Saneamento básico e público
Foto: Igor Sperotto
Após amplo debate nacional, o Brasil tem, desde dezembro do ano passado, um Plano Nacional de Saneamento Básico com diretrizes, metas e ações para os próximos 20 anos (2014-2033) que deverão custar cerca de R$ 508,4 bilhões. Trata-se de um mercado bilionário que atrai cada vez mais o interesse da iniciativa privada e mantém na ordem do dia o debate sobre a água como um bem público.
Tramita na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul a terceira versão de uma Proposta de Emenda à Constituição (230 /2013) que considera o abastecimento de água e esgotamento sanitário como serviços essenciais à vida, “sendo o seu acesso um direito humano fundamental”. E na prestação destes serviços, “terão prevalência as razões de ordem social frente às de ordem econômica”. “PEC do controle social da água”, como vem sendo chamada pelos deputados gaúchos, determina ainda que a concessão, ou qualquer outra forma de prestação privada destes serviços, deverá ser precedida de consulta popular sob a forma de plebiscito no âmbito do município.
Trata-se de uma maneira de tentar evitar a privatização unilateral dos serviços. “Esta PEC contempla em parte os nossos anseios. Queremos impedir qualquer tipo de privatização da água. Ela tem que ser 100% pública sempre! A atual política de saneamento deve ser uma política de Estado”, afirma Leandro Alves de Almeida, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua).
Sucatear para depois privatizar
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A expressão “criar dificuldades para vender facilidades”, muito usada em críticas à burocracia, à corrupção e à ineficiência dos serviços públicos, também pode ser usada para descrever a política neoliberal do Estado mínimo que deixa de investir em áreas estratégicas, como o saneamento básico, para logo em seguida, diante da ineficiência dos serviços, entregá-las à iniciativa privada.
“O que se percebia nos governos anteriores era o desinteresse com política pública de saneamento. Não era um tema prioritário. A partir do momento que não investe deixa a descoberto e a qualidade do serviço cai constituindo um cenário de ineficiência a ponto de transformar a privatização dos serviços um processo normal”, avalia Arnaldo Dutra, presidente da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan).
Segundo ele, havia um movimento orquestrado visando abrir espaço para o setor privado. “Os serviços de saneamento foram privatizados em Uruguaiana e São Gabriel com editais que não permitiam a participação da Corsan. Em Santa Cruz do Sul conseguimos participar e vencemos. Depois o atual prefeito cancelou a licitação e manteve o contrato com a Companhia”, relata Dutra.
Recuperação da Corsan
A Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) completou 48 anos no dia 28 de março com um Plano de Investimentos até 2018 orçado em R$ 4,5 bilhões. Estes recursos, oriundos principalmente do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), vão permitir que entre cinco e sete anos os principais municípios atendidos pela estatal tenham mais de 50% do seu esgoto coletado e tratado.
“A primeira coisa que fizemos para reestruturar a Corsan foi recriar as dez superintendências regionais facilitando a relação com as prefeituras. Nestes quatro anos, dobramos a capacidade de investimento da Companhia. Já são mais de R$ 2 bilhões em recursos captados e contratados, metade a fundo perdido”, informa o administrador Carlos Eduardo de Oliveira, assessor da presidência.
Até 2006, a Corsan possuía a concessão de esgoto em apenas 42 municípios. Todos os novos contratos firmados, a maioria com prazo de 25 anos, agora contemplam os serviços de água e esgoto. Das 320 cidades atendidas pela estatal, 260 já renovaram a parceria. Devido à deficiência dos serviços, o início do governo Tarso Genro foi marcado por uma rebelião de prefeitos.
Ao privatizar os serviços de água e esgoto, entregando a infraestrutura da Corsan a empresas dos grupos Odebrecht e Solví, os municípios de Uruguaiana e São Gabriel correm o risco de arcar com uma multa milionária, como aconteceu com Novo Hamburgo, que municipalizou o serviço em 1998 e, segundo decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), deve cerca de R$ 200 milhões à estatal.
Recursos do PAC e ambiente de estabilidade
O interesse da iniciativa privada foi atraído pelos recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e pelo novo marco regulatório do setor, a Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. “A estratégia das empresas foi assediar os municípios que estavam com contratos vencidos”, recorda Arnaldo Dutra, que na época presidia a Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae).
O marco regulatório de 2007, que vinha sendo discutido há mais de dez anos, criou um ambiente de estabilidade para o saneamento que antes não existia. Ao definir a titularidade dos serviços como municipal, acabou estabelecendo regras que deram segurança para o setor privado. “Promessas impossíveis de cumprir passaram a ser feitas pelas grandes empresas do setor”, constata Arnaldo Dutra. O ex-presidente da Assemae e atual presidente da Corsan ressalta que foi feita uma preparação nacional de sucateamento com a ideia de Estado mínimo neoliberal, não apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil.
