Fotos ABr/Marcello Jr e Victor Soares Fotos ABr/Marcello Jr e Victor Soares
Ne o controle de reservas de petróleo é motivo para a destruição do Iraque, a hipótese de grandes disputas pelo domínio dos mananciais e de um mercado bilionário de prestação de serviços não parece tão irreal. No caso da água, o teatro de operações incluiria os países com grande disponibilidade de água e colocaria o Brasil na alça de mira de interessados na exploração destas reservas.
“Hoje a disputa internacional é por petróleo, em alguns anos, será pelo domínio dos recursos hídricos”, resumiu Leonardo Morelli, coordenador do Fórum Social das Águas da América do Sul, realizado em Cotia (SP), de 16 a 23 de março.
A previsão poderia soar alarmista, mas também pareceu preocupar os participantes do Fórum Mundial das Águas, realizado no mesmo período, em Kyoto (Japão). Uma das propostas feitas durante a chamada cúpula da água foi a criação da Comissão de Água, Paz e Segurança para mediar conflitos existentes ou que ainda possam acontecer na exploração de recursos hídricos, sobretudo nos casos de rios e aqüíferos que ultrapassam fronteiras nacionais.
A escassez de água já era apontada como causa de guerras nos documentos preparatórios à 2a Conferência sobre Assentamentos Humanos da ONU (Habitat 2), realizada em Istambul (Turquia), em 1996. Egito, Etiópia, Síria, Iraque e Turquia eram apontados, naquela época, como focos de tensão por disputas pelos rios Nilo, Tigre e Eufrates.
De lá para cá, as experiências vividas na Bolívia, Oriente Médio e em alguns países africanos tornaram o problema ainda mais explosivo. “A água está na essência da vida e estes conflitos têm sérias repercussões na estabilidade social”, explicou Morelli.
O problema é que as ameaças ambientais e a pressão pelo aumento do consumo tendem a piorar um quadro no qual já existem 1,2 bilhões de pessoas sem acesso à água de boa qualidade e 2,4 bilhões de humanos sem saneamento básico. Todos estão preocupados, mas há divergências quanto às medidas a serem adotadas e muitas propostas da chamada cúpula das águas são consideradas pelos ambientalistas como uma tentativa de privatização dos serviços de abastecimento.
De um lado, os organismos internacionais defendem a necessidade de considerar a água como uma mercadoria com valor econômico e a necessidade de investimentos privados para enfrentar a crescente escassez. Do outro, os movimentos sociais reforçam a necessidade de controle público dos mananciais e entendem que a água é um direito fundamental do ser humano.
A questão é delicada, pois, enquanto a distribuição mundial de reservas de água doce é desigual (ver gráfico), a exploração dos mananciais é economicamente muito promissora. Segundo o Social Watch (coalização mundial de organizações não-governamentais), pelas estimativas de analistas e do Banco Mundial, o mercado mundial de serviços de abastecimento de água representa entre 400 e 800 bilhões de dólares, valores comparáveis ao mercado mundial de combustíveis fósseis.
Neste quadro, os países do Mercosul estão no centro das atenções. O Brasil é o 25o país no ranking mundial de volume per capita de água disponível, mas possui 71 por cento do aqüífero Guarani, considerado até agora o maior manancial de água doce subterrânea do mundo. Com uma extensão de 1,2 milhões de Km2 na região central da América do Sul, a reserva abrange território da Argentina, Brasil (Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, São Paulo, Paraná, Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina e Mato Grosso), Paraguai e Uruguai.
Formado há 250 milhões de anos pelo acúmulo de água entre as rochas, o aqüífero tem um volume de cerca de 45 trilhões de metros cúbicos de água potável, mineral e térmica que seria suficiente para abastecer a população brasileira por 3.500 anos.
A existência do manancial começa a despertar interesse e foi tratada, pela primeira vez, pelos governadores do Cone Sul, em reunião realizada em 24 de março, em Florianópolis. Enquanto isso, o estudo e gerenciamento da reserva já tiram o sono dos ambientalistas que temem a perda de controle social sobre as reservas.
Desde o ano 2000, o Banco Mundial e a Organização dos Estados Americanos (OEA), através do Fundo para o Meio Ambiente Mundial, fornecem recursos para elaboração do “Projeto de Proteção e Gestão Sustentável” da reserva. A transferência da sede da Coordenação Internacional do Projeto Guarani para Montevidéu, no final do governo Fernando Henrique Cardoso, é apontado por Morelli como uma tentativa de dificultar a participação da sociedade e a manutenção do controle dos países envolvidos. “São informações científicas cujo acesso é dado a corporações interessadas no domínio de nossas reservas de água”, acusou o ativista.
O assunto promete ocupar mais espaço na agenda internacional com a instituição pela ONU do ano de 2003 como Ano Internacional da Água Doce. O objetivo do movimento de defesa das águas é definir um plano de mobilização da sociedade civil que insira os problemas locais em um quadro mundial de disputa pelo controle das reservas.
