Polícia é um caso de política
Tomaz Silva/ABr
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“O tema da desmilitarização é importante se significar a democratização das PMs e seu efetivo controle externo. Mas se isso significar menos disciplina e hierarquia – e, portanto, menos controle – só o que teremos é uma nova Polícia Civil, com os mesmos problemas de ineficiência, sobrecarga burocrática e corrupção”, alerta o sociólogo Marcos Rolim, professor da Cátedra de Direitos Humanos do IPA. A ideia da unificação das polícias, pondera, “é um erro colossal que contraria, inclusive, as tendências internacionais no policiamento. No mundo inteiro, vive-se um período de multiplicação das instituições policiais, de descentralização e especialização na oferta desse serviço”.
Uma pesquisa com 65 mil policiais civis e militares, guardas municipais, bombeiros e agentes penitenciários feita por Rolim, pelo ex-secretário nacional de Segurança e autor de A elite da tropa, Luiz Eduardo Soares, e por Silvia Ramos, para o Ministério da Justiça, em 2009, mostra que a maioria dos profissionais de segurança pública deseja mudanças institucionais profundas, quer novas polícias, não aprova as polícias em que atua, nem concorda com o atual modelo organizacional. A pesquisa constata ainda que os policiais militares são menos resistentes às mudanças do que os civis e que os oficiais da PM são tão favoráveis às mudanças quanto os não oficiais.
Três projetos legislativos propõem alterações nas polícias. A PEC 300/2008, do deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB/SP), equipara os salários de policiais militares e bombeiros dos estados aos da PM do Distrito Federal e está em votação no Congresso. Em agosto, o senador Luiz Lindbergh Farias Filho (PT/RJ) começou a colher assinaturas para sua proposta de unificação das polícias. Já a PEC 102, do senador Blairo Maggi (PR/MT), que prevê a unificação das polícias e a criação do Conselho Nacional de Segurança, tramita no Senado desde 2011. O relator, Waldemir Moka (PMDB-MS), que retém o projeto há quase um ano, consultou os governos estaduais e diz que o texto será votado em outubro de 2013. “Existem forteslobbies contra a unificação, especialmente de policiais em cargos e funções de comando, que não querem perder o status e as regalias, pouco se importando com o cidadão”, reclama Maggi. No final de agosto, a aprovação de um projeto do senador Vital do Rêgo Filho (PMDB-PB) sinalizou uma mudança na legislação para acabar com a impunidade de crimes cometidos pela polícia. A proposta, que ainda precisa ser aprovada na Câmara, insere no Código Penal a tipificação de crime de desaparecimento forçado. Com isso, os responsáveis pelo desaparecimento involuntário de uma pessoa poderão ser condenados à pena mínima de seis a 12 anos de prisão mais multa, e à máxima até 30 anos em caso de morte do desaparecido, com agravantes por tortura. “Dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) mostram que entre 1991 e 2013 foram 91 mil casos (de pessoas desaparecidas que foram levadas por agentes do estado) somente no Rio de Janeiro”, enfatiza o relator da matéria, senador Pedro Taques (PDT/MT).
Dividir para governar
Igor Sperotto
Igor Sperotto
Sem controle externo
Marcelo Camargo/ABr
Marcelo Camargo/ABr
“O passo fundamental é o da desconstitucionalização do modelo de polícia. Na Constituição Federal devemos fazer constar as regras imprescindíveis à estruturação do serviço policial, prevendo, por exemplo, ciclo completo de policiamento para todas as instituições policiais, mediante especialização por tipo penal, carreira única em cada uma das polícias e também os princípios gerais do policiamento, as garantias oferecidas aos policiais e as obrigações referentes à prestação de contas ao público e às atribuições do controle externo. O tipo de estrutura policial, sua especialização, tamanho, níveis hierárquicos, número de instituições etc., tudo isso deveria ser matéria para legislação complementar dos estados e municípios”, aponta Rolim.
Subordinadas aos governos dos estados e a cabresto das suas políticas para a segurança, as forças policiais, como estão estruturadas atualmente, fogem facilmente do controle. Para Rolim, as polícias precisam de instituições vocacionadas ao controle externo e especializadas no tema. “O Brasil é uma das poucas democracias contemporâneas que não possui instituições especiais de controle externo das polícias, como ocorre em todo o mundo civilizado. Os governos não controlam suas polícias, porque suas agendas são orientadas por objetivos eleitorais. O controle da atividade policial pressupõe disposição para o desgaste político, coisa que é cada vez mais rarefeita entre nossos gestores. Para eles, trata-se, pelo contrário, de evitar qualquer desgaste, ainda que isso seja desastroso para o interesse público”, provoca.
Um dos fundadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ele considera inadequada a proposta de unificação e defende um modelo de polícia cidadã. “Polícia única é uma ideia autoritária. Não por acaso, as democracias tendem a pulverizar as forças policiais, tornando-as menores, mais ágeis e mais especializadas, enquanto as ditaduras tendem a concentrar suas polícias, utilizando-as como forças do Estado contra a sociedade. No caso brasileiro, uma polícia única poderia colocar em risco a democracia com facilidade, exatamente por estar fora de qualquer controle efetivo”, alerta Rolim.
