Tragédia forja nova legislação
As mortes de 242 pessoas no incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, deixou um legado de comoção e revolta, expôs a fragilidade da fiscalização, suspeita de fraudes nas relações entre prefeituras, bombeiros e estabelecimentos comerciais, além de escancarar a falta de segurança em locais públicos Estado afora. As falhas na legislação e a fragilidade das regras de licenciamentos e de procedimentos de segurança e prevenção vêm sendo apontadas como causas de incêndios. Passado mais de um ano da tragédia, pouco mudou em termos de prevenção em locais de permanência ou circulação de pessoas.
Foto: Leandro Molina/Divulgação
No estado, a maioria dos prédios do poder público e de escolas não possuem ou estão aguardando a tramitação do Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI), ferramenta fundamental para a segurança contra sinistros. Pior, faltam bombeiros e equipamentos adequados à realidade dos municípios e a fiscalização é branda – exceto quando ocorre algum incêndio com grande repercussão na mídia.
Publicada no Diário Oficial do Estado do dia 27 de dezembro (passados exatos onze meses da tragédia na casa noturna de Santa Maria), a Lei Complementar 14.376/2013, de proteção contra incêndios, foi apresentada pelo deputado estadual Adão Villaverde (PT) para integrantes da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia da boate Kiss, na tarde do dia 30 de dezembro, em Santa Maria. A Lei foi qualificada pelo presidente da entidade, Adherbal Alves Ferreira, como parte do legado das vítimas “para mudar o futuro e evitar novas tragédias”.
Acompanhado pelos deputados santa-marienses Valdeci Oliveira e Jorge Pozzobom, e de Jurandir Maciel, relator da Comissão Especial que atualizou a legislação na Assembleia Legislativa, Villaverde destacou que a nova lei, sancionada no dia 26 de dezembro pelo governador Tarso Genro, tem como premissa a preservação de vidas, acima do funcionamento seguro das edificações e da proteção de patrimônios. Segundo ele, entre as inovações da lei destaca-se a carga de incêndio, que afere o potencial térmico de combustão considerando o todo que compõe as edificações, a estrutura e o material interno, a madeira, o tecido de cortinas ou carpetes, o papel, o gesso, a madeira, tudo conta para se aferir a carga de incêndio. Além disso, é considerada a finalidade do imóvel, a capacidade de lotação e o controle e a extração de fumaça.
Foto: Diogo Baigorra/Divulgação
De acordo com o parlamentar, a nova legislação é transparente, rigorosa e criteriosa. “É clara e transparente do ponto de vista das responsabilidades, atribuições, parâmetros e conteúdos, rigorosa quanto à fiscalização, às inspeções, aos licenciamentos e às sanções e criteriosa e justa porque exige de cada edificação apenas aquilo que ela necessita realmente para prevenção e segurança contra incêndio. Uma fábrica de gelo do mesmo tamanho e área de uma indústria de gelo não serão mais tratados da mesma maneira injusta”, compara, ressaltando o equilíbrio da lei ao evitar os dois extremos “da leniência cúmplice e da rigidez paralisante”.
Recomendações
O órgão técnico da Assembleia Legislativa encaminhou ao governo um relatório com sugestões que não foram incluídas no projeto de lei para não caracterizar vício de origem e que recomendam ao Executivo a aplicação de “multas pesadas” que tenham também “caráter pedagógico”. A Lei Complementar proíbe acordos e Termos de Ajuste de Conduta (TACs) bilaterais, celebrados entre o proprietário de imóvel e o órgão do Judiciário, sem controle e conhecimento da prefeitura e do Corpo de Bombeiros. Por outro lado, os prazos de adaptação e de aplicação da nova lei aliviam a sobrecarga de processos aos bombeiros, que não precisarão realizar revisões anuais em prédios de baixo potencial de incêndio.
Os próximos passos da regulamentação da legislação envolvem, por exemplo, além da definição dos valores das multas, a edição de normas técnicas do Corpo de Bombeiros para detalhar aspectos específicos da legislação. No entanto, a lei já tem efeito prático imediato, pois, logo após ser sancionada, passou a valer como regramento legal para as novas edificações. Como determina a legislação, nenhuma nova edificação poderá funcionar sem o alvará inicial de prevenção e proteção contra incêndios fornecido pelo Corpo de Bombeiros, que poderá interditar imóveis que não tenham se enquadrado na nova legislação ou infratores. No prazo máximo de seis meses, a lei valerá para imóveis reformados ou que têm projetos de reforma ou alteração estrutural. Os imóveis que não sofreram modificação terão cinco anos para se adaptar às novas regras.
Vanguarda
Assinado em abril de 1997 por Antônio Britto, o Decreto 37.380, com apenas seis artigos e uma sucessão de anexos, permaneceu como a única legislação de prevenção e combate a incêndios em vigor no Estado até a sanção da Lei Complementar, por Tarso Genro, em dezembro passado. O decreto atribuía a elaboração do plano de combate a incêndio ao Corpo de Bombeiros, sem a exigência do envolvimento de especialistas e sem considerar variáveis como a função da edificação, a composição dos materiais existentes no interior do prédio, o tempo de evacuação e as rotas de fuga. Para a elaboração do plano de combate a incêndio, exigia apenas um estudo técnico em que bastava a conferência da nota fiscal dos extintores, por exemplo, sem a garantia de existência dos equipamentos no local. “Pela Lei anterior, o parâmetro era apenas área e altura, ao contrário da nova Lei Complementar, que leva em conta a carga de incêndio, os materiais existentes no interior da edificação, a soma das energias, a letalidade da fumaça, etc.
Trata-se de um avanço, construído a partir das lições tiradas da tragédia da boate Kiss, com a participação de especialistas e da sociedade, resultado de uma nova cultura de prevenção e preservação da vida. Temos uma legislação que ainda não é ideal, mas que já é referência para todo o país”, comemora o engenheiro Luiz Alcides Capoani, presidente do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (CREA-RS).
O dirigente ressalta os critérios estabelecidos pela nova legislação, como o fim das licenças provisórias, o rigor da fiscalização, com multas pesadas, e a clareza nas atribuições e nos prazos de inspeção. Dos mais de 600 estabelecimentos que foram interditados por falta de segurança no estado imediatamente após o incêndio da boate em Santa Maria, somente um terço permanecia fechado passado um ano da tragédia, conforme dados da Divisão Técnica de Prevenção Contra Incêndio (DTPI) do Corpo de Bombeiros. Em 2012, as interdições não passaram de 150. Apesar de intensificada por causa do episódio, a fiscalização das edificações é escassa.