Reforma tributária: uma proposta e muitos interesses
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Por tudo isso, quando o presidente Luís Inácio Lula da Silva anunciou o envio do projeto de emenda constitucional da reforma tributária ao Congresso Nacional, após fechar acordo com os 27 governadores, havia a expectativa de que as mudanças teriam como principal objetivo reduzir a carga de impostos sobre os contribuintes de menor renda. “Na realidade, não estamos diante de reforma nenhuma. Trata-se apenas de uma maquiagem, que não visa melhorar a vida do cidadão, e sim azeitar a máquina estatal”, protesta o tributarista Ives Gandra. O relator da Comissão Especial de Reforma Tributária da Câmara Federal, Virgílio Guimarães (PT-MG), admite que o objetivo é assegurar a sustentabilidade das finanças públicas. “Não tem cabimento diminuir os impostos nesse momento, porque isso implicaria ter que aumentar a taxa de juros, o que ninguém em sã consciência pode desejar”, disse o parlamentar.
O entendimento entre Lula e os governantes estaduais não foi alcançado sem solavancos. Uma semana antes do fechamento do acordo, oito governadores tucanos reunidos em Rio Quente (GO) ameaçaram romper as conversações, caso Lula não aceitasse repartir a arrecadação das contribuições sociais com estados e municípios. “Há reivindicações justas, mas não se pode trocar figurinhas para a aprovação das mudanças. Os estados não devem negociar a concessão de benefícios como garantia de apoio à reforma”, condenou o governador gaúcho Germano Rigotto (PMDB).
Um bolo de R$ 476 bilhões anuais em disputa
O que está em jogo é o bolo tributário de R$ 476 bilhões anuais arrecadado com 60 tributos repartidos entre União, estados e municípios. O sistema está centrado em 13 impostos (7 federais, três estaduais e três municipais), mas expande-se por dezenas de taxas e contribuições sociais que, em tese, só poderiam ser cobradas com destinação específica, a exemplo das taxas de lixo ou de esgoto. Entretanto, nem sempre cumprem a regra. Um exemplo é a Contribuição Permanente Sobre Movimentação Financeira (CPMF), criada em 1997 para financiar os serviços de saúde, mas utilizada para sanear as finanças públicas.
Até a década de 80, a União concentrou fatias mais do que generosas do bolo de impostos, tendência que se desacelerou a partir da Constituição de 1988. Contudo, depois da segunda metade dos anos 90, o governo federal recuperou terreno, com a criação de novas contribuições não partilhadas com governadores e prefeitos. Apenas o imposto do cheque arrecadou R$ 23,7 bilhões em 2002. Atualmente, a União abocanha 59,5% da receita disponível de impostos (após as transferências entre uma esfera e outra), enquanto os estados ficam com cerca de 25% e os municípios com 15,5%.
No bolo tributário brasileiro, a cereja que desperta maior cobiça é o Imposto Sobre Circulação de Mercadorias(ICMS), arrecadado pelos estados. A idéia do presidente era a de cobrar o tributo nos locais de destino dos produtos, em benefício das regiões pobres do país e em detrimento dos estados produtores, como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Amazonas. Houve pressão política e a medida foi adiada para daqui a dois anos. “Não podemos perder R$ 6 bilhões por ano, ou 15% da arrecadação estadual”, avisou o secretário da Fazenda de São Paulo, Eduardo Guardia.
Os governadores nordestinos tiveram que engolir goela abaixo, embora tenham até ensaiado um princípio de rebelião. “Do jeito como está, o ICMS estimula a desigualdade e eu não abro mão da defesa de minha região”, disse o governador de Alagoas, Ronaldo Lessa, que depois voltou atrás e acatou a decisão. “Tecnicamente, a solução adotada foi a de transferir a mudança para lei complementar, a fim de não comprometer o consenso em torno da reforma tributária. Em bom português, isso se chama empurrar com a barriga”, diz o economista Odir Tonollier, ex-secretário municipal da Fazenda de Porto Alegre. Por outro lado, ninguém duvida de que a unificação das alíquotas e da legislação do ICMS – sacramentada na reforma de Lula – era uma necessidade inadiável. Existe hoje uma verdadeira balbúrdia jurídica, que permite a existência dentro do mesmo país de 27 regulamentações diferenciadas e acirra a guerra fiscal entre os estados. “O quadro atual compromete as finanças públicas, à medida que incentiva a concessão de benefícios fiscais ao sabor da simpatia dos governadores”, critica Tonollier.
