Novo modelo emprega a conciliação de envolvidos em conflito através da mediação nas relações entre vítima, infrator e punição – sem promover a exclusão social do jovem transgressor. O objetivo é promover a restauração dos relacionamentos ao invés de concentrar-se na determinação de culpa.
Priorizar o diálogo, e não o castigo. Reparar ou amenizar os danos gerados pelo crime, sem punir severamente o infrator ou promover sua exclusão social. Desta forma funciona a Justiça Restaurativa, um modelo de renovação gradativa das práticas tradicionais do sistema de Justiça Penal, em que se estabelecem a mediação para a reflexão e o entendimento nas relações entre vítima, infrator e punição.
A proposta pioneira em Porto Alegre, implantada desde 2005, busca restaurar os relacionamentos em vez de simplesmente concentrar-se na determinação de culpa. Dire-cionada para as redes de ensino e instituições sócio-educativas que trabalham com jovens infratores, a idéia é que todos os afetados por um delito têm papéis e responsabilidades nesse processo e devem, por isso, desenvolver coletivamente em torno do impacto e das conseqüências do crime. O relato de experiências positivas com as práticas restaurativas já aplicadas entre jovens em unidades educacionais revelou que a reparação de danos obteve êxito, evitando deste modo realimentar a violência.
A ênfase em resolver conflitos, mais do que punir transgressões, levou 18 órgãos públicos e instituições signatárias comprometidas com o projeto – entre as quais a Unesco – a multiplicar a sistemática reguladora no âmbito das esferas comunitárias, num total de 29 locais onde o projeto é implementado em fase experimental. Para o juiz da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre, Leoberto Brancher, a Justiça Restau-rativa permite democratizar os processos decisórios, reforçando a autonomia e ativando a responsabilidade dos envolvidos, com resultados concretos na pacificação de conflitos.
Divergências convertidas em entendimento
Se a banalização de agressões até atos mais depreciativos tornam-se crescentes, é nas escolas que a realidade, e muitas vezes os conflitos, surgem para afrontar a teoria dos educadores. E é com eles também que aparecem oportunidades concretas para a experiência em círculos restaura-tivos envolvendo estudantes e seus familiares, além de professores. Mas seria este o caminho a ser trilhado em busca de garantia para os direitos de vítimas e transgressores? O ques-tionamento vem sendo feito, na teoria e na prática, por juristas e especialistas nas áreas de Assistência Social e Educação. De acordo com a promotora de Justiça da Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre, Eleonora Poglia, as práticas restaurativas, embora incipientes no país, apontam para a construção de uma justiça mais participativa e efetiva, ao contrário de ser apenas punitiva. “Significativa é a participação da vítima, que é realmente ouvida, podendo expor seus sentimentos e suas necessidades, ao invés de mero meio de prova”, explica. A promotora afirma ainda que o infrator, confrontado com as conseqüências de seus atos, pode sentir-se responsabilizado e, então, entender os sentimentos que o impulsionaram, adotando outras estratégias, que não a violência, para atender suas necessidades.
Mas os conceitos são amplos. Conforme a educadora da Divisão Porto Alegre da Secretaria Estadual de Educação, Cleci Maria Jurach, a escola, muito mais que um local destinado à aprendizagem, ao conhecimento, é ponto de encontro de uma multiplicidade de raças, de credos e de religiões. “Nesse universo fantástico de relacionamentos que só a escola é capaz de formar também surgem conflitos, divergências, agressões verbais e corporais”, relata.
Porém, a vivência da Justiça Restaurativa exige assumir responsabilidades e compromissos. Conforme a pedagoga da Secretaria Municipal da Educação (Smed), Maria do Carmo de Souza, a Justiça Restaurativa é um desafio ao consenso e ao convívio pacífico. “Para que todos sejam ouvidos e troquem seus sentimentos e suas angústias, são promovidos círculos restaurativos, onde não existe o destaque a funções ou cargos, mas a acolhida da pessoa e sua história de vida”, explica.
Efeitos colaterais indesejados
Em situações extremas de conflito, quando se evoca em manifestações como “queremos justiça!”, busca-se a reparação pela punição exemplar ou medidas preventivas atenuantes? Considerando o agravante de uma violação, é concebível afirmar que o restabelecimento passe pelo critério da indenização ou castigo. Esta prerrogativa, ainda perpetrada em decisões judiciais, começa a ganhar novos contornos na magistratura.
Há quem divirja, no entanto, que a prática restaurativa possa vir a estimular a impunidade em casos de conflitos mais graves ou mesmo provocar a reincidência do agressor em uma eventual infração, já que o ato punitivo neste círculo de relações é repelido, reproduzindo nova reação do infrator. Correntes mais conservadoras entre juristas apontam que a mediação pelo método restaurativo distorce os princípios constitucionais da Justiça, que tradicionalmente aplica a imposição de punições ou medidas terapêuticas como solução à violência e às transgressões. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Marco Antônio Barbosa Leal, atenua a polêmica, mas esclarece que, mesmo havendo resistência, ainda assim a prática restaurativa propõe-se pelo princípio da solidariedade. “Aquilo que foi rompido hoje, pode ser unido amanhã, com a intervenção do magistrado”, explica. Porém, Leal adverte que para delitos de maior ofensividade, que colocam em risco a integridade física ou a própria vida entre o meio social, são necessárias outras medidas.
A dor ensina a gemer?
Para combater a impunidade, é necessário rigor na sentença. Por outro lado, oposicionistas ao modelo jurídico estabelecido observam que a punição prevista na legislação penal apresenta a disseminação expressa da vingança pública exercida pelo Estado em nome da sociedade. Neste caso, fundamenta-se que o sofrimento pode servir como estratégia pedagógica para a adequação de comportamentos. O consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos, Marcos Rolim, questiona que o modelo tradicional de Justiça Criminal é planificado na necessidade de distribuir medidas punitivas, cuja racionalidade se estrutura sobre o castigo. “Se dissermos que ‘punição’ é um mal a uma pessoa em retribuição ao mal por ela praticada, constata-se que, quando falamos ‘Justiça’ estamos propondo a oferta de um mal?”, aponta.
Rolim defende que a vítima tenha suas necessidades reconhecidas, para que, então, ela e o agressor possam, como resultado de uma lógica argumentativa, selar um acordo pelo qual o contraventor se obrigue a aliviar a dor causada e restaurar uma situação de equilíbrio. “Mas as necessidades do agressor também são reconhecidas porque, para a Justiça Restaurativa, é decisivo superar os agenciamentos que estimularam a agressão”, pondera.