Empresas em pele de cooperativas
Foto: René Cabrales
Foto: René Cabrales
Cooperativas de prestação de serviços ou coopergato? A estranha nomenclatura começou a ser utilizada em São Paulo e já começa a ser ouvida no Rio Grande do Sul para designar empreendimentos de trabalho formados por empresários que, para burlar pagamento de tributos e encargos sociais, fecham suas empresas e jogam-se no mercado sob a carapaça de cooperativas. Algumas simplesmente são criadas e outras, já existentes há muitos anos, abandonam os princípios cooperativistas passando a adotar a relação patrão/empregado. A lei federal 5.764, de dezembro de 1971, que regulamenta as cooperativas determina a não existência de vínculo empregatício entre os associados.
São organizações de trabalho que “promovem uma concorrência desleal com as empresas que pagam encargos como 8,5% de Fundo de Garantia, 5% de Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN), pagamento de férias e de 13º salário, o que dá uma diferença monstruosa de preços em uma concorrência”, denuncia Sérgio Almeida, diretor executivo do Sindicato das Empresas de Asseio e Conservação no Rio Grande do Sul (Sindasseio).
Os princípios do cooperativismo em todo o mundo são: adesão voluntária e livre; gestão democrática pelos membros; participação econômica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; compromisso com a comunidade.
A Comissão de Economia, Finanças e Orçamento (Cefor), da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, vem acumulando uma série de denúncias contra cooperativas que, na prática, não atendem a esses preceitos.
“A maioria das cooperativas que conhecemos estão atuando de forma incompatível”, avalia o vereador Adeli Sell (PT), integrante da Comissão, acrescentando que, se antes elas atuavam na área da limpeza, hoje se estendem para serviços de copa, cozinha, merenda escolar, jardinagem, entre outros.
E o mais grave: há muitas pessoas que montam duas, três cooperativas. Entre os depoimentos tomados pela Comissão de Serviços Públicos da Assembleia Legislativa, em setembro de 2001, está o do vigilante Carlos Cunha, que afirmou ter mais de uma cooperativa, a PortServ, a SegControl e a CooperServ.
“Ele trabalha de vigilante e preside três cooperativas ao mesmo tempo? Então, os princípios básicos do cooperativismo não funcionam para ele”, critica Almeida.
Não existe nenhum artigo na lei proibindo a participação de uma pessoa em uma ou mais cooperativas mas, para o representante do Sindasseio, essa é uma questão moral.
“O legislador não imaginou uma situação dessas, já que é princípio do cooperativismo uma determinada atividade em uma determinada equipe. Quem está em três lugares ao mesmo tempo não está em lugar nenhum”.
A PortServ, com 40 associados, foi vencedora de uma licitação feita pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública para limpeza de todas as delegacias do Estado, um trabalho que envolve mais de 600 pessoas.
“Terminou o contrato com uma empresa prestadora de serviços e essa cooperativa absorveu muita gente que já trabalhava nos locais onde são feitas as limpezas, sem saber que, com a mudança, não eram mais empregadas e, sim, cooperativadas”, informa Almeida. “As pessoas que são cooperativadas não têm idéia do que isso seja. Elas acham que estão conseguindo um emprego”, ressalta.
Depoimentos de funcionários que passaram a atuar pela PortServ na Comissão de Serviços Públicos dão sempre a mesma informação: não sabem o que é uma cooperativa nem que fazem parte de uma, acham que conseguiram um emprego, nunca participaram de assembleias ou reuniões, revelam ter salário e horário fixo de trabalho, reclamam de atraso no pagamento, mas não sabem a quem reclamar porque não têm o endereço da cooperativa.
Tanto o vereador quanto o diretor do Sindasseio se revelam defensores do cooperativismo, mas sustentam ser imperativo tirar do mercado quem burla a lei e explora a mão-de-obra do trabalhadores desavisados.
DRT começa a investigar denúncias
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O assunto já foi tema de uma primeira reunião na Delegacia Regional do Trabalho (DRT), dia 16 de abril, onde os vereadores Adeli Sell, João Carlos Nedel (PPB) e Sebastião Melo (PMDB), inte
grantes da CEFOR, apresentaram a denúncia ao delegado Darci de Ávila Ferreira. “Tem havido uma relação de subordinação e não de cooperação, as pessoas entram nessa sem saber o que é uma cooperativa e os que têm postos de chefia hoje acumulam um bom patrimônio”, relata Melo.
Sell acrescenta que esse se configura em um problema nacional. “Estive em Belém discutindo o assunto e fiquei sabendo que vários estados não sabem o que fazer com as falsas cooperativas”, informa o vereador. O delegado da DRT entende que as denúncias “não dizem respeito às cooperativas, mas às más cooperativas, que veem na fiscalização um prejuízo ao trabalho delas”.
Conforme ele, é orientação do Ministério do Trabalho “separar o joio do trigo”. Propôs então uma reunião envolvendo, além da CEFOR e DRT, também a Organização das Cooperativas do Rio Grande do Sul (Ocergs) e o serviço de fiscalização para tratar da questão. “Estou pronto para ajudar nesse trabalho”, afirma Ferreira.
