Mobbing, dano ou assédio moral, terrorismo ou violência psicológica. As expressões estão relacionadas a ameaças, humilhações, atos vexatórios e maus-tratos que ocorrem no ambiente de trabalho e motivam a cada dia um número maior de pedidos de indenização na Justiça do Trabalho. Estudos apontam que pelo menos 33% dos trabalhadores sofrem esse tipo de assédio. Tem aumentado o número dos que buscam a reparação por danos à dignidade e à honra, praticados por superiores hierárquicos ou políticas de gestão corporativa. Conforme os especialistas, o assédio moral pode levar a distúrbios psíquicos como ansiedade, perda da auto-estima e depressão. Nos casos extremos, chega a ser apontado como causa de suicídio.
Montagem de Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales
Montagem de Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales
Quando os vendedores não atingiam as metas eram obrigados a passar por um “corredor polonês”, além de serem obrigados a pagar “apoios”. (…) Eram ofendidos com palavras de baixo calão, além de expressões como “vocês são um bando de vagabundos”, “tem mais é que se ralar”, etc. (…) Havendo contrariedade por parte do empregado, este era obrigado a vestir uma saia e desfilar em cima de uma mesa, enquanto os colegas gritavam “veado”…
As frases transcritas acima constam do acórdão judicial que condenou a Companhia Brasileira de Bebidas (razão social do grupo AmBev, que reúne as marcas de cerveja Brahma, Skol e Antártica) a pagar indenização de R$ 21.600,00 ao vendedor Ronaldo Nunes Carvalho. O valor corresponde a 18 vezes o salário do trabalhador. Causa da condenação: dano moral.
A decisão dos juízes da 8ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região foi unânime. Data de 1o de julho de 2004. É uma das dezenas de ações judiciais de ex-funcionários contra a AmBev, em Porto Alegre, motivadas por dano ou assédio moral.
Demitido sem justa causa, Ronaldo ficou um ano desempregado. Vendeu o carro para sustentar a mulher e a filha. Hoje, trabalha em uma empresa fora da capital gaúcha. Embora tenha saído vitorioso na Justiça, o fantasma do ritual de humilhações de todos os finais de tarde na AmBev ainda o persegue. Não dá entrevistas, com medo de ser prejudicado no novo emprego. “Se soubesse que haveria tanta repercussão, não teria entrado com a ação”, afirma.
Segundo as testemunhas ouvidas no processo no 00887/2004-015-04-00 (pode ser acessado em www.trt4.gov.br), eram aplicadas “punições” aos empregados que não atingiam as metas, que chegavam atrasados ou que esqueciam o uniforme. Também eram punidos os que não sabiam responder às perguntas de gerentes e supervisores acerca do programa de excelência da Ambev. Aos funcionários eram feitas advertências como “burro, não entra nada nessa cabeça” ou “vou te f… no mês que vem”. Era regra que todos rissem sob pena de sofrer o mesmo agravo.
Ratos de laboratório
A AmBev informou que vai cumprir a decisão da Justiça. “Este processo refere-se a um caso pontual. A companhia reitera que respeita e valoriza os seus empregados. Todos os funcionários conhecem o Código de Ética da empresa, no qual são destacadas condutas éticas que devem orientar o cotidiano e as relações internas”, afirmou a cervejaria ao Extra Classe, através de sua assessoria de comunicação.
Os advogados da AmBev anexaram à defesa reportagem da revista Exame, de 2000, em que são mostradas as técnicas usadas para motivar os empregados. “Essas práticas competitivas são até certo ponto normais, mas configuram assédio moral, quando causam lesões aos direitos básicos da pessoa, com ofensa à honra e à dignidade”, explica o juiz Carlos Alberto Robinson, relator do processo julgado pela 8a Turma do TRT/RS.
Para o psiquiatra e psicanalista José Outeiral, as técnicas de motivação que incorporam métodos que humilham, causam vexame, denigrem e baixam a auto-estima devem ser contestadas por falta de validade científica. “É possível que funcionem com ratos de laboratório, mas, decididamente, são inadequadas com humanos”, afirma Outeiral, membro da Associação Psicanalítica Internacional e autor de mais de 20 livros publicados no Brasil e no exterior.
“ A técnica da punição é historicamente conhecida e sociologicamente comprovada como ineficiente, uma vez que leva alguém a trabalhar, mas jamais a dar o máximo de si mesmo. Para isso, precisamos inspirar as pessoas, e não fazê-las expirar de raiva”, complementa o consultor e palestrante nacional de marketing, vendas e motivação Paulo An-gelim, que é colunista do site da revista Você S.A.
