado de forma otimizada e a fiscalização visa coibir o uso indevido”, diz.
O presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado, José Carlos Torves, sustenta que o argumento de perigo no ‘congestionamento’ das ondas serve apenas para intimidar quem está interessado em democratizar esse espaço que há muito tempo vem sendo ocupado pelos interesses comerciais e empresariais. “Existem em todo o mundo vários trabalhos científicos apontando que não há interferência nas comunicações que possa causar uma catástrofe. Nunca se ouviu falar de um acidente aéreo ou de qualquer outro tipo causado pelo congestionamento de ondas”.
José Reno Rhoden, de Viamão: dois anos de silêncio à espera da legalização
De Viamão vem o exemplo de um grupo que lutou, esperou e, na peristência, depois de cinco anos, está prestes a ver sua rádio sair do papel. A Associação Pró-Rádio Difusão Comunitária é o seu nome e já está pronta para funcionar, atingindo uma área de um quilômetro (que pode chegar a dez), oito horas de programação, toda voltada para as comunidades, tudo como determina a lei. Mas não foi fácil chegar onde eles chegaram.
“É muito difícil cumprir as exigências do Ministério das Comunicações e da Anatel. Eles nos dão um prazo de 15 dias para entregar documentação, são mais de 200 papéis, e fazer estudo técnico. Eles levam mais de um ano para analisar tudo e, quando a gente pensa que chegou a resposta, pedem complementação de documentos com mais 15 dias de prazo somente. É tudo para emperrar mesmo”, conclui José Reno Rhoden, tesoureiro e técnico da rádio. Ele acrescenta que é muito fácil se perder nesse trâmite, o que acontece com a maioria das rádios. Rhoden diz que isso só não aconteceu com a rádio de Viamão porque o grupo que a representa buscou auxílio técnico e jurídico.
O presidente da Associação Pró-Rádio Difusão Comunitária, Luiz Cláudio Silva, acrescenta que o resultado foi positivo devido à determinação da comunidade, pois “se a legislação exige no mínimo cinco entidades respaldando, nós temos trinta”. A inauguração será marcada por uma grande festa, promete. A rádio nasce com uma sede própria com estúdio, redação e outras salas adjacentes.
Ficarão para trás as lembranças de perseguição e perda de equipamentos. Mas, ainda que tristes, José Rhoden acredita que elas ficam como uma lição de luta para conquistar um sonho. “Nossa rádio foi ao ar pela primeira vez em 20 de novembro de 1996. Saímos atrás das ondas para ver até onde ela pegava. No Natal, colocamos uma belíssima programação experimental, com música e mensagens. Mas em seguida veio a advertência da Anatel, de que, se continuássemos funcionando, a rádio seria lacrada”. Para cumprir a determinação, foram dois anos de silêncio. “Disseram que estávamos fora da lei, entramos com uma liminar, que foi negada. A luta dentro da legalidade é muito difícil”, diz. Mesmo cumprindo a determinação, as pressões continuaram. “Um dia, eu estava aqui quando chegou um carro com quatro pessoas da polícia e da Anatel. Eles vieram para sondar. Vírgula fora do lugar é problema. Abri o portão, eles foram ao estúdio, viram que estava tudo lacrado e telefonaram para o chefe dizendo que estava tudo parado. Aí, para não voltarem sem nada, disseram que eu tinha de encaixotar o equipamento”. Águas passadas, eles esperam.