Vida de motoboy vale 8 reais
Foto: Igor Sperotto
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Em 2014, pelo menos 500 motociclistas morrerão no Rio Grande do Sul, em sua maior parte motoboys, jovens, entre 18 e 34 anos, a maioria no mercado de trabalho terceirizado ou informal. Além desses, um exército de motociclistas profissionais e trabalhadores que utilizam motos para deslocamento terão sequelas temporárias ou definitivas causadas por negligência ou imprudência de motoristas de veículos maiores, deles próprios ou de ambos, sem contar as más condições das vias públicas.
A previsão é do Comitê Estadual Pela Segurança do Trânsito, órgão ligado ao governo estadual para estabelecer articulações políticas e realizar ações no sentido de reduzir em 50% os óbitos até 2020, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde, em um plano global iniciado em 2011. Conforme o Mapa da Violência 2013, o número de motocondutores mortos por acidente entre 1996 e 2011 cresceu de 932% (de 1.421 para 14.466, totalizando 113.880 em 15 anos). Se fossem excluídas as mortes de motociclistas haveria uma queda de 18,7% ao invés de aumentar 22,6%.
De 1998 a 2011, a taxa de internações pelo SUS por acidentes decresceu 32,8% entre pedestres. Entre ocupantes de automóvel a redução foi de 33,4%; porém, na de ocupantes de motocicleta, as taxas aumentam drasticamente: 288,7%. Um exemplo disso é o Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS), que segundo o traumatologista Paulo Henrique Mulazzani chega a ocupar 50% dos leitos com atendimento a motoqueiros acidentados. “São ferimentos e sequelas graves com tratamentos longos. É uma tragédia social”, diz. A média nacional é de 65% dos leitos hospitalares ocupados por acidentados de trânsito, desse total, 70% são motociclistas, conforme o Observatório Nacional de Segurança no Trânsito.
Conforme o tenente-coronel Ordeli Savedra Gomes, assessor superior do Comitê Estadual de Segurança no Trânsito, o objetivo é, até 2020, poupar 5 milhões de vidas em todo o planeta. No RS, a meta é salvar 10 mil vidas. Em 2000, no RS, foram contabilizados 1.056 óbitos no trânsito. Em 2010, foram 2.191. “Mantendo essa projeção, chegaríamos em 2020 com 3,2 mil óbitos. A ideia é chegar em 2020 com 1,6 mil, o que significa 50% de redução”, calcula. Mas os dados do Mapa da Violência, no que se refere a motos, no Brasil, faz uma projeção alarmante: de 2011 a 2020 morrerão 196,2 mil motociclistas.
De acordo com os dados do Comitê, em 2013, foram 1.968 mortes. Dessas, 25% foram de motociclistas. Porém, houve uma redução de 10% no número de óbitos de 2010 para 2013, o que está dentro da meta estipulada para o estado. “Para chegar dos 1.191 de 2010 e alcançar 1,6 mil em 2020, mesmo com 8% de crescimento da frota ao ano, temos de reduzir a taxa anual em 3,2%. A meta para 2013 era de 1.993, foi menos. O limite máximo para 2014 é de 1.932. Vamos perder aproximadamente 1,9 mil gaúchos em 2014. Destes, 500 serão motociclistas”, projeta Gomes. “O que nos preocupa é que muitas dessas pessoas não são sequer habilitadas, cerca de 46%, e muitos destes estão trabalhando na informalidade, o que não é o que se quer”, afirma Gomes.
