Cresce 20% ao ano a produção de arroz sem agrotóxicos
Foto: Leonardo Savaris
A perspectiva de uma safra de 21,3 mil toneladas de arroz sem agrotóxicos em 12 municípios gaúchos foi comemorada no dia 4 de março. A produção provém de uma área de 4.398 hectares distribuídos em várias localidades, e estima-se que seja 20% superior à do ano passado, seguindo a taxa de crescimento dos últimos 5 anos.
No assentamento Lagoa do Junco, em Tapes, cerca de 10 mil pessoas, entre assentados da Reforma Agrária, pequenos agricultores familiares, lideranças sindicais, prefeitos, vereadores, secretários de Estado, técnicos, cooperativados e jovens camponeses, se reuniram para reafirmar o compromisso de produzir sem utilizar venenos. O encontro marcou a abertura oficial da colheita de arroz agroecológico em 15 assentamentos do Estado e coincidiu com o início da 37ª Romaria da Terra, que este ano tem como tema “Reforma Agrária, cooperação e agroecologia: cultivar vida saudável”.
Iniciada nos anos 1998 e 1999 na área de Lagoa do Junco, a produção de arroz agroecológico ou orgânico do Estado passa por um dos melhores períodos desde então, com previsão de crescimento de 20% ao ano. Os colonos assentados por Reforma Agrária respondem pela produção em 3.450 hectares, cerca de 0,4% da área total de arroz no RS.
Foto: Leonardo Savaris
Os impactos positivos dessa produção não alcançam apenas as 501 famílias de pequenos agricultores envolvidas no cultivo dos assentamentos. A população tem acesso mais fácil aos orgânicos nas prateleiras dos supermercados e na alimentação das escolas e instituições públicas. Desde 2010, estudantes da rede municipal de ensino da região metropolitana consomem o arroz orgânico, devido à lei que garante a compra de alimentação escolar da agricultura familiar. Em 2013 escolas de São Paulo também passaram a receber alimentos saudáveis e de melhor qualidade, sendo que até abril de 2014 serão enviadas para o estado mais 930 toneladas de arroz Terra Livre Orgânico, marca registrada dos assentamentos da Reforma Agrária do Rio Grande do Sul.
O aumento da procura pelo arroz orgânico não se deve apenas ao crescimento do consumo consciente baseado em uma alimentação saudável. A Lei n° 11.947/2009 determina a utilização de, no mínimo, 30% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para alimentação escolar na compra de produtos da agricultura familiar e do empreendedor familiar rural ou de suas organizações, priorizando os assentamentos de reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e as comunidades quilombolas.
Até chegar a este ponto, houve várias etapas. Nos primeiros tempos dos assentamentos, ainda acontecia o cultivo do arroz convencional. Nos anos 90, o endividamento devido à falta de estrutura e ao alto custo da produção com gastos em kits de agrotóxicos e fertilizantes químicos, as doenças associadas ao uso dos venenos na lavoura e a degradação ambiental levaram à necessidade de discutir alternativas mais econômicas e saudáveis. As cooperativas ganharam força, e os agricultores que haviam falido com a produção tradicional se uniram para buscar informações e aprender com experiências bem-sucedidas como a de Tapes, assim como com outros agricultores familiares que se dispuseram a compartilhar conhecimentos.
Foto: Leonardo Savaris
A partir de 2002 surgiu o Grupo Gestor do Arroz Ecológico. Formado inicialmente por assentados da região de Porto Alegre, o grupo cresceu e se tornou estadual. “Lutamos por políticas públicas para melhorar a produção e a comercialização, com foco em investimentos através de programas de financiamento para avançarmos”, afirma Huli Marcos Zang, integrante do Grupo Gestor e tesoureiro da Cooperativa do Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão.
André Oliveira, coordenador regional do Instituto Riograndense do Arroz (IRGA) na zona Sul do Estado, lembra que até 2003 os produtores de arroz orgânico almejavam o mercado externo, que parecia promissor. O incremento da demanda para o mercado interno passou a ser significativo em 2005, com as compras realizadas pelos órgãos públicos para o Programa Fome Zero e o Programa Nacional de Alimentação. “A política pública de Governo passou a ser consagrada e se tornou uma política de Estado, independentemente de partidos políticos”, relata.