Sem recursos, as companhias públicas foram diminuindo sua capacidade de pensar, planejar e produzir conhecimento. Sem dinheiro, não tinham porque fazer projetos. “Atualmente, a lógica tem sido de abrir o capital. É o que está sendo feito no Paraná. Em São Paulo já é assim. Somos contra. Tem gente que acha que só quem pode pagar tem direito à água. É a visão do Estado mínimo. Para nós a água é um bem público. Achamos que o Estado tem várias tarefas, saneamento é uma delas”, defende o presidente da Corsan, Arnaldo Dutra.
“Esgoto não dá lucro. A água é o filé. O esgoto não dá pra cortar. A água, quando não pagam, é cortada. A história mostrou que não existe mágica em saneamento. O que existe em uma empresa privada é o lucro. Quando ele diminui, serviços são diminuídos. E a tarifa aumenta. Ser eficiente para dar lucro é diferente de ser eficiente para levar água de qualidade para a população que precisa”, conclui Dutra.
Escola deve ajudar a desenvolver uma cultura de participação
Foto: Igor Sperotto
“A escola é um agente fundamental no pro-cesso de mobilização da sociedade para resolver os conflitos de uso da água nas bacias hidrográficas. Ela é uma vanguarda de pensamento e de debate dentro das comunidades. A gestão da água é um dos grandes desafios contemporâneos”, defende Arno Leandro Kayser, presidente do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio do Sinos e militante do Movimento Roessler para Defesa Ambiental.
Na avaliação do ecologista e educador ambiental Arno Kayser, é preciso desenvolver uma cultura de participação para lidar com os conflitos de uso da água. Como são problemas difusos, explica ele, somente serão resolvidos quando a coletividade se organizar em torno deles. “A escola ajuda a construir estas políticas. Isto faz toda a diferença, principalmente nos municípios menores onde as relações são mais pessoais do que institucionais entre os atores da sociedade”, ressalta Kayser.
Em relação aos novos sistemas de tratamento de esgoto que estão sendo implantados no Rio Grande do Sul, principalmente na região Metropolitana, é preciso gerar um clima de compromisso de todos os agentes envolvidos, acrescenta Arno Kayser. “Não basta o governo construir estações e redes, a população precisa ligar o seu esgoto na rede, e isto implica uma participação muito grande da comunidade”, adverte o presidente do Comitê Sinos.
O principal problema da bacia do Rio do Sinos, relata Arno Kayser, é a falta de tratamento de esgotos. Da população de 1,3 milhão de habitantes aproximadamente, apenas 5% tem tratamento completo. “Com as obras em construção, não as que estão em projeto, vamos passar para 20% de esgoto tratado. Em uns cinco anos, o trecho do rio entre Taquara e Campo Bom, que hoje é classe quatro (o mais alto nível de poluição) vai passar para classe
três”, estima o presidente do Comitê Sinos.
“Não havia investimento. Faltava até material de trabalho”
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua), Leandro Alves de Almeida, considera que havia no governo anterior uma política clara de sucateamento da Corsan para abrir o setor de saneamento para a iniciativa privado no Rio Grande do Sul. “Não havia investimento. Faltava até material de trabalho. Chegamos a operar com 3,9 mil funcionários na ativa, bem abaixo do mínimo necessário para manter os sistemas de água nos municípios”, exemplifica Leandro Almeida, presidente do Sindiágua, que é técnico de tratamento, natural de Butiá (RS), e trabalha há 39 anos na Companhia Riograndense de Saneamento.
O superintendente de Recursos Humanos da Corsan, Luiz Henrique Machado, informa que em março de 2006 a Companhia chegou a ter apenas 4.341 funcionários, quando o ideal seria de 6,8 mil. Em março de 2010 eram 4.830. Em 2012 a estatal obteve autorização para realização de concursos. Em março de 2014 o quadro funcional subiu para 5.547, com previsão de fechar o ano com 5,9 mil empregados. “Era um desmanche total no governo anterior. Vários serviços de operação já eram terceirizados, e 23 sistemas ameaçavam não renovar contrato. A mudança de governo mudou a lógica. Hoje podemos dizer que houve uma recuperação da Corsan. Tem problemas ainda para resolver? Ainda temos.
Mas melhorou muito”, avalia o presidente do Sindiágua, Leandro Almeida.
Lixo pode ser nova área de negócios da Corsan
“A Corsan já tem estudos para prestar serviço também na área de lixo. Destino e tratamento. Já conversamos sobre isso informalmente com a diretoria da empresa há dois anos”, informa o presidente do Sindiágua, Leandro Almeida. “Legalmente podemos atuar prestando serviços na área de resíduos sólidos. Está no campo das possibilidades futuras”, confirma o presidente da estatal, Arnaldo Dutra.
A Lei Nº 13.435, de 5 de abril de 2010, alterou a lei de criação da Corsan, de 1965, mudando a finalidade da Companhia Riograndense de Saneamento de prestadora de serviços públicos de “abastecimento de água potável e de esgotos sanitários” para “serviços de saneamento básico”, o que inclui também, além de água e esgoto, resíduos sólidos e drenagem urbana.