MOVIMENTO

Energia limpa versus jogo sujo

Paulo César Teixeira / Publicado em 2 de outubro de 2002

Porto Alegre será a prova dos nove para a causa ecológica. Entidades ligadas à preservação da vida no planeta pretendem usar a vitrine do Fórum Social Mundial, em janeiro de 2003, para denunciar o impasse das negociações entre as nações envolvendo o meio ambiente. A idéia é promover a Rio + 11, alusão à fracassada Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável (a Rio + 10), realizada em setembro, em Joanesburgo, na África do Sul. Dez anos após a ECO 92, do Rio de Janeiro, não há consenso sobre metas e prazos para a redução do uso de combustíveis fósseis, como petróleo, carvão e gás natural, que deveriam ser substituídos por fontes sustentáveis e renováveis.

Em Joanesburgo, o Brasil propôs que, até 2010, os países utilizem
10% de energia limpa – solar, eólica ou hidrelétrica –, mas poucos estão dispostos a estabelecer prazos e, alguns, como os Estados Unidos, não querem nem ouvir falar no assunto. Hoje, o percentual de energia renovável é inferior a 1% (no Brasil, 14%). 80% do consumo mundial está relacionado aos combustíveis fósseis e o restante é completado por energia nuclear. A iniciativa brasileira na África do Sul foi rejeitada tanto por países do G-77 (dos pobres e remediados), que alegaram falta de recursos para viabilizar a meta, quanto por membros da OPEP (Organização dos Produtores de Petróleo), por motivos óbvios. A Europa se mostrou simpática à idéia, que não contou com o apoio dos Estados Unidos. Curiosamente, na África do Sul, inimigos de guerra como EUA e Iraque se aliaram para bombardear a proposta de energia sustentável.

O Brasil já possui tecnologia para substituir o Diesel por óleos de origem vegetal não-poluentes

O Brasil já possui tecnologia para substituir o Diesel por óleos de origem vegetal não-poluentes

A posição do Brasil também é polêmica entre os que integram o Fórum Brasileiro de ONGs pelo Desenvolvimento e Meio Ambiente. “Houve grande hipocrisia. Fernando Henrique Cardoso veio com um discurso bonito para posar de progressista. Na prática, porém, fez o jogo das multinacionais e das grandes corporações financeiras”, ataca Fidélis Paixão, do grupo Argonautas, de Belém do Pará. “Não se pode negar que houve avanços. O Brasil incluiu representantes de ONGs em sua comitiva oficial, o que representa um fato inédito”, diz Kathia Monteiro, do núcleo Amigos da Terra/Brasil. O professor Roberto Schaeffer, vice-coordenador do Programa de Planejamento Energético da COPPE-UFRJ, tem posição intermediária: “O Brasil levantou uma bandeira e criou um crédito para futuras discussões.”

Uma coisa é certa: a matriz energética é o ponto central das negociações. A maior parte dos prejuízos ambientais decorre do uso de energia não sustentável, assegura Célio Bermann, professor do PG em Energia da USP. A queima de combustíveis fósseis desequilibra o chamado efeito estufa – a concentração de gases na atmosfera que aprisiona 65% da radiação solar e permite que a temperatura média no Terra seja de 15o C, e não 18o C negativos. Graças ao dióxido de carbono, emitido especialmente por motores a gasolina e diesel, o cinturão natural passa a reter quantidade excessiva de calor. O resultado é o aquecimento global – cientistas advertem que, em 100 anos, poderá haver acréscimo de 2o C a 6o C da temperatura média do planeta, com aumento de 30 cm do nível das águas do mar. As previsões para o clima e a vida das populações que residem na costa são as piores possíveis. “O efeito estufa já está por trás de catástrofes climáticas, como enchentes devastadoras na Europa, chuvas de granizo com pedras de meio quilo no Distrito Federal, além de ventos de 120 km/h no Rio de Janeiro”, afirma Schaeffer, da COPPE.

“O pior que se pode fazer com o combustível fóssil é queimá-lo. Além de poluente, não é renovável”, atesta Orlando Valverde, de 85 anos, fundador da Associação de Geógrafos Brasileiros, com meio século de pesquisa de campo. A torneira tende a secar em 30 ou 40 anos, caso não sejam descobertas novas reservas, o que é pouco provável. Acredita-se que o pico do consumo ocorrerá em 2010. “Depois, a produção não vai parar de cair, com risco de novo choque do petróleo, em função do desequilíbrio entre oferta e procura”, prevê Schaeffer. Não por acaso, nos últimos 30 anos, a maioria dos conflitos bélicos está ligada à questão energética. Hoje, os EUA consomem 25% do petróleo do mundo e são cada vez mais dependentes da importação, o que explica, em parte, a impaciência do presidente George Bush em invadir o Iraque. Ele encontra também motivos domésticos para puxar o revólver do coldre. Bush tem raízes familiares atoladas até o pescoço no óleo negro do Texas, o estado-sede do petróleo nos EUA. “O presidente precisa devolver os favores concedidos na campanha eleitoral”, diz Schaeffer.