Para participar da licitação, era importante que os produtores tivessem seus produtos certificados como orgânicos, o que exige que todo o processo, e não só a produção, tenha como objetivo “a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais e a minimização da dependência de energia não renovável”, conforme a Lei de nº 10.831, de 23 de dezembro de 2003.
Os assentados passaram a investir em tecnologias de qualificação, tanto na lavoura como na indústria – por exemplo, de empacotamento a vácuo –, de forma a facilitar o armazenamento. Além disso, foram criadas marcas para fortalecer a identidade dos produtos. “É um processo bonito de evolução”, testemunha Oliveira. “Desenvolveu-se uma relação solidária e de reciprocidade, com intercâmbios sobre como evitar as pragas e controlar invasoras. Por exemplo, com o manejo da lâmina de água onde cresce o arroz: com afogamento ou retirada total da água em períodos curtos, ou com marrecos em determinados momentos”, relata o técnico.
Persistem desafios. Um deles é o preço do arroz orgânico, cerca de 20% a 30% a mais que o valor do produto convencional. É possível investir para produzir toneladas e tornar o produto competitivo? Na teoria, sim, responde Zang. “Algumas pessoas estão dispostas a pagar mais caro pelo orgânico, mas ainda são poucas”, reconhece. Há outros empecilhos. “O governo anuncia que tem milhões para a agricultura familiar, que há crédito para comprar tratores e colheitadeiras, entretanto, o pequeno agricultor não consegue financiamento”, reclama.
Neste momento, os colonos trabalham para diversificar a oferta de produtos. O arroz orgânico já significou uma ampliação da produção agroecológica de hortaliças. Na área dos Filhos de Sepé, a Agroindústria de Panifícios, em funcionamento há dois anos, e a Agroindústria de Processamento Vegetal, a ser implantada, têm como objetivo incrementar a renda e a ocupação de mulheres e jovens. A permanência dos filhos e netos na terra é uma preocupação das famílias. “Caso contrário, eles acabam indo para a cidade para ser mão de obra barata em postos de combustíveis e supermercados”, diz Zang.
De sem-terra a protagonismo da história
Os assentados que aderiram à produção de orgânicos já foram romeiros e participaram de ocupações de terras ociosas. A primeira preocupação na época era conseguir uma gleba. Depois, qualificar a produção. Em seguida, garantir atendimento de saúde, escolas, transporte. A cada conquista, um novo sonho. No assentamento Capela, situado no município de Nova Santa Rita, onde vivem desde 1993 – um ano antes de ganharem oficialmente seu pedaço de chão –, Nilvo Bosa e Fatima Miloransa seguem fazendo planos. O casal integra a Cooperativa de Produção (COOPAN) junto com outras 29 famílias.
Na área da COOPAN, em que tudo é aproveitado, inclusive as sobras do arroz beneficiado que alimentam os porcos, os cooperados planejam construir um abatedouro e colocar uma padaria para funcionar. Quando houver recursos, erguer um ginásio de esportes. “Para melhorar o lazer”, explica Bosa.
Ele e Fatima estão convencidos da importância de sua opção para o futuro dos filhos e das gerações seguintes. A produção sem agrotóxicos faz parte de uma filosofia de busca do equilíbrio entre o ser humano e o meio em que vive. Os colonos que agora se orgulham da produção orgânica já produziram também no modo tradicional e se deram conta de que o uso de fertilizantes químicos, agrotóxicos e mecanização pesada destroem a saúde e o ambiente.
“Acredito que a maioria de nós teve ambição de chegar onde chegou. A ambição não pode parar. A gente se recuperou como ser humano, veio na condição de excluído para ser incluído na sociedade de novo”, diz Bosa. “Quero incentivar meus filhos a ficarem aqui”, afirma Fatima. As condições são diferentes de quando ela, aos 19 anos, decidiu ir com um tio para um acampamento de sem-terra. O tio desistiu, ela não. “Escrevi uma carta para meu pai dizendo que ia atrás do sonho de conseguir a terra”.
Os jovens nascidos e criados nos assentamentos são incentivados a estudar até a 5ª série ali mesmo e depois completar os estudos em alguma faculdade fora, sempre com a perspectiva de voltarem. “As pessoas que produzem de forma diferenciada nos assentamentos deixaram de ser marginais em potencial na sociedade. Muitos delas começaram como sem-terra, entraram para o MST e hoje estão produzindo. Talvez tivessem ido para as periferias das cidades, se desviado para o mundo do crime ou sido mortos se não houvessem conquistado a terra. Reescreveram sua história e a história do Brasil”, interpreta o médico Marcos Tiaraju, 28 anos.