A idéia é globalizar a resistência e utilizar os mesmos métodos de organização, responsáveis pelas gigantescas manifestações pacifistas que têm sacudido o mundo na luta contra a ofensiva norte-americana ao Iraque. São redes de ativistas de base interligados, principalmente, pela Internet para agir simultaneamente em vários continentes. A fórmula foi utilizada em uma teleconferência no Fórum Social das Águas para fazer um balanço das atividades realizadas em Cotia (São Paulo), Nova Deli (Índia), Florença (Itália), Nova York (EUA) e Gana (África) e receber relatos de ativistas que estavam em Kyoto.
No Brasil, as atividades do fórum priorizaram a participação das crianças e deram ênfase a programas de educação ambiental. A prioridade de ações no país será para a região da Amazônia, Bacia do Prata, Aqüífero Guarani e águas oceânicas. Em 2004, a Campanha da Fraternidade 2004 terá como lema “Água, Fonte de Vida” e os ambientalistas querem ampliar a participação popular nos comitês de gestão de bacias hidrográficas.
“Vamos buscar apoio em movimentos sociais e sindicais e pretendemos envolver as escolas em um sistema de fiscalização ambiental”, explicou Morelli.
Uso e poluição
A agricultura recebe 70 por cento de toda a água consumida no planeta. As lavouras irrigadas ocupam um quinto da área cultivada e recebem 15 % da água de uso agrícola. O setor industrial utiliza 22% e o uso doméstico é responsável por 8% deste consumo. Nos países pobres, a agricultura chega a consumir 82% da água e a indústria leva 59% da água em nações ricas.
Além do uso intenso e das perdas no sistema de abastecimento e irrigação, a atividade humana deixa pegadas e produz diariamente 1.500 quilômetros cúbicos de águas contaminadas por resíduos industriais, químicos, humanos e agrícolas.
Cada litro de água poluída inutiliza oito litros de água doce.
Cúpula da água
René Cabrales
René Cabrales
Os estudos que nortearam o encontro no Japão e servirão de base para a primeira reunião do G-8 (grupo dos sete países mais ricos do mundo e Rússia) sobre o tema, em junho na França, partiram da premissa que a infra-estrutura existente é insuficiente para o abastecimento da população. O relatório “Financiando Água para Todos”, elaborado sob a chefia de Michel Camdessus (ex-diretor-executivo do FMI), e os planos do Banco Mundial estimam que o investimento anual teria que passar de 75 para 180 bilhões de dólares para alcançar os Objetivos do Milênio.
A declaração final do encontro indica que o financiamento deve ser garantido principalmente pelo setor público nos países em desenvolvimento e complementado pela ajuda internacional e por instituições financeiras. Entretanto, o documento admite que já foram tentados vários modelos de financiamento combinando fundos públicos, privados e doações cujos resultados não foram homogêneos. “O debate sobre parcerias entre (setores) público e privado ainda não foi resolvido”, esclareceu a declaração.
Durante o encontro do Japão, funcionários do Banco Mundial teriam informado que os investimentos da instituição seriam feitos em tecnologia para exploração de águas subterrâneas e no financiamento de projetos no chamado Terceiro Mundo. No Brasil, o banco pretenderia financiar hidrelétricas na Amazônia, obter recursos para a transposição do Rio São Francisco e investir na hidrovia do Rio Paraná.
“Quem negocia nestes fóruns (Kyoto) são os países ricos que acabam decidindo sobre reservas de água que não são deles”, criticou Leonardo Morelli.
A acusação não parece exagerada, pois a cúpula da água ocorreu justamente em meio ao calendário fixado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) que determina prazos para as negociações do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), tratado cujo objetivo é liberalizar de forma progressiva o comércio de serviços. Pela Declaração de Doha – resultado da reunião da OMC realizada no Catar, em novembro de 2001 – os anos de 2003 e 2004 estão destinados à apresentação de propostas e solicitações de liberalização de serviços entre os países-membros.
“A água não pode ser incluída em tratados econômicos que fixam regras para a inserção dos países e determinam os modelos de gestão. A questão da água é muito mais explosiva que qualquer outro fator econômico”, contestou Morelli.
Os representantes de movimentos sociais temem a reprodução de conflitos semelhantes aos ocorridos em Cochabamba (Bolívia), onde a empresa municipal de água foi privatizada como condição imposta para liberação de empréstimos do FMI e Banco Mundial, no final da década de 90. Segundo o Social Watch, as tarifas tiveram um aumento de 200 a 300% e provocaram rebeliões de consumidores que levaram à anulação do contrato de concessão.
Outra experiência negativa da privatização dos serviços de água foi denunciada durante o 3o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. “Com a privatização, quem não podia pagar foi excluído da rede de distribuição de água e as tarifas foram indexadas ao dólar”, explicou Rudolf Amenga-Etego, da Coalizão Nacional contra a Privatização da Água de Gana.
“A privatização da água é muito diferente da privatização de serviços como a telefonia”, resumiu Morelli.