Alfredo Meneghetti Neto, economista da Fundação Estadual de Economia e Estatística (Feee) e professor de Economia do Setor Público da PUC/RS, destaca que o principal erro do governo foi o de acelerar a reforma tributária sem antes redefinir a distribuição de tarefas e atribuições institucionais pertinentes à União, aos estados e municípios. Para ele, existe sobreposição de funções, especialmente na área da saúde. “Os três níveis governamentais não se enxergam uns aos outros e, por isso, a qualidade dos serviços deixa a desejar. O governo federal aproveitou as excelentes condições políticas do início da gestão para implantar uma reforma que, do ponto de vista técnico, mostra-se extremamente precipitada”, afirma Meneghetti.
A crônica da reforma possível
“Se aprovarmos as reformas da Previdência e tributária, teremos avançado dez anos em poucos meses. E aí vamos dar espaço para outras coisas que nós temos que fazer no Brasil”, afirmou o presidente Lula. “Essa é a reforma possível. Outra mais ampla poderia significar reforma nenhuma”, reforçou o ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu. O objetivo é tornar o sistema mais eficiente e socialmente justo, desonerando a produção e aumentando a competitividade dos produtos nacionais.
A reforma tem sete pontos principais: unificação de alíquotas e legislação do ICMS, que passa a se chamar Imposto Sobre Valor Agregado (IVA ); 50% da contribuição patronal previdenciária serão calculados sobre o faturamento e não a folha de pagamento; fim da cumulatividade da Confis; instituição da progressividade do Imposto sobre Herança e Doações; substituição de parte dos incentivos fiscais – no total, estimados em R$ 23,26 bilhões em 2002 – por políticas de desenvolvimento para as regiões carentes; proteção dos produtos da cesta básica com alíquotas de 4,5%; por fim, destinação de 50% da arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR ) para municípios – hoje com a União.
Cada R$ 1,00 pago pelo empresário ao trabalhador como salário corresponde a R$ 1,20 de encargos sociais. Na média, os países desenvolvidos aceitam um acréscimo entre 3% e 5%. Ao desonerar a folha, a intenção do governo é incentivar a formalização do emprego e a abertura de novos postos de trabalho. Ponto falho: a cobrança sobre o faturamento é mais vulnerável à sonegação. Já os tributos em cascata na cadeia produtiva criam distorções entre alíquotas nominais e reais. Um exemplo é a CPMF, um tributo “cego”, porque incide com igual percentual (0,38%) sobre todas as faixas de contribuintes. Na prática, é cobrado, durante cada etapa do processo produtivo, desde a matéria-prima até o comércio, passando por indústria, transporte, atacado e varejo. Em muitos casos, há mais de 15 agentes entre uma ponta e outra. Na prática, a alíquota de 3% da Cofins transforma-se em 10% reais.
Quanto à redução do imposto sobre a cesta básica, o professor Meneghetti, da PUC/RS, faz uma advertência: não adianta baixar alíquotas sem negociar antes o repasse com o setor empresarial. Caso contrário, a redução fiscal corre risco de apenas engordar as margens de lucro. Aconteceu no início dos anos 90, quando o governador Alceu Collares implantou um programa de redução ICMS de 35 produtos populares no RS. Os preços simplesmente não baixaram, lembra o economista.
A progressividade do Imposto de Herança não entusiasma os especialistas, porque o impacto na carga tributária é modesto – hoje, 0,2%. Em países desenvolvidos, chega a 4% ou 5%. Na década de 80, os tributos sobre patrimônio e imóveis representavam 1% do PIB. Atualmente, 2%. Explica-se: o Brasil é um dos países com percentual mais elevado de imposto sobre o consumo (49,8% da carga) e mais baixo sobre a renda (21,1%). O Imposto de Renda corresponde a 6,6% do PIB, enquanto no mundo desenvolvido chega a 13,6%. Em 1996, o IR dos assalariados representava 41% do total arrecadado. Em 2002, subiu para 49%, enquanto a tributação sobre o capital baixou de 59% para 41%. Não por acaso, o consumo das famílias brasileiras caiu 4% em termos reais no período, ao mesmo tempo em que a carga tributária aumentou 27%.