Tiaraju foi um dos filhos de assentados que voltou. Sua mãe, Roseli Celeste Nunes da Silva, a Rose, virou um símbolo da luta do MST. Tiaraju foi o primeiro bebê nascido em meio às lonas de barracas da área ocupada na Fazenda Annoni. Em 3 de março de 1987, Rose, 26 anos, participava de uma manifestação próximo à Fazenda quando um caminhão a atropelou e a matou junto com outros dois sem-terra. O pai de Tiaraju mora com a madrasta no assentamento Filhos de Sepé. Formado em Medicina em Cuba, onde estudou de 2006 a 2012, atende nos postos de saúde da periferia da cidade e na zona rural de Nova Santa Rita.
Produção ecológica vai além do arroz
Filho de um pequeno agricultor da cidade gaúcha de Iraí, engajado política e ideologicamente, e de uma militante que lutou pelo direito à maternidade e à aposentadoria das agricultoras, Huli Marcos Zang cresceu durante a Revolução Verde que incentivava a compra de sementes híbridas e fertilizantes químicos de multinacionais.
Foto: Leonardo Savaris
A família se uniu ao MST recém-criado e participou da histórica ocupação da Fazenda Annoni, em Pontão (RS), em 1985. Quando concluiu os estudos do 2º grau, aos 17 anos, sem condições de cursar uma faculdade, juntou-se definitivamente ao movimento em ocupações de áreas improdutivas pelo Estado. Foi assim que conheceu Roseli Canzarolli, descendente de italianos que trabalhavam no interior de São Paulo, em uma lavoura de café, até a crise que fez a família perder sua terra em dívidas com o banco.
Estudante de Medicina Veterinária em Pelotas, no período de férias da faculdade, Roseli acompanha o trabalho das agroindústrias da Cooperativa no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão. O assentamento tem 9.600 hectares onde vivem 376 famílias. Destas, 145 são de produtores de arroz orgânico, cultivado em 1.350 hectares. O resto do terreno é usado para gado de leite e corte, hortas e pomares. É possível cultivar até 1.600 hectares dentro dos limites estipulados para a proteção do banhado. Isso porque o Filhos de Sepé está localizado em uma Área de Preservação Permanente. Dentro do assentamento fica o Refúgio da Vida Silvestre Banhado dos Pachecos, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. “Aqui existem mais de 200 espécies de aves, jacaré do papo amarelo e cervo do pantanal”, descreve Zang. Um Termo de Ajuste de Conduta feito pelo Ministério Público determinou que não se pode cultivar arroz convencional naquela área. A estimativa para a safra 2013/2014 é de chegar a uma produção de 120 mil sacas do cereal no assentamento, colocando o Rio Grande do Sul entre os maiores produtores de arroz orgânico do país.
Roseli se emociona ao falar do futuro, sentada no escritório onde funciona a padaria da agroindústria que ajudou a criar. O cheiro de pão, cucas e biscoitos caseiros saindo do forno enche o ambiente enquanto ela descreve como a Agroindústria de Panifícios surgiu para complementar a renda de mulheres que tinham de trabalhar como diaristas em casas da cidade, durante o período de seca ou quando não havia produção.
Tímida e sorridente, Ines Bottini Pinto foi uma das beneficiadas. Antes de botar a mão literalmente na massa, ela tinha crises de pressão alta e tomava antidepressivos. “Sempre trabalhei na lavoura, mas ganhava pouco. Agora trabalho das 5h às 11h na padaria e depois vou para a lavoura. Só não saio cantarolando cedo de manhã para não acordar os vizinhos”, avisa, divertida. Aos 47 anos, com quatro filhos, conta que parou com os antidepressivos e que com o dinheiro extra conseguiu comprar o que queria: máquina de lavar roupa, forno de micro-ondas, cobertor, mesa com cadeiras, panelas. “Sei que lá na escola vão comer nossos produtos. Não tem dinheiro que pague isso. A sociedade nos vê de um jeito diferente”, diz Ines. Dos sonhos que cultiva ainda falta o de voltar a estudar. Tem tempo, acredita. Afinal, sua mãe aprendeu a ler e a escrever aos 68 anos.