Glória Regina Schuls Marcolla, psicóloga do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), no Departamento de Saúde do Trabalhador, explica que, na capital, 51% dos acidentes são com motocicletas. São 16 acidentes/dia, contando somente os atendidos no HPS. “A rede de atendimento fica bastante sobrecarregada; 32% vão a óbito e 52% ficam hospitalizados. Mais de 84% são considerados graves. No Cristo Redentor são, no mínimo, duas ou três cirurgias reparadoras por acidentado, que exigem um longo período de recuperação”, ilustra. A maioria dos acidentes no estado não tem o nexo estabelecido, o que torna difícil identificar quando é acidente de trabalho. “Entendemos que a maioria desses acidentes é de trabalho, porém, sem registro adequado. O problema é que os profissionais que recebem os pacientes não fazem isso na hora, porque demanda muita responsabilidade. O nexo só será estabelecido posteriormente com ação do Sindicato, quando houver. Isso quando o acidentado não tem medo de perder o emprego”, relata a psicóloga.
Previdência
Os gastos da Previdência Social com benefícios decorrentes de acidentes de trânsito somaram R$ 12 bilhões em 2013 ante R$ 7,8 bilhões em 2011. O secretário de Políticas de Previdência Pública do Ministério da Previdência, Leonardo Rolim, afirma que esse aumento de 53,84% das despesas previdenciárias com acidentes de trânsito em dois anos foi concentrado em acidentes de motocicleta. O aumento das indenizações por acidentes de trânsito pressiona as despesas de aposentadoria por invalidez e auxílio-doença. Esses gastos totalizaram R$ 65,4 bilhões em 2013. Segundo Rolim, o governo quer fortalecer e ampliar a reabilitação de trabalhadores que sofreram algum tipo de acidente ou ficaram doentes. Com isso, deverá haver menor concessão de aposentadoria por invalidez e auxílio-doença por um período longo e intensificação da liberação de auxílio-acidente, pois quem mais gasta com acidentes de trânsito é a Previdência.
Atualmente, no RS, conforme o Sindicato dos Motociclistas e Ciclistas Profissionais (Sindimoto), existe 1,2 milhão de motos, sendo 30% para fins profissionais. Se considerada a Lei 12.009, de julho de 2009, que reconhece a atividade e que, por meio das resoluções 410 e 358, prevê curso de qualificação e uso de equipamentos de segurança, sobrariam apenas 120 mil regulares. A lei também prevê idade mínima de 21 anos para pilotar, o que está longe da realidade. O mais comum é que jovens recém-habilitados saiam de um emprego e, com a indenização, compram uma moto vislumbrando uma possibilidade de trabalho.
Segundo o presidente do Sindimoto, Valter Ferreira da Silva, entre 25% a 40% dos acidentes ocorrem com motociclistas profissionais. No que se refere a óbitos, o número é mais difícil, porque só chegam ao conhecimento da entidade os que morrem no local do acidente. Quando a morte é posterior, mesmo que em consequência do acidente, fica difícil computar. “A carnificina hoje é muito maior do que se publica na imprensa. Basta conferir os sites do Detran, da EPTC, do Daer. Em Porto Alegre, foram registrados 52 óbitos de motociclistas profissionais em 2013, mas foram muito mais. Quando ocorre uma morte aqui, outra ali, representa perda para aquela família, mas ninguém mais se sensibiliza”, lamenta Silva.
O piso da categoria, para os autônomos e contratados, é de R$ 770,00, mais R$ 26 de aluguel diário da moto, com ganho médio que varia, com as comissões de entrega, de R$ 1,5 mil a R$ 2,5 mil. O valor por entrega é, em média, R$ 8,00. As jornadas de trabalho também variam de 8 a 18 horas diárias. O sindicalista alerta para o alto consumo de drogas e álcool pela categoria, como comprovado em recentes pesquisas da USP e da Ufrgs. São estudos que apontam ainda alto índice de doenças psicológicas relacionadas à rotina de trabalho. Segundo Silva, ainda neste ano, o Sindicato, em parceria com a PUCRS, fará um estudo sobre o comprometimento pulmonar dos motoboys em Porto Alegre.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Airton Carlos Inácio*, motoboy autônomo, 53 anos, 20 de experiência, é casado, tem dois filhos, ex-jogador de futebol. Fraturou o pé ao colidir em um carro que fazia uma manobra irregular, em agosto de 2011, e teve implantada uma órtese de posicionamento para evitar que o pé caia. Sofreu ainda lesão no nervo ciático do lado direito e ramo poplíteo externo, fratura no joelho e ficou com 2 centímetros de discrepância entre membros inferiores, limitação de dorsiflexão à direita e usa mola de Codeville (pé direito), bengala e bastão.