Beliscões, piadas e ironias
A AmBev não é a única empresa condenada por dano moral. A filial da loja de eletrodomésticos Arapuã, em Caxias do Sul, também pagou reparação à ex-funcionária Vera Lúcia Vedovelli de Oliveira, conforme decisão da 7a Turma do TRT/RS, em junho deste ano. A indenização atingiu R$ 53.823,50, equivalente a 224,26 salários mínimos. A loja foi assaltada e, por infeliz coincidência, um dos assaltantes era vizinho de Vera Lúcia.
Afastada da supervisão dos caixas, a funcionária foi obrigada a devolver as chaves, além de ouvir um gerente e um supervisor fazerem menção explícita à suposta participação dela no assalto. Vera Lúcia tornou-se alvo de piadas e ironias no ambiente profissional, “gerando a perplexidade de alguns, a desconfiança de outros e a dor da reclamante”, conforme o acórdão judicial.
Também o Banco Lloyds foi condenado, em junho de 2003, por episódio envolvendo sua corretora Losango Promotora de Vendas. Um dos gerentes constrangia uma subordinada tanto fisicamente, forçando-a a contatos indesejados, que incluía beliscões nas nádegas, quanto socialmente, pressionando de forma pouco respeitosa a regularização de pendências da funcionária junto ao SPC.
Humilhações e maus-tratos
Montagem de Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales
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Em geral, a prova testemunhal é a base da argumentação para uma ação por danos morais, salienta o advogado Adriano de Vasconcelos França, da Clodory França Advogados Associados, da capital gaúcha. Há exceções, como no caso de uma farmácia de Porto Alegre, que pagou R$ 12 mil de indenização a um ex-funcionário acusado de furtar Viagra. Um documento interno da empresa anexado ao processo comprovou que o rapaz era alvo da suspeita. “A Justiça é rigorosa ao tratar do tema. O dano precisa estar perfeitamente configurado”, atesta o advogado.
O assédio moral foi identificado, pela primeira vez, pelo psicólogo alemão Heinz Leymann, que utilizou a palavra mobbing (em inglês) para batizá-lo. O termo se refere, em princípio, a práticas de violência ou terrorismo psicológico, dirigidos normalmente por um superior hierárquico a um ou mais empregados. O que caracteriza o assédio moral é a exposição dos trabalhadores a situações humilhantes e constrangedoras de forma sistemática – pelo menos, uma vez por semana, segundo Leymann – e por longo período de tempo (seis meses, no mínimo).
No ambiente profissional, o resultado é a degradação das condições de trabalho. As conseqüências danosas para a saúde do trabalhador não se limitam ao estresse e à perda da auto-estima. A pessoa pode ter sintomas como perturbação do sono e do humor, ansiedade e, em alguns casos, evoluir para a depressão. “A sintomalogia é variada: reações de ansiedade, quadros depressivos e episódios paranóides são algumas das muitas possibilidades clínicas”, afirma o psiquiatra José Outeiral. Nos casos mais dramáticos, o mobbing chega a ser apontado como causa de suicídio. Em março de 2001, o Superior Tribunal do Japão julgou a agência de publicidade Dentsu responsável pelo suicídio de um de seus empregados, que sofria de estresse e excesso de trabalho.
Fenômeno se banalizou com a globalização
Sem dúvida, a violência psicológica praticada contra trabalhadores não é um fato recente. Para os especialistas, entretanto, o que causa espanto é a banalização do fenômeno a partir da globalização da economia. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), os primeiros 20 anos do século XXI ficarão marcados como as décadas do “mal-estar na globalização”, com o agravamento de casos de depressão, angústia e outros danos psíquicos relacionados às práticas de gestão na organização de trabalho vinculadas às políticas neoliberais.
Em 1996, a OIT denunciou que havia cerca de 12 milhões de trabalhadores vítimas de maus-tratos psicológicos no âmbito da União Européia. O Reino Unido era o mais afetado, com 16,3% da classe trabalhadora sendo alvo de assédio moral. Depois, apareciam a Suécia (10,2%), França (9,9%), Irlanda (9,4%), Alemanha (7,3%), Espanha (5,5%), Bélgica (4,8%), Grécia (4,7%) e Itália (4,2%). Alguns países já adotaram medidas drásticas. Na Suécia, por exemplo, o assédio moral é considerado delito desde 1993.
No Brasil, não há estatísticas oficiais, mas dados preliminares de uma pesquisa divulgados no site www.assediomoral.org apontam para um alarmante índice de 33% de trabalhadores vítimas de violência psicológica. O tema passou a ser tratado com maior seriedade a partir da divulgação da dissertação de mestrado em Psicologia Social de Margarida Barreto, Uma jornada de humilhações, defendida em maio de 2000, na PUC/SP. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Psicossociais de Exclusão e Inclusão Social da universidade paulista, Margarida entrevistou, entre março de 1996 e julho de 1998, 2.072 trabalhadores (1.311 homens e 761 mulheres) das indústrias químicas, plásticas, farmacêuticas e similares de São Paulo.
