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Terra à vista

O agronegócio, as mineradoras e as madeireiras estão de olho nas terras indígenas e patrocinam pesado lobby pela aprovação da PEC 215, que dá plenos poderes ao Congresso sobre as demarcações
Por Naira Hofmeister / Publicado em 11 de junho de 2015
O agronegócio, as mineradoras e as madeireiras estão de olho nas terras indígenas e patrocinam pesado lobby pela aprovação da PEC 215, que dá plenos poderes ao Congresso sobre as demarcações

Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

O agronegócio, as mineradoras e as madeireiras estão de olho nas terras indígenas e patrocinam
pesado lobby pela aprovação da PEC 215, que dá plenos poderes ao Congresso sobre as demarcações

Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

Na terra indígena Raposa Serra do Sol, no nordeste de Roraima – famosa mundialmente pela polêmica que envolveu sua demarcação, concluída em 2005 – sempre que algum curumim pergunta como foi que seus avós conquistaram a autonomia dos povos que lá habitam, a explicação dos mais velhos começa com o relato de uma lenda. Eles apontam uma grande pedra, na comunidade do Limão, e dizem que as marcas visíveis na superfície porosa são uma mensagem do deus Macunaími, o criador segundo sua crença: “essas terras são de vocês, mas será preciso lutar por elas, porque virão outros com pensamentos diferentes”.

Durante centenas de anos, aqueles dizeres na rocha soaram como um deboche, porque em pleno século 20, crianças macuxi ainda eram entregues pelos pais a fazendeiros brancos para o trabalho, em troca de um par de sapatos ou de um punhado de sal. Em 2005, depois de terem enfrentado portugueses, holandeses, ingleses (na colonização), a polícia (na ditadura), fazendeiros e garimpeiros (na redemocratização), finalmente a segunda parte da profecia se realizava. Com um decreto, o ex-presidente Lula reconheceu que aquela terra era mesmo dos índios e outorgou sua posse às tribos nativas – depois disso ainda teve muito entrevero antes que, em 2009, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidisse pela saída dos brancos invasores da reserva, que tiveram que ser retirados à força.

Faltou Macunaími avisar, entretanto, que o fim da disputa ainda estava longe de ocorrer. Entre tentativas de mineração ilegal, pequenas invasões e disputas localizadas – problemas recorrentes na reserva dez anos após a sua homologação – o mais recente e preocupante ataque foi feito sem alarme. Não houve queima de casas, roubo de boi, ameaças, estupros, compra de crianças, oferta de cachaça e nenhuma outra armadilha conhecida dos indígenas.

Isso porque ele estava sendo orquestrado a quase 5 mil quilômetros da aldeia Maturuca, a sede da resistência indígena na região desde os tempos mais imemoriáveis: em Brasília – mais precisamente, no Congresso Nacional. Em uma legislatura mais conservadora que a anterior, onde a bancada ruralista ocupa 109 cadeiras na Câmara de Deputados e 17 no Senado Federal, voltou com força uma antiga Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de número 215, cujo objetivo é passar o controle de demarcações de terras indígenas das mãos do poder Executivo para o Parlamento.

“Hoje nossa maior ameaça, mais do que qualquer invasor, qualquer garimpeiro, é o Congresso Nacional”, sintetiza o presidente do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Mario Nicacio Wapichana.

Conflito de interesses
Se aprovada, a PEC 215 criará uma nova instância de tramitação dos processos de regularização fundiária, que precisariam ser aprovados no Legislativo, após a conclusão dos estudos do Executivo. Também dará ao Congresso a palavra final sobre futuras demarcações, além da ementa do texto dar poderes para que os parlamentares revisem demarcações já realizadas, muito embora exista um entendimento, até mesmo entre os defensores da proposta, de que isso seria inconstitucional.

E não para por aí. O relatório entregue no final do ano passado, na Comissão Especial criada para debater a matéria, define como pré-requisito para que uma terra seja objeto de reivindicação indígena o chamado “marco temporal”. Em outras palavras, os nativos só podem pedir a demarcação se comprovarem que estavam sobre ela na data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988 – o que é considerado um equívoco pelos defensores do direito indígena, pois muitos não ocupavam seus territórios justamente porque haviam sido expulsos por invasores. É um tema que gera controvérsia inclusive dentro do STF, que já tomou decisões considerando o marco temporal válido e outras nas quais rejeita a tese.