Guerra pode gerar 1,5 milhão de refugiados
Ana Esteves
Às 11 horas da manhã do dia 19 de março, pouco menos de 12 horas antes do término do prazo dado pelo presidente norte americano George W. Bush para que Saddan Hussein e sua família deixassem o Iraque, as notícias vindas de Bagdá já anunciavam: centenas de refugiados iraquianos cruzavam a fronteira do país, rumo à Jordânia, onde se instalariam em barracas improvisadas. O início da movimentação em fuga da guerra, mesmo sem ela ter sido oficialmente declarada, já dava uma prévia do número elevado de pessoas que deixará o Iraque em busca de asilo fora das áreas de conflito. Poucas horas depois da primeira bomba atingir Bagdá, no início da manhã do dia 20 de março, um total de 275 trabalhadores foram enviados junto com as famílias, ao acampamento do Crescente Vermelho, perto da aldeia de Ruwaished, na Jordânia.
Segundo estimativa do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (Acnur) de 600 mil a 1,5 milhão de pessoas podem deixar o território iraquiano rumo a países vizinhos como a Síria, onde está o campo de El Hol, localizado a 100Km do Iraque, o Irã com três campos de refugiados instalados próximo a Ahwaz, e a Jordânia, onde estão os campos de Ruwaished, localizados a 60 quilômetros da fronteira iraquiana e de Al Karama.
Conforme o porta-voz do Acnur, Ron Redmond*, a entidade trabalha em conjunto com esses países com o intuito de proteger e dar assistência aos refugiados, preocupando-se com a manutenção da proteção internacional. “Solicitamos que eles mantenham suas fronteiras abertas durante o conflito, para que os refugiados possam procurar assistência material e proteção temporária, diminuindo os efeitos do sofrimento humano. Para isso, provemos comida, abrigo, água, medicamentos, roupas e material de higiene”, declarou Redmond. De acordo com ele, o Acnur recebeu recentemente US$ 21 milhões em contribuições, pouco mais de um terço dos US$ 60 milhões que necessita para as ações durante a guerra. “Estamos fazendo o melhor mesmo com poucos recursos disponíveis”, disse.
Mas as atenções do Acnur não se voltam apenas às pessoas que deixam o Iraque. Existem previsões de que a guerra possa gerar 2 milhões dos chamados refugiados internos, ou seja, pessoas que deixam suas casas e regiões, mas continuam no país. Neste caso, órgãos das Nações Unidas, como o programa Mundial de Alimentos temem a possibilidade de uma crise humanitária “devastadora” pela falta de recursos e a incerteza sobre como será a distribuição de comida no Iraque. Antes do início do conflito, 60% da população do país dependia totalmente do programa Petróleo por Alimentos, administrado pela ONU e que foi suspenso em função da guerra. Outro problema é que as doações internacionais de alimentos são distribuídas no Iraque pelas “redes” do governo de Saddan Hussein e entram no país pelo Sul, rota que os militares americanos e britânicos usam na invasão.
Para ajudar os governos regionais a fazer frente à migração de refugiados, o Acnur também está trabalhando em conjunto com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que, da mesma forma, está preparada para atender, com alimentos e outros bens ,100 mil refugiados durante a primeira fase da guerra. Com bases logísticas na Jordânia, no Kuwait e no Irã, a CV dispõe de materiais médicos para fazer funcionar hospitais e cuidar de feridos, assim como equipes para reparação das redes de água.
Refugiados no mundo
Segundo dados da pesquisa Refugiados em Cifras 2002 divulgada pelo Acnur em meados do ano passado, uma em cada 300 pessoas no planeta está inserida no grupo de 19,8 milhões de pessoas consideradas de interesse da entidade: refugiados (num total de 12 milhões), solicitantes de asilo, refugiados repatriados e refugiados internos. De acordo com a pesquisa, em 2001, o número de pessoas fora de seus lares, por receio fundado de perseguição em virtude da sua raça, religião, nacionalidade ou opinião política, era de 21,8 milhões. A redução de dois milhões se deve ao fato de que um número ainda maior de refugiados tem retornado do exílio. Entretanto, muitos conflitos ainda têm reflexos em diversas partes do planeta. Cerca de 200 mil afegãos se uniram aos 3,5 milhões de compratriotas que viviam como refugiados fora do país; 188 mil africanos fugiram para fora de seus países em guerra rumo a territórios vizinhos e o mesmo fizeram 93 mil cidadãos da antiga República Ioguslava. Somam-se a isso 511 mil civis que se converteram em refugiados internos no Afeganistão, outros quase 200 mil na Colômbia e 122 mil na Libéria.
No Brasil, segundo informações do Ministério da Justiça, vivem hoje 2.894 refugiados. O maior grupo é de Angolanos, seguidos pela Libéria, Serra Leoa e República do Congo. Quanto aos iraquianos, há um grupo de 72 deles morando no país.
Em abril de 2002, Porto Alegre acolheu cinco famílias de refugiados afegãos, com base no Acordo Macro para Reassentamento de Refugiados, estabelecido entre o Governo Federal e o Acnur. Mas, mesmo longe da guerra, a vida demorou a voltar ao normal: em agosto eles encaminharam à Assembléia Legislativa/RS uma carta relatando uma série de dificuldades: “Somos recebidos como refugiados, mas, não temos curso de português. Estamos sem intérprete, sem trabalho e com o salário muito baixo”, dizia o documento.