Já a boa vontade européia rende frutos. A Alemanha, por exemplo, fechou acordo para financiar no Brasil incentivos fiscais no valor de R$ 100 milhões para a produção de 100 mil carros a álcool, que deverão ser comercializados a partir de 2003. O Protocolo de Quioto (1997), que Bush não assinou, prevê que os países ricos financiem a limpeza da atmosfera no mundo pobre, onde o consumo de gasolina e diesel não pára de crescer. O Brasil dominou a tecnologia do álcool na década de 80, quando a maior parte de sua frota era movida pelo novo combustível. “Houve muita ladroagem no Pró-Álcool, mas essa é outra questão. O combustível não polui e é renovável. Abandonamos o projeto por pressão das companhias de petróleo”, sustenta o geógrafo Valverde, lembrando que o país produz 250 milhões de toneladas/ano de cana de açúcar. Óleos vegetais, como de soja e dendê, podem substituir o diesel. “O substituto orgânico é plenamente viável. Se o carro a álcool larga um odor de cachaça, que delicia os bêbados, o de dendê deixa um cheirinho de batata frita no ar”, diz Valverde.

Bons ventos mal aproveitados

A energia elétrica também produz dor de cabeça. Enquanto a maioria dos países ricos usa preferencialmente fontes poluentes, como energia nuclear, carvão e gás natural, o Brasil desfruta de suas bacias hidrográficas. 90% da capacidade instalada de 75 mil megawatts do país provém de grandes hidrelétricas. O problema é que elas causam enorme impacto no meio ambiente. A Comissão Mundial de Barragens, criada pelo Banco Mundial em 1999, concluiu que, além da agressão à fauna e à flora, com desvio de rios e destruição de florestas, elas provocam graves desequilíbrios sociais com a retirada compulsória de populações ribeirinhas. Pior: quando a mata não é derrubada, as árvores apodrecem no fundo dos reservatórios e emitem gás de efeito estufa.

Uma opção é a energia eólica, que gera eletricidade a partir da ação dos ventos. O país tem potencial de 143 mil megawatts (mais que o dobro da atual capacidade instalada de energia elétrica) com a fonte alternativa, conforme avaliação do Ministério das Minas e Energia. Em 1985, Lucy Hack, geógrafa da PUC/RJ, publicou o Atlas Eólico do Brasil, indicando as regiões com condições mais favoráveis para o uso de cata-ventos. Em 1995, os dados foram atualizados, mas não houve apoio da Eletrobras para editá-los. “Não é só falta de visão estratégica. Há interesses políticos e econômicos contrários à pesquisa”, diz Hack. No Rio Grande do Sul, a Secretaria de Minas e Energia divulgou, em agosto, o mapa eólico do Estado, apontando o litoral, a região do pampa e parte da serra e do planalto como regiões privilegiadas. Os cata-ventos são adequados a áreas isoladas, onde podem abastecer escolas, postos de saúde e pequenas indústrias.

Energia solar ainda é cara

Outra fonte renovável é a energia solar. “Após o apagão de 2001, aumentaram os investimentos. Só que, durante largo período, não houve incentivo algum”, destaca o engenheiro César Prieb, do Laboratório de Energia Solar da UFRGS. Em países como Alemanha e Espanha, é cada vez mais comum o consumidor virar produtor, instalando no telhado painéis (chapas de cobre) que produzem eletricidade a partir da radiação solar. O consumo doméstico é alternado com a venda de parte da energia ao sistema coletivo. Com isso, o relógio de marcação da luz vai e volta. No Brasil, apesar da abundante luz solar, as experiências são incipientes. Uma das dificuldades é o alto custo do equipamento – R$ 4 mil –, que exige sete anos para ser pago com a economia feita pelo usuário na conta mensal. Outro entrave é o custo de geração, de US$ 9 mil por quilowatt/pico, contra US$ 1 mil (hidrelétrica) e US$ 500 (termoelétricas e gás natural).

Os produtos orgânicos também se apresentam como solução para a energia elétrica. O professor Celso Bermann, da USP, estima que só o bagaço de cana é capaz de gerar 3 mil megawatts, o que equivale a ¼ da produção da usina de Itaipu. Em Uruguaiana (RS), desde 2001, uma pequena usina gera eletricidade a partir de resíduos do arroz para abastecer indústrias do alimento. Há ainda a possibilidade de disseminar pequenas centrais hidrelétricas, com menos de 30 megawatts de potência, que não agridem o ambiente. “Enquanto 2/3 do país ficou sem luz, no apagão de 2001, algumas regiões do interior paulista não sucumbiram à escuridão, por contar com usinas de pequeno porte, que são autônomas e tornam o sistema menos vulnerável”, assinala Bermann.

Como se vê, o potencial de energia renovável e sustentável do país é imenso. A questão é saber por que, apesar de o Brasil assumir uma postura aparentemente de vanguarda no concerto mundial, o incentivo à pesquisa e às experiências inovadoras é tão pífio. A discussão será retomada com todo o fôlego em janeiro de 2003, em Porto Alegre. Antes, em novembro, o Conselho Internacional do FSM se reunirá em Florença, na Itália, para ratificar a proposta da Rio + 11. Se depender de Temístocles Marcelos, da Comissão de Meio Ambiente da CUT, o FSM se transformará em pólo de resistência aos interesses econômicos que sabotam qualquer tentativa de preservar a sustentabilidade do planeta. “O FSM não tem o papel de amarrar compromissos, como a Cúpula de Joanesburgo, mas é o palco ideal para discutir alternativas urgentes à política energética”, reforça Kathia Monteiro, da Amigos da Terra. Afinal, como diz o decano dos geógrafos brasileiros, Orlando Valverde: “Se os governos não estão interessados em energia limpa, nós estamos.”

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