Foto: Gabriela Korossy/Câmara dos Deputados

Foto: Gabriela Korossy/Câmara dos Deputados

Por fim, a redação final sugerida pelo relatório de 2014 – que deverá ser a base para as análises deste ano – propõe que “as comunidades indígenas em estágio avançado de interação com os não índios possam praticar atividades florestais e agropecuárias, celebrar contratos de arrendamento e parceria”. Trocando em miúdos, permite a exploração das áreas inclusive por não indígenas, que usualmente levam consigo, além de dinheiro, elevação dos níveis de consumo de álcool, violência e prostituição para as aldeias.

“A PEC 215 é um instrumento patrocinado por interesses econômicos que ataca os povos indígenas, retirando direitos. Por um lado, os ruralistas desejam utilizar áreas ainda não demarcadas para a produção; por outro, essa prerrogativa de abrir as terras já homologadas para a exploração beneficia empresas mineradoras e empreiteiras que realizam obras de infraestrutura ”, sintetiza o secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário, Cleber Buzatto.

A denúncia de Buzatto é circundada pelo Ministério Público Federal (MPF), que emitiu uma nota técnica se posicionando contrariamente à aprovação da PEC 215. “A maioria dos procuradores federais entende que essa medida não vem para favorecer, mas sim para prejudicar as comunidades tradicionais – e muito”, revela o procurador Mauro Cichowski dos Santos, do Núcleo das Comunidades Indígenas, Minorias e Educação do MPF-RS.

Deputado gaúcho pediu desarquivamento
É evidente que os proponentes da PEC 215 rejeitam a análise dos indigenistas. “Não tem nada disso, o que queremos é apenas legalizar processos e garantir a participação do Parlamento nas decisões”, objeta o deputado federal gaúcho Luis Carlos Heinze (PP-RS), que solicitou o desarquivamento da medida em 2015.

O texto da PEC 215 foi apresentado pela primeira vez em 2000 e desde então passou por sucessivos arquivamentos – fruto da polêmica que gera. Agora, entretanto, parece que vai prosperar. “Ano passado teríamos aprovado se não fosse uma manobra regimental da oposição. Trabalhamos com o prazo máximo de final de agosto para ir ao plenário”, anuncia o parlamentar.

Se Heinze defende a legitimidade de sua proposta, inegável é, entretanto, que ela tem a assinatura de um grupo de parlamentares vinculado ao agronegócio. Além de Heinze – aquele que foi flagrado em um evento com apoiadores dizendo que índio, quilombola, e gay é “tudo que não presta”,  o autor da PEC, protocolada no ano 2000, é Almir Sá, fundador e ex-presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de Roraima – a Farsul lá do Norte.

A Comissão Especial que analisa a matéria no Congresso Nacional é presidida por Nilson Leitão (PSDB-MT) e tem como relator Osmar Serraglio (PMDB-PR): ambos são investigados pela Polícia Federal pela suspeita – levantada através de um grampo telefônico – de terem recebido orientações de advogados da Confederação Nacional da Agricultura (CNA) para direcionar o parecer sobre a PEC 215 em 2014.

A dúvida surgiu no final do ano passado, quando o voto de Serraglio estava a ponto de ser aprovado na Comissão Especial da Câmara, pouco antes do final da legislatura. Opositores da proposta se agarraram a isso para barrar a tramitação – e conseguiram. Mas, nos primeiros dias do novo mandato, Heinze pediu o desarquivamento ao então recém-empossado presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que prontamente o atendeu. Ao ser cobrado, tergiversa: “é uma situação comum”.

Judicialização pode ser saída
O primeiro passo na tramitação do Congresso é a aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que deu seu aval após ser sugerida a exclusão da possibilidade do Legislativo revisar homologações já concedidas. O Ministério Público Federal entende que há espaço para uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) sob justificativa de ser uma ofensa à independência dos poderes.

“Fere cláusulas pétreas da Constituição, como o direito à terra e à cultura das populações tradicionais”, complementa o procurador Mauro Cichowski dos Santos, do Núcleo das Comunidades Indígenas, Minorias e Educação do MPF-RS. O Ministério da Justiça (MJ) também é duro em sua crítica ao texto. “Entendemos que não é só inconveniente e inoportuno, mas também inconstitucional”, alfineta o titular da pasta, José Eduardo Cardozo.

