A primeira eleição municipal após a ascensão do Partido dos Trabalhadores à presidência da República será marcada neste ano pelas coligações que colocam no mesmo palanque velhos adversários políticos em coligações capazes de forjar afinidades de última hora na batalha pelas prefeituras. A velha retórica de que a realidade de cada município falaria mais alto do que as ideologias nunca foi tão evocada para justificar alianças e acordos partidários costurados desde muito antes da campanha. E que, em muitos municípios do interior, já decidiu a eleição bem antes de 3 de outubro.
Na Serra gaúcha, três partidos forjaram uma incrível engenharia política a partir das eleições municipais de 1996, para se revezarem no poder e impedir que o PT chegue à prefeitura. O PP, o PMDB, o PDT e o PTB projetaram uma espécie de rodízio nas prefeituras de Bento Gonçalves, Veranópolis e Nova Prata, cidades governadas nos últimos oito anos pelo PP. Pelo acordo, em Bento o prefeito Darcy Pozza (PP) deverá ceder a vez nas próximas eleições para o PMDB, partido do atual vice Alcindo Gabrielle. Em Veranópolis, os dois partidos decidiram apoiar o PDT do atual vice Cristiano Valduga Dal Pai, e, em Nova Prata, o bloco vai apoiar um candidato do PTB. “Nesses municípios, firmamos acordo para não concorrer com candidato próprio e apoiar a majoritária dos outros partidos”, confirma o presidente estadual do PP, Celso Bernardi.
Curiosamente, os partidos que aparecem aliados ao PP nesses municípios se transformam em inimigos ferrenhos em Antônio Prado, por exemplo. No município, o PP tem como adversário a coligação PL/PT e enfrenta o mesmo PMDB com o qual fez o acordo em Bento Gonçalves. Já em seis cidades, entre as quais Almirante Tamandaré, Mato Queimado, Nova Alvorada e Tuparandi, a eleição estaria decidida por antecipação. Pelas contas do Partido Progressista (PP), os eleitores iriam para as urnas praticamente sem outra opção, pois os candidatos a prefeito do PP seriam consenso, contando com o apoio dos demais partidos. “Nesses e em mais dois municípios há consenso em torno dos nossos candidatos. Isso porque vale mais a conveniência para não gastar dinheiro na campanha”, explica.
Segundo Bernardi, a expectativa do partido é eleger cerca de 180 prefeitos no Estado nesta eleição e tentar repetir a façanha de 2002, quando o PP elegeu nada menos que 25% dos vereadores, com um total de 1.452. “Com a redução do número de vagas nos legislativos municipais pelo TSE, mesmo elegendo esse percentual, o PP ficaria com 1,2 mil vereadores”, projeta.
Para chegar a esses números, Bernardi contabiliza os nove municípios em que o candidato a prefeito é do PP e o vice do PT. Em outros nove (o maior deles é Alecrim, com 5,8 mil eleitores), os progressistas ficaram com as candidaturas a vice-prefeito, tendo o PT na cabeça-de-chapa. Forjado a partir da obscura Arena, partido de ultradireita que avalizou as barbaridades cometidas pela ditadura militar, denominado PDS com a abertura política, o Partido Progressista andou mudando de sigla mais uma vez depois de ficar conhecido como PPB e puxar o bloco de coalizão contra o PT nas últimas eleições. Na era pós-Lula, o PP se apresenta à vontade em alianças com o PT pelo interior do Estado. “O eleitor não vai decidir o futuro do país, vai decidir a situação do seu município. Em quatro eleições, nunca fizemos nenhuma intervenção nas decisões tomadas pelo município. Não se pode desconhecer as decisões locais. No campo doutrinário, somos oposição ao governo Lula. Mas o fato de estarmos coligados com o PT nos municípios não altera nossa visão”, argumenta Bernardi.