No total, 97 empresas de grande e médio porte, incluindo multinacionais, foram investigadas. Quarenta e dois por cento dos entrevistados admitiram ter passado por experiências de humilhações, constrangimentos e situações vexatórias no local de trabalho. A pesquisa revelou ainda que, em função do tratamento tirânico dos chefes, 80% dos consultados queixavam-se de dores generalizadas, 45% apresentavam aumento da pressão arterial e mais de 60% reclamavam de palpitações e tremores, enquanto 40% sofriam de redução da libido.
Projeto está parado na pauta do Congresso
Montagem de Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales
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Na Câmara dos Deputados, em Brasília, tramita o Projeto de Lei do deputado Mauro Passos (PT-SC) sobre o assédio moral nas relações de trabalho. Como o Congresso está praticamente paralisado, desde meados do ano, em função da eleição municipal, o projeto parou na Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público, aguardando parecer do relator, deputado Vicentinho (PT-SP). Terá que passar ainda pela Comissão de Constituição e Justiça e não há previsão de quando será votado em plenário. “O assédio moral precisa ser coibido por uma legislação específica em nível nacional”, afirma Passos. “A empresa deve adotar ações educativas para que o ambiente de trabalho seja efetivamente livre desse instrumento do mal. Caso não o faça, será responsável pelo dano praticado”, acrescenta.
Para o juiz Carlos Alberto Robinson, as punições dos responsáveis por dano ou assédio moral sinalizam uma evolução da sociedade humana. “O direito é fruto do avanço do conhecimento e da ciência. O fato de estarmos hoje dando grande importância aos valores éticos sinaliza o aperfeiçoamento da civilização”, conclui o magistrado.
Professores também sofrem com assédio
No ambiente escolar, o assédio moral se manifesta de várias formas: esvaziamento das funções, perseguições veladas por parte dos superiores, críticas ao comportamento, enfraquecimento da autoridade do professor perante os alunos e pais, intimidações, censura e, por fim, pressão para forçar o pedido de demissão. A prática de assediar moralmente, em geral, parte daquele que possui o poder que, na expressão da psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen, é uma arma terrível quando em mãos de um indivíduo – ou de um sistema – perverso. A advogada do Sinpro/RS, Hélida Catelan, recomenda que, quando se sentir assediado moralmente, o professor procure orientação junto ao Sindicato, que fará a análise do caso e tomará as medidas cabíveis.
Uma professora que prefere não ser identificada, está movendo ação por dano moral contra uma escola de Porto Alegre, alegando ter sido discriminada em função de sua deficiência física – seqüela da poliomielite contraída na infância. Ela trabalhou durante três anos e meio na escola, preenchendo vaga destinada aos deficientes físicos, como professora contratada para atender a alunos da 1ª série do ensino fundamental. “Não fui valorizada e não ganhei as oportunidades que merecia. Passei todo o tempo auxiliando ou substituindo outras professoras, porque jamais me deram uma turma. No final, me transferiram para a biblioteca, onde fiquei cuidando do xerox e do atendimento ao público”, afirma.
Ao ser demitida, ouviu de um porta-voz da direção a alegação de que a escola poderia preencher a vaga de deficiente físico com uma pessoa que ganhasse salário menor, atuando como monitor. “Em 20 anos de trabalho, nunca passei por situação tão humilhante. É como se o deficiente não tivesse direito de ter uma profissão e de exercê-la dignamente. Lutei muito para estudar e ser professora”, diz a professora, que no momento está desempregada. Segundo a advogada do Sinpro/RS, o episódio caracteriza uma situação clara de discriminação e configura dano moral. “Ao não permitir que a professora tivesse uma turma em definitivo, a escola não deixou que ela exercesse na plenitude a função para a qual foi contratada. Trata-se de uma ofensa à sua dignidade”, conclui Hélida. A escola foi procurada pelo Extra Classe, e a direção não se manifestou sobre o assunto.
O que é assédio moral
Montagem de Claudete Sieber sobre foto de René Cabrales
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01. Utilizar rigor excessivo.
02. Determinar tarefas inúteis ou degradantes.
03. Desqualificar o empregado.
04. Submeter o funcionário a críticas e isolamento.
05. Inatividade forçada impossibilitando a realização de tarefas pelo empregado.
06. Explorar fragilidades psíquicas ou físicas.
07. Limitar criatividade e iniciativas do funcionário.
08. Obrigação de realizar autocrítica em reuniões públicas.
09. Exposição ao ridículo.
10. Divulgar doenças e problemas pessoais do empregado.