Softwares livres e inclusão digital
E não é só o Brasil que pensa nos livres como alternativa para inclusão digital de superpopulações pobres. Recentemente, o presidente da Índia, Abdul Kalam, surpreendeu o mundo digital ao defender a adoção de SL em seu país. Foi a primeira vez em que um chefe de estado falou abertamente sobre o uso desses programas. E é emblemático, por se tratar da Índia, um dos países que mais produzem softwares no mundo.
Nos Estados Unidos, o assunto vem ganhando espaço na mídia. A revista Business Week fez, há pouco tempo, uma matéria de capa intitulada “A rebelião Linux”. Prometia aos seus leitores revelar “como um grupo ralé de geeks (supernerds) do software está ameaçando a Microsoft e a Sun – e virando o mundo dos computadores de cabeça para baixo”. O caso é citado pelo antropólogo Hermano Viana, no prefácio do livro “Software Livre e Inclusão Digital” (Editora Conrad), lançado dia 6 de junho, no 4º Fórum Internacional de Software Livre (5 a 7 de junho) e que teve repercussão na última bienal por ser publicado em regime de copyleft. (sem direitos autorais).
No Brasil, há algum tempo, essa rebelião já vem acontecendo, inclusive, no Rio Grande do Sul. Aqui surgiu o Programa Software Livre RS, que, com o novo governo federal, inspirou o Programa Software Livre BR. Durante o governo Olívio Dutra, o Estado passou a ser conhecido como um “oásis do software livre”, com programas usados em escolas, universidades (Ufrgs, PUC, La Salle, Univates e outras) e por empresas públicas e privadas. O Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul) é um dos mais bem-sucedidos exemplos. Instalou em cerca de 1.700 caixas eletrônicos duas mil estações de trabalho e 350 servidores programas livres no sistema operacional GNU/Linux. Desde o início da implantação, em 2000, os cofres públicos gaúchos economizaram R$ 9,6 milhões. É o equivalente ao que precisaria ser gasto de dois em dois anos para a renovação das licenças dos softwares proprietários. Trocou o governo, mas o programa de instalação de softwares livres continua. Presente à abertura do 4º Fórum Internacional, o governador Gemano Rigotto destacou a importância desse tipo de programa. “Essa tecnologia aponta para maior independência, redução de custo e segurança e é uma possibilidade de avanço na socialização do conhecimento”, falou. O Fórum reuniu três mil participantes de diversas partes do Brasil, América Latina e Europa.
Um conceito mais amplo
Porto Alegre é pioneira em se tratando de legislação desses programas, aprovando no ano passado a primeira lei brasileira que prioriza o uso de softwares livres. Atualmente cerca de 80 escolas municipais trabalham com plataforma GNU/Linux, mas há um projeto para se atingir 91. Os 14 telecentros espalhados pela cidade – cada um com 12 computadores – também utilizam essa plataforma, levando um conceito bem mais amplo de inclusão digital do que apenas oferecer computadores a 11 mil jovens porto-alegrenses. Marcelo Branco, um dos coordenadores do projeto Software Livre RS, explica que no mundo do software livre “inclusão digital não é apenas acessar computador à população, mas possibilitar às pessoas que os usem da melhor maneira, inclusive aprendendo a programar”.
É esse o conceito de inclusão que vem sendo trabalhado em Porto Alegre. No 4º Fórum de SL, o prefeito João Verle salientou a importância de levar a informática aos lugares mais distantes da cidade. “Muitas pessoas moram em vilas da capital em ruas sem nome e casas sem número, mas hoje, graças aos telecentros, têm um endereço eletrônico”, exemplificou. Verle também tratou da inversão de prioridade de investimento já que, com esses programas, “deixamos de remeter milhões de reais ao exterior e os direcionamos ao combate à miséria”.