Relator quer imposto para a reforma agrária
Para dar solução ao quadro caótico, a reforma deveria ser mais profunda, segundo a diretora de estudos técnicos do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Unafisco), Clair Hickman. Para ela, do jeito como ficou, servirá apenas para manter o superávit primário das contas públicas e garantir o pagamento de juros das dívidas interna e externa. Pouca ou quase nenhuma repercussão positiva terá para o contribuinte, afirma. “A sociedade brasileira não pode admitir que a agenda da reforma atenda exclusivamente aos interesses de empresários e governadores, passando ao largo das regras do Imposto de Renda, por exemplo.”
O deputado Virgílio Guimarães pede calma aos descontentes. “Ao encaminhar a emenda constitucional ao Congresso, o governo definiu as vigas mestras. Caberá a nós, parlamentares, fazermos os complementos necessários.” Mas adverte que o Imposto de Renda é matéria de legislação ordinária e, por isso, não pode ser incluído no pacote. Guimarães defende a criação de novo tributo em substituição ao atual ITR como instrumento da reforma agrária. Hoje cobrado pela União, com fiscalização ineficiente, o ITR se transformará em imposto meramente voltado para a arrecadação ao passar para os municípios. “Com isso, teremos que criar uma alternativa para financiar a reforma no campo e penalizar com rigor a terra improdutiva.” Ele já tem até o nome do novo tributo: CFTS (Contribuição da Função Social da Terra).
Outra questão adiada é o critério de repartição do ICMS entre os municípios, que se baseia na produção industrial e na capacidade de gerar emprego das cidades. “Essa é uma das causas da formação de bolsões de miséria na região sul do Estado, onde a única coisa que não falta é gente sem emprego e prefeitos desesperados que não têm como dar conta da situação”, afirma o secretário de Finanças de Pelotas, Marcos Bosio (PT). Relata que Triunfo detém um valor per capita de R$ 915 na distribuição dos recursos do ICMS no Estado, contra R$ 100,91 de Alvorada. A proposta do secretário de Pelotas é distribuir o imposto dando um peso de 50% para número de habitantes, 30% de valor adicionado fiscal, 10% de área e 10% de parcela fixa igualmente repartida. “Dos 497 municípios gaúchos, 346 aumentariam a participação per capita e em 52 as perdas não chegariam a 10%. Mantidos os padrões atuais, não restaria outra alternativa aos prefeitos senão criar novos impostos”, prevê Bosio.
A briga de foice entre União, estados e municípios faz com que muitos duvidem da promessa de não-elevação da carga tributária. “Todos querem ganhar sem abrir mão de nada. Ora, para que alguém ganhe sem que haja partilha, só tem uma saída: cobrar do contribuinte”, diz o tributarista Ives Gandra. De acordo com técnicos do Conselho de Política Fazendária (Confaz), a carga fiscal poderá chegar a 40% do PIB nos próximos anos com a aprovação das reformas previdenciária e tributária. “Como resolver o impasse, se ninguém quer perder a fatia do bolo? O assalariado já paga duplamente – além de arcar com o tributo, paga ao particular para receber serviços que deveriam ser fornecidos pelo estado, como saúde, educação e segurança”, conclui Clair Hickman, do Unafisco.
Favorável à proposta de Lula, o secretário de Pelotas alerta que a única solução para o país é o crescimento da economia e a elevação do poder aquisitivo. “Tragédia social não se resolve pela via tributária. No máximo, cria um ambiente favorável”, diz Bosio. “A reforma é só a alteração das regras do ICMS. No mais, PT saudações”, ironiza o professor Loprato, da Unicamp, para quem a incessante busca de consenso determinou uma reforma de caráter “asséptico”. “Não dá para fazer omelete sem quebrar os ovos”, assinala, recorrendo ao jargão popular.