Projeto pode restringir isenções
“É fundamental a existência de cooperativas numa sociedade moderna, que dividam melhor os benefícios do trabalho e da renda. Conheço muitas que são excelentes quanto a isso, mas há outras que se desvirtuaram completamente”, pondera Adeli Sell. E põe a mão na moleira da Cootravipa, a maior e mais conhecida de Porto Alegre, que hoje tem em torno de 2.400 associados.
“A Cootravipa era, mas hoje deixou de ser uma cooperativa. Tem ganhado várias licitações e se tornou uma megaempresa, passando da limpeza e varrição de rua para a prestação de serviço de cafezinho, trabalhos em escolas e de ascensorista. As pessoas têm a ilusão de que trabalham em uma superpotência, mas não sabem que ela pode estourar ali adiante”.
Para evitar a concorrência desleal e assegurar os direitos dos trabalhadores desavisados, Adeli Sell protocolou na Câmara de Vereadores um projeto revogando a Lei 6.944/91, que isenta do pagamento do ISSQN as cooperativas que se enquadrarem nos seus dispositivos.
“Sei que esse projeto vai gerar polêmica, a Cootravipa vai encher o plenário, dizendo que estamos contra os pobres, os trabalhadores de vila, mas eu vou comprar essa briga para mostrar que os trabalhadores estão sendo enganados”, afirma o vereador.
Por seu lado, a Cootravipa se defende, afirmando estar em perfeita sintonia com a legalidade. Sua atuação é dividida em cinco setores de Porto Alegre e o responsável pela cooperativa na região Centro, Emerson Moreira, afirma que todo associado segue os preceitos do cooperativismo.
“Somos donos do nosso próprio trabalho, não nos submetemos à chefia e o ganho se dá conforme o contrato de prestação de serviço”, informa.
Aos 27 anos, Emerson orgulha-se em dizer que se criou na Cootravipa. “Comecei com 16 anos, não conseguia emprego por causa da época de ir para o Exército. Vim de uma casa feita com compensado em uma área verde e hoje tenho minha casa”. Ele sustenta que as vantagens de quem atua na área são muitas, pois o ganho de um cooperativado é maior do que um empregado pela CLT.
“Temos sócios que ganham até R$ 860,00, como é o caso de um técnico elétrico ou hidráulico que atua na Secretaria da Fazenda do município”. A princípio, Emerson, diz que a Cootravipa atua apenas no setor de limpeza, mas diante dessa informação, admite que a área de atuação se expandiu.
Entrevistados demonstravam medo em prestar informações, deixando claro precisar contar com a aprovação de uma espécie de chefia imediata (apesar de essa figura não existir no sistema cooperativado).
O próprio Emerson se mostra relutante no início da entrevista. Para dar entrevista, uma varredora de rua, de 60 anos, pediu permissão para a pessoa que coordena a largada do serviço. Diante do consentimento, ela falou que tem horário de trabalho e salário fixo.
“Estava precisando trabalhar, cheguei na cooperativa e consegui serviço. Ganho um salário de R$ 314,00, meu horário de pegada é às 7h45min e saio às 17h”. Sua colega, de 29 anos, também estava procurando emprego quando assumiu na Cootravipa.
“Recebo um fixo por mês e tenho 15 dias de repouso por ano. Tenho horário e uma chefia que acompanha o trabalho”. Ou seja, os mesmos encargos e relações de trabalho que um empregado regido pela CLT. “Só não temos os direitos registrados em carteira”, ela diz.
Ocergs admite a possibilidade de fraude
É difícil pegar uma cooperativa em contradição analisando somente a documentação, pois todas elas, para fins legais, seguem os preceitos do cooperativismo. O furo está na relação que mantêm com os associados.
“O cooperativismo urbano de trabalho cresceu em face do desemprego, mas a falta de estrutura, de projeto e até mesmo de má-fé fez com que surgissem cooperativas mal formatadas, que se jogam no mercado e causam sérios problemas”, explica Cleberton Ferreira da Silva, assessor técnico da Organização das Cooperativas do Rio Grande do Sul (Ocergs), com cerca de 730 cooperativas registradas e 130 por registrar.
Ele diz que a entidade está atenta ao que chama de “empresas fraudulentas, que só usam o nome de cooperativa”, atuando a partir de denúncias e prestando esclarecimentos aos cidadãos e empresas contratantes.
“Sabemos de associados que não participam de assembleias, não conhecem seus direitos e deveres nem o contrato a que estão atrelados. Não temos bola de cristal para saber onde há cooperativas fraudulentas, mas nosso conselho de ética age nos casos de denúncia. Esse conselho tem o encargo de depurar o sistema quanto a esses casos de irregularidades”. Cleberton prefere não citar o nome, mas informa que, recentemente, uma cooperativa teve seu registro suspenso por esses problemas.
Sérgio de Almeida, do Sindasseio, sustenta que “cooperativa é válida, real e necessária, principalmente em um estado com uma economia primária, como o nosso”. Mas revela que todas as cooperativas de intermediação da mão de obra burlam os direitos dos trabalhadores.
“Seus empregados são travestidos de cooperativados em interesse dos reais donos das cooperativas, que são os que recebem maior remuneração, chamada de pró-labore, explorando mão de obra e concorrendo no mercado sem embutir no seu preço os encargos e tributos a que as empresas estão sujeitas”. Conforme ele, esse é um problema existente tanto nos órgãos públicos quanto na iniciativa privada.