Dormindo com o inimigo
Com pouco mais de 3 mil habitantes, dos quais 1.707 são aptos a votar, Porto Vera Cruz, na região de Santa Rosa, no Noroeste do Estado, terá em 2004 sua segunda eleição para prefeito, disputada entre o PMDB e a coligação PT/PPS. “A gente vai ceder em alguma ponta e eles também. É o melhor acordo que podia ter, porque somos oposição ao atual governo do PMDB, que nunca nos convidou para fazer parte da administração”, explica o vereador Ismael Klein, um dos fundadores do PPS no município. Nos 30 maiores colégios eleitorais de Porto Alegre – que tem pouco mais de 1 milhão de eleitores – a Venâncio Aires (46,3 mil eleitores), o PT buscou alianças com partidos de centro-esquerda, tradicionais aliados da Frente Popular, mas também fez concessões para siglas de sustentação do Governo Federal e aproximou-se até do Prona, o partido do histriônico Enéas. Fez 21 coligações com o PCdoB, 10 com o PSB, oito com o PL, cinco com o PV e cinco com o PCB, com o PMN (quatro) e com o PPS (quatro). O partido também costurou uma aliança com cada um dos seguintes partidos: PDT, PTN, PHS, PTB, Prona, PRTB e PSDB. Incluindo todos municípios do Estado, o PT tem 55 coligações com o PP, 28 com o PPS, 21 com o PSDB e 10 com o PFL.
Coligações do além
“Nós não estamos vendendo a alma ao diabo nem abrindo mão dos nossos princípios. A busca de uma hegemonia política na sociedade e a aproximação com outros partidos se dá a partir do momento em que eles assumem uma postura de acordo com o nosso projeto. Não queremos maioria só numérica, mas programática. Existe a leitura de uma realidade nessas alianças”, justifica o presidente estadual do PT, David Stival. Segundo o dirigente, houve um diálogo com os partidos de sustentação do governo Lula. “Analisamos caso a caso a partir do compromisso desses partidos de implantar o Orçamento Participativo e agregar as principais marcas do PT, como governar com transparência e priorizar as políticas públicas. Os partidos locais que não apresentaram candidatos com essas características nós rejeitamos. O PFL e o PSDB, só na proporcional”, define Stival, que projeta eleger 70 prefeitos petistas (atualmente o partido tem 35) e ampliar o número de vereadores de 456 para cerca de 700.
Na corrida pelas prefeituras, a ideologia tem um peso mínimo, o que prevalece são os interesses locais, define o presidente do PP. Para Celso Bernardi, no entanto, quem cedeu na composição das alianças foi o PT. “Seguramente o PT se aproximou do PP à medida que deixou de proibir as alianças depois de 11 anos”, alfineta.
“As coligações sempre foram uma bandalheira no Brasil”, diz a deputada federal Luciana Genro, que foi expulsa do PT junto com os também deputados João Babá e João Fontes e a senadora Heloísa Helena. Por votarem contra a reforma da Previdência. Os “rebeldes” estão em plena campanha de legalização de um novo partido, o PSOL, que já obteve 100 mil das 438 mil assinaturas necessárias para sair da ilegalidade – 0,5% dos votos dos 513 deputados federais. Para Luciana, antes de ascender ao Governo Federal, o PT sempre se colocou contra essas coligações e, mesmo quando se coligava, formava alianças defensáveis. O partido era mais criterioso. “Agora se une com qualquer um para ganhar a eleição e não hesita em formar alianças com partidos que fazem parte do Governo Federal como o PP e o PFL, que têm no currículo a máfia dos combustíveis, a tropa de choque de Collor. A busca do poder e do melhor arranjo político são um sintoma da degeneração política, ética e moral do PT, que, pelas coligações e pela política concreta que vem praticando, deixou de ser uma alternativa para se tornar sinônimo de continuísmo da política neoliberal. O eleitor perde, acaba ficando sem opção”, analisa a deputada.
O eleitor está confuso
Ao reunir conservadores e lideranças que vêm das oligarquias mais atrasadas, como Antônio Carlos Magalhães e José Sarney, em torno de si, o PT deu o primeiro passo para confundir o eleitor em relação à confusão de siglas partidárias, analisa o deputado federal Alceu Collares (PDT). “Antes de chegar ao governo, o PT era a expectativa de uma estrutura mais ideológica, um partido definido pelo discurso coerente, com excelentes conteúdos, seminários e congressos e uma fundação de estudos políticos. O PT tinha um projeto para cada problema do país. Chegando ao poder, tudo foi colocado de lado. Para governar teve que se aliar a outras forças políticas. Gera uma situação muito confusa. Ao fazer coalizões com o pretexto de governar, utiliza métodos de fisiologismo puro e recursos financeiros para amordaçar o pensamento político da Nação”, acusa Collares. Eleito prefeito de Porto Alegre em 1985 por força de uma coligação do PDT com o PTB, o deputado reconhece que nenhum partido pode rejeitar coligações. “Nós não estamos fora disso, mas as coligações têm que ter um mínimo de coerência”, argumenta. Para o parlamentar, a cultura das alianças partidárias é uma herança da ditadura militar. “A extinção dos partidos causou um dano muito grande à sociedade. Não há democracia sem partidos, e a fragilização do processo eleitoral sem direita, centro nem esquerda definidos se reflete na mediocridade dos debates”, analisa.
