MOVIMENTO

Recicladores querem reconhecimento profissional

Marcia Camarano / Publicado em 31 de agosto de 2001


Identificados pela maioria das pessoas como catadores de lixo e papeleiros, os recicladores de lixo que perambulam pelas ruas das grandes cidades exercem papel importante no reaproveitamento dos resíduos deixados quotidianamente pela sociedade contemporânea. Conscientes de sua importância, eles estão se organizando. Em junho, 1.600 recicladores de 17 estados reuniram-se em congresso em Brasília.

 

 

 

É um mercado de trabalho que cresce a cada dia. A ‘profissão’ não é regulamentada, mas em todo o Brasil os recicladores de resíduos ou simplesmente catadores de lixo passam a se organizar, a fim de serem reconhecidos como categoria profissional. Para tanto, promoveram, em junho, um congresso em Brasília reunindo cerca de 1.600 representantes de 17 estados brasileiros.

“Não queremos ser enquadrados pelas regras da CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), mas estamos na mesma modalidade dos pequenos agricultores e artesãos. É uma forma de profissão alternativa”, diz Alexandre Camboim, eleito no congresso para a Comissão Pró-Coordenação Nacional de Recicladores e membro da Federação das Associações de Recicladores de Resíduos Sólidos do Rio Grande do Sul, fundada em outubro de 1998.

O desemprego, a falta de qualificação profissional e de perspectivas faz com que aumente nas ruas o número de pessoas que vivam de catar e separar lixo numa proporção tão grande que hoje é difícil dizer exatamente quantos indivíduos ou famílias inteiras vivem disso no país. Em Porto Alegre, onde essa atividade é acompanhada pela prefeitura há 11 anos, o diretor-geral do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), Darci Campani, informa que atualmente 550 pessoas trabalham nas unidades de triagem, ou galpões, e em torno de dois mil carrinheiros circulam pelas ruas coletando material reciclável.

“Não sei quantas indústrias em Porto Alegre conseguem empregar 550 pessoas e servir de fonte de trabalho para mais duas mil”, observa Campani, considerando que esse realmente é um mercado de trabalho que pode ser bastante rentável, dentro de uma política de geração de emprego. Em Porto Alegre, o poder executivo desenvolve um trabalho que busca agregar socialmente quem trabalha com o lixo. “Não se trata apenas de uma questão ambiental, mas também social”, afirma o diretor.

Os resultados do congresso de Brasília apontam para uma organização maior e também para mais independência em relação aos órgãos públicos e às empresas privadas, a fim de que atividade se torne auto-gestionária e associativa. “Não queremos depender dos atravessadores nem dos governos. Queremos independência, porque reciclagem é um serviço que se destina ao bem comum”, destaca Alexandre Camboim. A bandeira de luta dos recicladores passa a ser o reconhecimento profissional da atividade. Para tanto, a entidade embrionária terá a difícil tarefa de organizar os catadores como categoria, porque a maior parte das pessoas que vive disso também é morador de rua.

“Queremos que eles se organizem em associações para que possam ter o controle do lixo e não os empresários, como acontece agora”. A Federação gaúcha dos recicladores aponta que 90% do trabalho são gastos com a triagem do lixo, desde a coleta na rua até o lixo selecionado nos galpões. “Essa é a parte que mais dá trabalho e a menos remunerada, que é o beneficiamento. As empresas, que têm a estrutura, fazem os outros 10%. São os atravessadores, eles é que ficam com o dinheiro, que agregam a maior parte do valor”.

Alexandre informa que os recicladores estão se organizando para fazer sua própria usina de plástico para não ter de depender mais dos atravessadores. “Somos contra a privatização do lixo, esse é outro ponto aprovado no congresso: não à privatização e à importação; pelo beneficiamento do lixo”. Segundo ele, hoje um elemento de estratégia do catador, para ter o controle do lixo, é também reciclar efetivamente o material, tirando a matéria-prima do atravessador e entrando, efetivamente, na cadeia produtiva.

“Estamos trabalhando para sermos reconhecidos como profissão, tanto no sentido jurídico quanto de valorização como cidadão, porque o catador é visto e tratado como o próprio lixo”, constata. Para atingir esse objetivo, ele observa que o segmento não está isolado, pois pretende conquistar o apoio e trabalhar junto com outras categorias profissionais e o movimento popular.