Tenta, sem êxito, laudos do INSS, pleiteando aposentadoria por invalidez. Será submetido a mais cirurgias, mas as sequelas serão permanentes. “Sou como um cristal que se quebrou. Agora tento colar os cacos. Não posso baixar a cabeça. Tenho de reagir e lutar, buscar meus direitos”. Recebe auxílio mensal de R$ 800,00 da Previdência. Antes do acidente, tinha renda superior R$ 2 mil por mês.
Sequelas permanentes e reabilitação Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
A última entrega e o carteiraço
Em Canoas, uma das últimas mortes a entrar para as estatísticas de 2013 gerou protestos dos motoboys. Durante a entrega da última pizza da noite de 26 de dezembro, às vésperas de tirar férias com a mulher e os cinco filhos, o motofretista Vileroi Tidani Tidra, de 40 anos, foi abalroado por uma caminhonete que atravessou as duas pistas da BR 116 para entrar em uma das vias transversais. Arremessado contra uma parede de concreto, morreu na hora.
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Dependendo da distância, é de no mínimo 30 minutos, acelerado, desrespeitando até mesmo a velocidade permitida nas vias públicas. É comum uma pessoa pedir pizza e dali a 5 minutos ligar alegando que já se passou ‘mais de meia hora’. Aí, chega o dono da pizzaria e diz: tu vais lá que é para o jornalista fulano de tal e vais ligeirinho. O motoboy sai costurando, subindo e descendo calçadas. Aliás, jornalistas e comunicadores conhecidos estão entre os que mais pressionam com carteiraço”, desabafa o sindicalista.
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Vladimir Brum, motoboy, 37 anos, empregado de uma central, atua terceirizado para uma instituição hospitalar. Tem 13 anos de experiência. É casado e tem dois filhos. Antes, trabalhou com móveis e como cobrador de ônibus. Cumpre 8 horas diárias, mas admite que por muito tempo trabalhou até 16 horas por dia. “O ganho nessa profissão depende de onde você se encaixa. Tenho colegas que trabalham 8 horas e tirando R$ 1,5 mil a R$ 1,8 mil. Já fiquei muito tempo ganhando isso. Mas o cara sempre procura melhorar. Hoje, onde estou fixo, consigo tirar de R$ 2,5 mil a R$ 3 mil. Trabalho apenas com entrega de documentos da área administrativa”.
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Cleber Boeira. Motoboy, trabalha para uma central, 40 anos, 15 de profissão, recebe até R$ 2 mil por mês. Casado, três filhos. “Somos muito discriminados e a população ainda não está preparada pra aceitar o motoboy pela importância que ele tem. Acabamos sendo marginalizados pela conduta de alguns e vítimas de generalização”. Quando começou, trabalhava das 8h à 1h. Atualmente atua somente durante o dia.”Os mais jovens trabalham 16 horas ou mais, muitos à base de ‘rebite’ e outras drogas”.
Patrão homicida, empregado kamikaze
A maioria dos profissionais é autônoma porque as empresas, desde o surgimento da categoria no RS, em 1998, até o ano de 2006, só contratavam dessa forma. “A partir de 1999, começamos a cobrar os direitos trabalhistas. Avançamos. Hoje a categoria é autônoma, mas essa autonomia é entre aspas. O profissional chega numa pizzaria ou escritório de contabilidade, fica ali o dia todo prestando serviço e a empresa paga a ele como autônomo. É irregular. A Justiça não reconhece a figura do autônomo dessa forma”, denuncia Valter Ferreira, do Sindimoto. Ele revela que, até agora, o Sindimoto ganhou todas as ações trabalhistas em que o profissional ficou o dia à disposição do cliente, caracterizando vínculo. “Autônomo é aquele que trabalha para vários clientes em um turno. Mesmo em cooperativas, temos ganhado muitas ações. Há cooperativa em Porto Alegre que é fraude e já denunciamos no MPT”, relata o sindicalista.