Para o coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do Departamento de Sociologia e Política da Universidade Federal de Santa Maria, Gustavo Grohmann, depois de assumir a instância máxima do poder com a ascensão de Lula à presidência da República, o PT precisou se afastar do seu passado caracterizado pelas rupturas. “Estamos assistindo à desconstituição do PT como partido diferenciado, programático”, identifica Grohmann, que é doutor em Ciência Política pelo Iuperj. Uma vez no poder, o partido passa a ter que conciliar e acomodar interesses contrários ao seu, mesmo que alguns líderes não queiram. “Não acredito que isso seja uma traição ou renúncia aos princípios, mas também não deve ser o caminho necessário de maturidade. A responsabilidade de ser governo aproxima o PT da tradição partidária norte-americana, que olha o candidato individualmente, é mais centrado na força das lideranças do que no conteúdo programático”, avalia. O doutor em Sociologia e cientista político Flávio Silveira compara o PT ao Partido Social-Democrata alemão, que na sua origem era socialista, com uma certa radicalidade de posições. “Com a crescente ocupação de espaços tanto no Legislativo quanto no Executivo, passa a assumir posturas mais conservadoras para se manter no centro do espectro político”, define Silveira.
História das alianças
Alianças entre partidos de orientações diferentes e até entre adversários políticos com o objetivo de conquistar o poder não são exatamente uma novidade. Um exemplo histórico é a aliança de 1958 entre o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), principal sigla de esquerda da época, e o ultradireitista Partido da Representação Popular (PRP), que agrupava remanescentes do integralismo. A coligação elegeu Leonel Brizola para o governo do Estado. Na análise do ex-secretário de Estado Antônio Pires, a coligação nada teria de estranha para a época. Afinal, o perfil de esquerdista de Brizola só ficaria explícito três anos depois com o Movimento da Legalidade, em 1961. O PRP, que ficara com as secretarias de Obras e da Agricultura, decidiu entregar os cargos, mantendo somente a direção do Banrisul. “Foi a primeira vez que um partido adotou atitude doutrinária, pois não concordava com a postura de Brizola, que permitia infiltração comunista em sua administração”, analisou Pires em entrevista ao jornal Correio do Povo em 2002. Em 1962, o PRP integrou a Ação Democrática Popular que elegeu Ildo Meneghetti governador. Nas duas décadas seguintes, até a eleição de Jair Soares pelo PDS, em 1982, o PRP não largou mais o poder, participando de todos os governos. Com a abertura política dos anos 80, o Rio Grande do Sul registrou outro episódio que uniu partidos de campos ideológicos diferentes para conquistar o poder. Em 1986, uma aliança aparentemente imbatível entre PDT e PDS lançava Aldo Pinto para o Palácio Piratini, que acabou rejeitado pelos eleitores num dos maiores fracassos eleitorais da história política do Estado. “Teve até um especialista em política partidária, figura internacionalmente conhecida cujo nome eu não vou revelar, que somou o número de eleitores dos dois partidos e previu que a eleição já estaria ganha. Foi uma coligação rejeitada pelo povo. Devia servir de lição para todos nós”, avalia o deputado federal Alceu Collares (PDT). Para Collares, que se elegeu prefeito de Porto Alegre em 1985, ano da legalização dos partidos comunistas e do surgimento do PFL, as alianças são uma forma legítima de conquistar o poder “desde que sejam assimiláveis, não agridam a consciência política do eleitor”. “As alianças são um impositivo à medida que permitem aos partidos chegar ao poder e executar o seu programa. Por mais esdrúxulas que possam parecer para quem vê de fora, as coligações são parte do jogo político, especialmente nas eleições municipais em que predominam as peculiaridades de cada município”, analisa o jornalista Carlos Fehlberg, articulista do site www.politicaparapoliticos.com.br.