Polícia única e desmilitarizada
O cientista político Guaraci Mingardi, especialista em segurança pública e consultor sobre inteligência e análise criminal, crime organizado e corrupção, defende uma só polícia por estado, de formação civil, mas não dentro do modelo da atual Polícia Civil, que para ele “é muito burocratizada e com sérios problemas de corrupção”. “O ideal seria a instituição de outra polícia, formada pela junção das duas atuais, segundo um modelo bem menos militarizado que o da PM, mas também distante da ênfase burocrática e do excesso de juridiquês da atual Polícia Civil”.
Ex-secretário de Segurança de Guarulhos, Mingardi foi assessor da Procuradoria de Justiça do MP de São Paulo e subsecretário nacional de Segurança Pública. Ele considera o ingresso único e a carreira como requisitos para equacionar a divisão de atribuições (policiamento e investigação) em uma polícia única, de Estado. “Todos têm de começar nos plantões e na rua, prevenindo, depois é que a carreira pode se desenvolver para alguma especialização. Temos que acabar o ingresso de delegados e oficiais separados dos que entram nas carreiras inferiores”, aponta.
CURSO SUPERIOR – Para o professor da pós-graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais da PUCRS, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, a reformulação da segurança pública deve considerar a história das instituições envolvidas. “Historicamente no Brasil o Estado se utiliza da polícia não para prestar serviços e garantir direitos ao cidadão, mas para produzir repressão ou conter as chamadas classes perigosas, os excluídos. Esse ethos policial vem da origem das relações entre Estado e sociedade no Brasil e é reforçado nos períodos autoritários, como o Estado Novo e a ditadura de 64. Não é possível mudar uma cultura institucional da noite para o dia”, observa. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Azevedo defende a formação superior não somente em Direito, mas em outras áreas do conhecimento como Sociologia, Psicologia e Administração como pré-requisito às funções de polícia, com melhoria na remuneração e carreira única. “Se o papel da polícia é manter uma estrutura social desigual, ela reproduz essa desigualdade no seu interior, com a concentração de poder nas mãos dos delegados e oficiais, e desvalorização e submissão das categorias subalternas, que não têm possibilidade de ascensão profissional”, aponta.
O professor Roberto Kant de Lima, do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), considera insuficiente a desmilitarização. Idealizador do primeiro curso de bacharelado em Segurança Pública do país, Lima observa que a forma de atuação repressiva é comum às duas polícias, tanto militar quanto civil. “Ambas atuam de forma a se tornarem parte do conflito, para extingui-lo e o trabalho de administração de conflitos é deixado de lado”, alerta, enfatizando a necessidade de formação e não apenas treinamento de policiais. “Precisamos de uma transformação na missão, na ideologia da polícia”.
ONU e ativistas pedem o fim da PM
A desmilitarização e a extinção da Polícia Militar brasileira são defendidas por ativistas e organismos internacionais, a exemplo da ONU e da Anistia Internacional. Em maio do ano passado, o Conselho de Direitos Humanos da ONU apontou a prática de tortura pela Polícia Militar e o caos prisional como os dois principais problemas do país e recomendou a desmilitarização da PM. A recomendação foi rejeitada. Maria Nazareth Farani de Azevedo, embaixadora brasileira na sede da ONU em Genebra, justificou que a extinção da Polícia Militar viola a constituição nacional, que prevê a existência de forças civis e militares. Além da Dinamarca, que recomendou a supressão da PM, opinaram representantes da Coreia do Sul, Espanha, França e Paraguai, condenando as execuções extrajudiciais e as ações do “esquadrão da morte”.
Em julho deste ano, a organização de direitos humanos Human Rights Watch entregou ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), documento assinado pelo seu diretor José Miguel Vivanco no qual alerta para a gravidade das execuções extrajudiciais cometidas por policiais. Seis pessoas são assassinadas por policiais a cada semana, ressalta a entidade que analisou boletins de ocorrências de 2012 qualificados como “resistência seguida de morte”. Dos 379 feridos levados por policiais aos hospitais, 300 morreram, um percentual de 95%, aponta a HRW. A organização apurou ainda que a Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), tropa de elite da PM paulista, executou 247 pessoas entre 2010 e 2012. Vivanco afirma que as provas colhidas nos crimes analisados revelam um padrão: os policiais executam pessoas e, em seguida, acobertam esses crimes. “Uma das melhores formas de acabar com isso é promover a responsabilização dos policiais envolvidos, deixando claro que não haverá impunidade”.
A Human Rights examinou 22 casos de mortes decorrentes de intervenção policial entre 2010 e 2012 e constatou que as provas disponíveis lançam dúvidas sobre as alegações da polícia de que o uso de força letal foi legítimo. Em 20 desses casos, os policiais envolvidos removeram as vítimas das cenas do crime e as levaram a hospitais em alegadas tentativas de “socorro”. Nenhuma sobreviveu.