Brasil gasta R$ 1 bi por ano em licenças
O presidente da Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre (Procempa), Joel dos Santos Raymundo, lembra que o Brasil tem um custo muito alto com as licenças de computador – cerca de R$ 1 bi por ano – se somarmos os computadores das esferas federal, estadual e municipal. “E isso tudo sem licitação. Usa-se o Windows como padrão e não temos concorrência. Agora, deveremos ter uma diminuição nessas licenças e um uso maior de softwares livres com o novo governo”, aposta Raymundo.
Segundo ele, só para instalar uma máquina com o sistema operacional Windows e programas básicos, se gasta em torno de R$ 1.400,00 em licença. Multiplica-se esse valor pelo número de computadores de que se necessita no País e as somas se tornam exorbitantes. “Só na Prefeitura de Porto Alegre usamos cerca de seis mil máquinas que, com o básico, somam um custo de 3,4 milhões em licenças”, revela. A intenção agora é passar o que puder para rede livre. No entanto, a “migração” tem que ser feita da maneira mais cautelosa possível, para não trazer prejuízos ao serviço prestado à população. Isso porque muitas vezes esses programa ainda estão em fase de testes. “Temos que analisar o ambiente. Ver o que já há de software à disposição para aquela necessidade e definir uma boa solução, com testes de ferramentas etc”, explica.
Para Raymundo, no entanto, o mais importante não é a economia com licença, mas a possibilidade de adaptação desses programas e de desenvolvimento intelectual, já que eles podem ser melhorados permanentemente, o que não acontece com os proprietários. Nesse caso, se é apenas usuário do programa. Raymundo afirma que outras vantagens são a estabilidade e a segurança. “Podemos afirmar que são melhores que os da Microsoft”, diz.
A catedral e o bazar
Ao sacar dinheiro no caixa, o cliente Banrisul é recebido por um pingüim tão simpático quanto revolucionário. É o Tux, mascote do Linux, hoje fonte de dor de cabeça para algumas das maiores empresas de informática do mundo. Tudo porque seu criador, Linus Torvalds, desenvolveu, segundo conta o hacker Eric Raymond, em “A Catedral e o Bazar”, uma maneira nova de fazer programas de computador. No início dos anos 90, ele começou a disponibilizar partes de um sistema operacional para que outros ajudassem a fazê-lo.
O esquema, semelhante a um “bazar”, deu tão certo que até hoje não parou de crescer o número de programas feitos livremente por milhares de programadores ao redor do mundo. É um sistema contrário ao das grandes empresas, chamado pelos hackers, de “catedral”, e que trabalha com base no copyright.. Na catedral, uma empresa como a Microsoft desenvolve programas em sigilo absoluto, longe dos olhos e ouvidos do concorrente. Pagam-se fortunas para manter o produto às escondidas, preço que depois será cobrado do usuário por meio do copyright.
Uma batalha entre copyright e copyleft
Os programas livres são feitos em regime de copyleft, algo como “deixe copiar” ou “cópia livre”. Já os proprietários se valem das leis de copyright, dos direitos autorais, por isso têm seu código fechado, não aberto para que outros possam modificá-los. Os programas livres têm essa possibilidade e significam que deles podem ser feitos programas novos, copiados e vendidos a preços bem mais acessíveis que os softwares proprietários. Mas mais importante que a economia é a apropriação de conhecimento e de tecnologia. Ao invés de o consumidor ser um simples usuário de programa de computador, com o software livre ele tem a possibilidade de criar novos programas. É assim que tem surgido no mundo uma crescente comunidade de programadores livres que, num regime de redes, faz programas e os disponibiliza muitas vezes gratuitamente para uso e alteração de quem quiser. São programas de edição de texto, imagens, envio e recebimento de correios eletrônicos e outros, para uma infinidade de necessidades como, por exemplo, gerenciar caixas eletrônicos, fazer filmes, navegar, usar na telefonia, na indústria de alta precisão etc.