Senado é contra
Se na Câmara de Deputados a PEC 215 tem chances concretas de ser aprovada, o ambiente não parece tão amigável assim no Senado Federal – a instância seguinte de tramitação do texto. No dia 26 de maio, os senadores João Capiberibe (PSB-AP), Cristovam Buarque (PDT-DF) e Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) apresentaram um manifesto pedindo a rejeição da proposta – em poucas horas eles conquistaram o apoio de 42 companheiros de plenário, ou seja, mais da metade dos 81 parlamentares que ocupam as cadeiras da Casa. Entre as assinaturas do manifesto estão a do presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), e dos líderes do PSDB, senador Cássio Cunha Lima (PB), do PMDB, Eunício Oliveira (CE), e do governo, Delcídio do Amaral (PT-MS).

Mudança reduziria demarcações
Os críticos à proposta ainda acrescentam que, mesmo que fosse uma medida juridicamente aceitável, a PEC 215 ampliaria ainda mais o já lento processo de reconhecimento de Terras Indígenas. Na região nordeste de Roraima, fazendo fronteira com a Venezuela, o território indígena Raposa Serra do Sol, por exemplo, teve sua portaria assinada em 1998 pelo então ministro da Justiça, Renan Calheiros, hoje presidente do Senado. Mas a homologação pelo presidente da República só ocorreu sete anos depois, sendo que a posse efetiva só pode ser considerada após a expulsão dos brancos, em 2009.

Terra à vista

Foto: Arte sobre foto de Valter Campanato/Agência Brasil

Foto: Arte sobre foto de Valter Campanato/Agência Brasil

Como criaria uma nova instância de tramitação, o tempo para análise de um processo seria naturalmente maior. Mas haveria ainda um critério político a ser considerado – o que, na opinião do secretário-geral do Cimi, inviabilizaria por completo novas demarcações. “Num ambiente onde os setores econômicos ligados ao agronegócio, à mineração a à infraestrutura têm ampla maioria para aprovação de projetos de lei, seria impossível avançar”, preocupa-se.

A Funai, que se manifestou por meio de nota, concorda e acrescenta: “Não há entre os membros do Congresso Nacional representantes indígenas que possam defender os direitos desses povos em pé de igualdade”. As estatísticas – desde o século 16 – apontam que a preservação de indígenas está intimamente vinculada à questão da terra. Quando Portugal ainda avançava timidamente sobre sua colônia recém-descoberta (a ocupação efetiva só foi acontecer dois séculos depois do grito de terra à vista), estima-se que a população silvícola era de 2 milhões de nativos.

Em 1991, quando os efeitos da publicação da Constituição – e do reconhecimento de seu direito à terra e à cultura – ainda eram sutis, o número de autodeclarados indígenas caiu para 294 mil habitantes, apenas. Depois disso, só cresceu, exponencialmente. No ano 2000 eles eram 734 mil e no mais recente Censo do IBGE, em 2010, 896 mil. Certamente
o salto do primeiro para o segundo levantamento foi efeito da política de demarcações de Fernando Henrique Cardoso, que homologou uma média de 18 terras indígenas por ano em seus dois mandatos.

Antes dele, Fernando Collor se notabilizou por bancar a terra Yanomami, na onda da Eco-92 e influenciado por seu ministro do Meio Ambiente, o gaúcho José Lutzenberger. E surpresa, apesar da identificação com as minorias, os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) não foram tão promissores para os nativos. Lula alcançou uma média de dez homologações por ano em dois mandatos e Dilma, na sua primeira gestão, não chegou a três homologações anuais.

Neste momento, 32 áreas são alvo de processos no Ministério da Justiça, 20 delas em estágio final. “Há uma frustração bastante grande já com Lula que se aprofunda com Dilma, uma vez que a perspectiva adotada desde o seu primeiro mandato é de explicitamente favorecer setores historicamente inimigos”, condena o secretário-geral do Cimi, Cléber Buzatto.

ENTREVISTA | Cléber Buzatto – “Está em curso uma articulação anti-indígena”

O secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário denuncia o lobby de setores econômicos sobre os três poderes da República

Foto: Cimi/Divulgação

O secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário
denuncia o lobby de setores econômicos sobre os três poderes da República

Foto: Cimi/Divulgação

Extra Classe − Desde que a Constituição de 1988 reconheceu os direitos indígenas, quais os avanços mais importantes?
Cléber Buzatto − Houve passos importantes. Algumas terras foram reconhecidas. A política de atenção à saúde avançou − pelo menos no papel, embora haja um passivo ainda muito grande. O problema é que mesmo esses passos incipientes ficam seriamente ameaçados com a perspectiva de derrubada do texto constitucional que reconheceu aos povos esses direitos.