Para aumentar o índice de reciclagem Código de Limpeza teve de ser mudado

Talvez seja difícil para alguns enxergar no puxador de carrinho que passa na rua um trabalhador como qualquer outro que tira dali o sustento dele e de uma família inteira. Pode ser um trabalhador com mais dificuldades que os demais, morando em subabitações ou até mesmo nas ruas, mal vestido, mal alimentado, muitos são alcoolistas, que entregam seu trabalho em troca de bebida. Mas, sim, são trabalhadores e não mendigos. Suas lideranças sabem que não é tarefa fácil organizar uma camada social à beira da marginalidade.

Há um mês foi formado um grupo de trabalho envolvendo o DMLU, Secretaria Municipal de Produção, Indústria e Comércio, Fundação de Assistência Social (Fasc), mais as secretarias de Educação e de Saúde, junto com a Federação dos Recicladores, que fará um trabalho específico com as pessoas que ainda não trabalham em galpões de reciclagem. Em julho, 40 pessoas já foram agregadas no galpão da Lomba do Pinheiro, iniciando um trabalho com renda garantida.

Hilma Klein Cardoso, da Coordenação da Federação Gaúcha, lembra que a necessidade de organizar e resgatar a auto-estima das pessoas que tiram seu sustento do lixo começou em 1983, em São Paulo, com a participação de lideranças ligadas às Comunidades Eclesiais de Base. Em Porto Alegre, esse embrião chegou três anos mais tarde, na Ilha dos Marinheiros.

No Rio Grande do Sul, o movimento começou com força. “Os puxadores de carrinho não tinham organização e não tinham nada, o que nos levou a organizar o trabalho”, recorda Hilma. Atualmente, em Porto Alegre, são nove associações de catadores: Aterro da Zona Norte, Vila Dique, Cavalhada, Restinga, Campo da Tuca (que trabalha com menores de rua), Vila Pinto, Rubem Berta, Associação dos Carrinheiros e dos Papeleiros da Vila Farrapos. No estado, a Federação atinge, até o momento, 55 entidades e há ainda outras que estão surgindo.

Cada lugar tem suas necessidades e especificidades. No Campo da Tuca, por exemplo, era preciso tirar as crianças da rua e ocupá-las. Elas agora estudam em um turno, reciclam no outro e ainda fazem trabalhos artesanais. Para Hilma, o congresso foi apenas um passo para uma jornada longa e difícil, que é organizar uma categoria pelo Brasil afora. Mas não falta vontade. “A gente percebeu isso quando, em Belo Horizonte, fizeram o 1º Encontro Nacional de Reciclagem. Fomos informados em cima da hora, mas mesmo assim, fomos até lá. Os temas eram muito técnicos, começamos a questionar e percebemos que nossos interesses não estavam contemplados ali. Mas foi nessa situação que começou a ser gestado o Movimento Nacional de Recicladores”.

Para o futuro, a humanidade tem duas alternativas. Pode reduzir o lixo, mas essa proposta, conforme Darci Campani, contém limites, pois implica em redução drástica do material que é posto fora, o que envolve educação e, principalmente, a modificação radical de hábitos culturais e de consumo. Portanto, a alternativa mais viável hoje é a reciclagem. “Estamos atrasados nesse tema. Deveria haver uma legislação que obrigasse a que todo o material comercializado fosse destinado para a indústria de reciclagem”.

Já que não existe lei, a Prefeitura se antecipa e disponibiliza os resíduos recicláveis para os galpões e faz um trabalho de convencimento da população de que é preciso reciclar. Porto Alegre é conhecida atualmente como a capital que mais recicla no Brasil. Só a coleta seletiva feita nas unidades recicla 60 toneladas por dia. O material informal, que vem da rua, fornece outras 200 toneladas por dia.

“Poderíamos coletar 300 toneladas, mas falta um pouco mais de conhecimento sobre a importância desse trabalho”, diz Campani. Embora mais da metade da população porto-alegrense apóie e faça a separação do lixo, muitas pessoas ainda não se sensibilizaram com a proposta.

Para chegar às 300 toneladas, a Prefeitura enviou para a Câmara de Vereadores um projeto que reformula o Código de Limpeza Urbana que, entre outras coisas, amplia a multa para quem não separa o lixo. “Hoje, quem não faz coleta seletiva recebe uma multa de R$ 20,00 a R$ 30,00 e queremos ampliar o valor para R$ 40,00 ou R$ 50,00 num primeiro momento”.

O Movimento dos Catadores de Materiais Recicláveis realizou manifestação no dia 27 de julho, no lançamento do novo projeto de galpões de reciclagem com parceria de empresas privadas ocorrido na Fundacentro (órgão ligado ao governo federal), em Porto Alegre. O movimento posicionou-se contra a privatização do setor e voltou a reivindicar o reconhecimento da categoria.

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