Quem trabalha com copyleft pode ter um modo de produção aberta desde o início. O resultado é que muitos programas feitos dessa forma, baseada na norma, – se você tiver um problema, pelo menos uma entre milhares de pessoas poderá resolvê-lo –, são bem menos onerosos do que os da indústria tradicional. Quem sai ganhando com isso, dizem os hackers (programadores), são as populações que hoje vivem à margem da tecnologia. No Brasil, são quase 90% dos habitantes. A solução para o problema seria copyleft. “O copyright é por si só uma excrescência, uma corruptela. Qualquer um que pense dez minutos se dá conta de que não se pode manter um sistema no mundo inteiro mandando dinheiro para o homem mais rico do mundo, o sr. Bill Gates”, comenta Cláudio Prado, articulador de políticas digitais do Ministério da Cultura, outro ministério interessado nos livres e no debate entre direitos autorais-gravadoras-produção cultural.
A Unesco quer promover a inclusão de portadores de deficiências e para isso os softwares livres são fundamentais. Um recente estudo do organismo sobre políticas de inclusão digital dessa população mostra que é possível e necessário que elas também programem computadores. Além disso, quer possibilitar que comunidades indígenas coloquem sua cultura na internet, promovendo a diversidade cultural e o multilingüismo. É o que diz Cláudio Menezes, do escritório da Unesco em Montevidéu, Uruguai. “Existem mais de oito mil línguas no mundo, mas os computadores só estão disponíveis em 20, 25. As outras estão excluídas digitalmente. Por isso a Unesco trata essa questão como importante para o acesso ao conhecimento universal”, explica. Assim, softwares livres (que também têm como bandeira fazer programas em outras línguas que não as dominantes) ajudam não apenas na inclusão digital, mas, segundo Cáudio, no acesso ao conhecimento como um todo.
Ele lembra que a Unesco tem como objetivo se empenhar na construção das sociedades do conhecimento. “Ora, falar em sociedade do conhecimento em nossa época significa falar em acesso a informações por vias digitais. E a inclusão digital de uma certa maneira mapeia as outras inclusões sociais, a educação, a cultura, o bem-estar etc. Vemos não apenas o crescimento da consciência em relação a essa inclusão, mas os softwares livres como ações concretas para a redução da chamada brecha digital”, aponta.
Visando diminuir essa distância, a Unesco tem promovido o software livre, principalmente a partir de seu escritório em Montevidéu. Menezes é o responsável pelo Programa de Comunicação e Informação da entidade, nos países do Mercosul, que ajuda o movimento software livre a organizar fóruns e seminários para disseminar o uso desses programas – recentemente a entidade apoiou a 2ª e a 3ª Jornada Nacional do Software Livre, promovidas pelo grupo de usuários Linux do Uruguai. Também organiza mesas em eventos internacionais para tratar do tema, além de iniciativas como telecentros pilotos, como é o caso de um no Paraguai.
De dois em dois anos, a Unesco faz um plano de trabalho, e Cláudio nota que cada vez mais está sendo incluída a pesquisa dos benefícios dos softwares livres. Nesse sentido, a Unesco está ultimando um grande projeto para software livre, que será incluído no orçamento da entidade para 2004. Além disso, o 10º Concurso Unesco de teses de mestrado terá este ano um prêmio especial para a melhor tese da América Latina que tenha trabalhado esses programas.
A Unesco também os apóia porque eles dão maiores oportunidades de desenvolver o conhecimento, num processo vinculado ao construtivismo. “Com esses softwares, os estudantes se envolvem, se entusiasmam, se comprometem nos processos de concepção”, afirma. O documento “32 C” dos programas de trabalho e orçamento para 2004 e 2005 da Unesco, à disposição na internet www.unesco.org), traz a proposta de um projeto mundial para disseminação desses programas. Menezes considera os softwares importantes frente à falta de recursos financeiros nos países pobres, mas principalmente como “possibilidade de permitir a criação, a alteração e inclusive de conviver com alguns equívocos, o que é vital para o processo educativo”.