EC −O que preocupa é somente a iniciativa do Legislativo com a PEC 215 ou há outros projetos?
Buzatto − Não. Há decisões recentes do Supremo Tribunal Federal (STF), avançando em uma interpretação extremamente restritiva da Constituição, que entende que a terra não pode ser reivindicada por povos que não estavam sobre ela em 1988, na promulgação da Carta, mesmo que eles tenham sido expulsos. Isso foi aplicado inclusive em casos de demarcações já concluídas, como o caso dos Terenas na terra Limão Verde, no Mato Grosso do Sul. É uma perspectiva fundamentalista que retira direitos, o que é preocupante e pode potencializar conflitos que já haviam sido superados.

EC − E o Executivo, os indígenas têm cobrado a presidente Dilma?
Buzatto − Há uma frustração bastante grande, um desapontamento já com Lula que se aprofunda com Dilma, uma vez que a perspectiva adotada desde o seu primeiro mandato é de explicitamente favorecer setores historicamente inimigos. Há inúmeras decisões administrativas que paralisaram demarcações no país, por exemplo.

EC − É um momento histórico especialmente ruim para os povos indígenas. O senhor vê alguma razão para isso?
Buzatto − Está em curso uma articulação de setores da economia que tem interesses comuns, que atua em diferentes frentes e na mesma direção. São os representantes das commodities agrícolas e minerais, que se favorecem de um modelo de desenvolvimento fortemente dependente do setor primário. Uma mostra disso é que o peso da exportação
de matérias-primas no PIB passou de 40% para 60% nos últimos anos.

EC − De que modo essa articulação funciona?
Buzatto − Está presente nos diferentes poderes do Estado brasileiro. Temos situações de lobby junto ao STF, um “frentão” instalado no Executivo, a atuação intensa junto ao Legislativo, financiando dossiês e campanhas parlamentares. Inclusive, na sociedade essa articulação aparece quando se propagam discursos preconceituosos e propaganda anti-indígena para legitimar ataques. O resultado disso é um aumento vertiginoso da violência contra lideranças.

EC − A imprensa contribui para essa propagação do discurso de ódio?
Buzatto − Há setores da imprensa que são instrumentos desse processo, a TV Bandeirantes, por exemplo. Majoritariamente os grandes veículos de comunicação participam dessa estratégia porque têm interesses comerciais. As mesmas grandes empresas que financiam parlamentares que lideram os processos de restrição dos direitos indígenas são as campeãs de propagandas na TV. Um exemplo é o frigorífico JBS.

EC − E como se organizam os indígenas para contrapor essa articulação?
Buzatto − Os povos têm demonstrado uma percepção da realidade bastante apurada e se manifestam permanentemente perante essa situação desde o 2º semestre de 2011. Há uma mobilização tanto nas regiões onde cada povo vive e também em Brasília, nos diferentes poderes do Estado brasileiros. Este ano tivemos uma manifestação com mais de 500 lideranças, em abril, que chegaram a ocupar o plenário da Câmara de Deputados para chamar atenção. Muitas comunidades também estão retomando seus territórios.

EC −Fazendo a chamada “autodemarcação”?
Buzatto − Exatamente. Há várias situações no Mato Grosso do Sul, com grupos Guarani-Caiowá e Terena. São retomadas bastante fortes, com muitas famílias participando dessas ações além de uma presença permanente de lideranças.

EC – Por que não há parlamentares indígenas em Brasília?
Buzatto − No Brasil não há nenhum representante indígena federal ou estadual eleito. O que temos no Congresso Nacional é uma frente parlamentar de apoio aos povos indígenas. O sistema político eleitoral inviabiliza por completo a eleição de representação indígena, porque o perfil dos eleitos é de candidatos que conseguem financiamentos vultosos de empresas privadas que dificilmente se interessariam por financiar lideranças indígenas, especialmente se tiverem a perspectiva de lutar pelos povos indígenas. A dispersão territorial dos indígenas também ajuda. A maioria dos estados, salvo Roraima e talvez algum outro, o percentual de indígenas é bastante baixo em relação à população
total.

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