A categoria considera um avanço a Lei 12.436 de julho 2011, que proíbe políticas de entregas que incentivam a velocidade de motociclistas profissionais, casos em que quanto mais o motoboy entrega, mais ele ganha. “É uma prática homicida por parte dos contratantes e kamikaze por parte dos motoboys. Depende de que lado do balcão se está”, insinua, relatando que há casos em que o próprio empregador pressiona os motoboys a ignorarem a norma para obterem mais remuneração.
O diretor-presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária, José Aurélio Ramalho, afirma que a cultura da segurança precisa ser difundida entre os motociclistas. “Os motociclistas têm muita habilidade, o dia a dia não deixa de ser um treinamento. Essa habilidade começa a criar cada vez mais situações de risco pelo excesso de confiança. Eles são muito pressionados pelo tempo para execução de tarefas. Ao invés da cultura da segurança, ele desenvolve a cultura de risco”. Uma das principais queixas do Sindimoto é a precariedade dos cursos de pilotagem e a falta de investimentos em educação para o trânsito. Valter da Silva aponta que o Denatran tem R$ 22 bi contingenciados no caixa do governo federal.
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Inversão
Para José Ramalho, do Observatório de Segurança Viária, o Código de Trânsito é interpretado às avessas. “O preceito básico de que o maior deve proteger o menor não é observado: pedestres, ciclistas e motociclistas se transformam em alvo exatamente pela sua vulnerabilidade”, constata.
Patrões
De acordo com Luiz Mello, presidente do Sindicato das Empresas de Telesserviços e Entregas Rápidas do Estado Rio Grande do Sul (Setser), o que coloca em risco o segmento é o grande número de contratantes irregulares, que ele estima em mais de 50 mil. “Num universo desse tamanho temos apenas 150 centrais (empresas de tele-entrega) afiliadas, porém, o caminho da qualificação do setor, como já acontece na Europa, é necessário e irreversível”, explica. “Não é porque trabalhamos com entregas expressas que vamos ignorar os limites e os aspectos humanos do que é possível e seguro. O índice de acidentalidade com motoboys contratados regularmente é bem menor do que com os irregulares. Mas não há fiscalização, principalmente à noite, quando os profissionais, em especial mais jovens e sem treinamento, acabam sendo explorados para aumentar a renda”, conclui.
Epidemia
O médico do trânsito e diretor do Departamento de Medicina de Tráfego Ocupacional da Associação Brasileira de Medicina do Trânsito (Abramet), Dirceu Rodrigues Alves, diz que os acidentes com motociclistas são uma doença epidêmica negligenciada pelas autoridades. “A sobrecarga que os profissionais da moto sofrem caracteriza um trabalho penoso, pois eles dão mais do que são capazes, porque são explorados fatores físicos além do limite”. Além do risco do acidente, há o dano físico produzido pelo barulho do trânsito e da própria moto, a vibração de corpo inteiro, a vibração segmentar dos braços, pernas, mãos e coluna vertebral, as variações térmicas e condições climáticas, o contato permanente com a máquina aquecida, a irradiação solar, tudo em um trânsito caótico; e mais o risco químico, pela exposição a gases, vapores, poeira e poluição.
* Airton Carlos Inácio e Everton Buscher Bengs são pacientes em fase de reabilitação física em programa específico da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD/RS) para adultos acidentados no trânsito via convênios públicos e SUS.