Terceirização de risco
Foto: Igor Sperotto
Um acidente ocorrido no final de maio em um dos canteiros de obras da Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, quando um silo de estocagem de cimento com tubos capazes de estocar 1,2 mil toneladas se soltou, resultando na morte de três operários e mais três feridos, expôs, mais uma vez, as condições adversas a que os trabalhadores estão expostos diariamente. Neste caso específico, eram trabalhadores de uma empresa prestadora de serviço, ou terceirizada. O fato rendeu notícia nacional pela fama do local. Mas o cotidiano dos trabalhadores no Brasil é repleto de exemplos de acidentes e óbitos devido às más condições do ambiente de trabalho.
E especialmente em empresas terceirizadas. São varredores de rua, garis, vigias, serventes de limpeza, cozinheiros, limpadores alpinistas, zeladores, entre outros prestadores de serviços perigosos que exercem suas atividades, muitas vezes, sem acesso à segurança. E o medo de perder o emprego não os encoraja a exigir garantias no trabalho. Lílian Thaís Rodrigues, 37 anos, trabalha em uma empresa terceirizada que presta serviços de limpeza e portaria na capital gaúcha. Ela sofreu um acidente no local em que trabalhava, há 45 dias, que deixou uma cicatriz em seu rosto. “Fui colocar o lixo na lixeira do condomínio, estava chovendo e ventando muito, a tampa da lixeira voou e bateu no meu rosto, por pouco não atingiu meu olho”. Ela cortou o rosto e trincou o nariz. “Não tive socorro de ninguém, saí pingando sangue, pedi ajuda para um casal que me deu um pano para estancar e que me levou para o hospital”.
Lílian continuou trabalhando, mesmo com o acidente. “Não tinha ninguém para ficar no meu lugar, tive que trabalhar com os pontos e o rosto cortado. Nestas empresas a gente só vale quando está bem”. A presidente do Sindicato dos Empregados de Empresas de Asseio, Zeladoria e Limpeza Urbana do Vale dos Sinos (Sindasseio), Maria Elisabete Machado da Silva, informa que sua categoria acumula muitos problemas com acidentes e adoecimentos em função do trabalho. “São pessoas que lidam com caminhões, roçadeiras, e estão sempre a beira da estrada, onde acontecem muitos acidentes”.
São cerca de 6 mil trabalhadores na base do sindicato, dos mais diversos segmentos, entre eles varredores de rua (garis), zeladores, telefonistas, repositores de mercadorias, recepcionistas, porteiros e vigias patrimoniais, vigias de condomínios, limpadores alpinistas, guardadores/orientadores de estacionamento, limpadores e serventes de limpeza, copeiros, cozinheiros. “É só prestar atenção em um gari correndo atrás do caminhão, saltando do caminhão… são vítimas constantes de atropelamento, pois muitos motoristas não tomam cuidado e os acidentes acontecem”.
Segundo ela, o sindicato recebe informações sobre acidentes nas rodovias, com trabalhadores que utilizam roçadeiras. “Os atropelamentos acontecem porque os motoristas não respeitam a sinalização de que há homens trabalhando na pista e isto é um crime, até porque muitos fogem ao atropelar”. Elisabete denuncia que muitas empresas não querem fornecer o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), o que dificulta o direito que o trabalhador tem de entrar com ação judicial. “Em muitos casos, não tem como provar que a pessoa foi vítima em um acidente de trabalho. A gente vem brigando muito por isto, exigindo que as empresas cumpram esta norma”.
Marli dos Santos tem 45 anos e há 11 trabalha fazendo limpeza em condomínios como funcionária terceirizada de uma empresa que presta serviço de portaria, vigia, limpeza e zeladoria em Porto Alegre. Ela conta que é comum acontecerem acidentes neste tipo de atividade e ela mesma carrega dores e cicatrizes de acidente que ocorreu em 2004. Ao acondicionar o lixo de um conjunto de apartamentos, pisou no chão molhado, caiu e quebrou o braço. “Voei longe com o carrinho do lixo”. Ela hoje possui 13 pinos e duas platinas no braço direito e a dor constante é uma lembrança daquele dia. “Fiquei no seguro um ano e 11 meses, na época ganhava R$ 300,00 por mês, uma miséria”. Depois de seis meses de atestado, ela voltou para o trabalho. “Fiquei com uma sensibilidade grande neste braço, ele dói quando está para chover”.
Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Luís Fernando Camarano, 49 anos, foi recrutador na empresa Orbram S.A., Organização Riograndense de Serviços, na década de 1980. Era uma firma de prestação de serviços de limpeza e conservação. “Tinha lá o que a gente chama de ‘testa de ferro’, o coronel Leonel, ele era importante para que a empresa pudesse ter uma conta de vigilância”, lembra. Fernando conta que, na época, havia muitas empresas deste tipo em Porto Alegre: Mosca, Riograndense, Transforte Sul, Vigilâncias Pedroso. “Elas fecham e reabrem logo ali, com outro nome, recontratando as mesmas pessoas, menos as que entram na Justiça, em busca de seus direitos. Os trabalhadores nunca chegavam a completar um ano de firma, a rotatividade sempre foi alta e isto faz parte do negócio, porque é uma forma de não pagar benefícios como férias e 13º salário”. Conforme ele, as empresas terceirizadas contam, como lucro, o fato de nunca efetuarem pagamento de direitos corretamente, como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e horas extras.
O recrutamento era feito sem qualquer critério. “Uma vez, em São Leopoldo, era preciso contratar 70 mulheres para um supermercado de uma grande rede recém-inaugurada. Conseguimos listar cem e o critério era: está respirando, contrata”. A empresa Orbram fechou para reabrir com o nome de SS, Service Sistem, que também não existe mais.
A tecnóloga em logística Utinajara Alves Barbosa, 53 anos, atua há três meses como recrutadora e administradora de serviços de limpeza em um grande condomínio na zona norte de Porto Alegre. Pelo que ela relata, os problemas dos trabalhadores são os mesmos vividos nos anos 1980. “As empresas insistem em não recolher INSS, FGTS, atrasam o dia do pagamento, dão perna de anão no vale-transporte”.
Observa que, neste meio, todas as empresas se conhecem. Portanto, quando participam de licitações, as maiores pegam os bons serviços. “É fácil perceber que nos condomínios mais simples quem trabalha não tem uniforme decente, nem EPI (Equipamento de Proteção Individual), todos comem ou dormem juntos no mesmo salão”. Utinajara diz que busca exigir da empresa contratante equipamentos de trabalho como luvas e botas. “A empresa tem que dar, mas se não insistir, eles não dão”. Por medo de perder o emprego, as pessoas não cobram os equipamentos adequados para a segura execução do trabalho. “É comum ver o pessoal de limpeza carregando um balde com água em uma mão e produtos como clorofina, pinho e odorizador na outra, mais panos e vassoura, quando o correto seria um carrinho para carregar o material”.
Rio Grande do Sul é terceiro no ranking nacional de acidentes
Aqui no Rio Grande do Sul, conforme o último Anuário Estatístico da Previdência Social, lançado em janeiro deste ano, foram registrados, em 2013, 59.627 acidentes e doenças ocupacionais, com 140 óbitos, o que coloca o estado em terceiro lugar no ranking nacional, atrás apenas de São Paulo (248.928 casos) e Minas Gerais (77.252). Isto significa uma média de 163 acidentes por dia e um trabalhador morto a cada 60 horas no estado. E que 1.133 trabalhadores gaúchos passaram a ter incapacidade permanente devido a acidentes ou adoecimentos no ambiente laboral.
“Reconhecidamente, pelos processos, na informalidade estes números são mais alarmantes, pois os cuidados são menores, há uma economia na prevenção, a exposição a riscos é maior, além de muita improvisação”, manifesta o desembargador Raul Zoratto Sanvicente, coordenador do Programa Trabalho Seguro no TRT4. Este programa é uma iniciativa nacional da Justiça do Trabalho cujo objetivo é promover, por meio de ações e projetos, a cultura da prevenção de acidentes e doenças laborais no país. “A precarização de que falamos não é só dos salários, mas de todas as condições de trabalho”.
Conforme o desembargador, a realidade dos trabalhadores certamente é ainda mais grave do que a apontada no Anuário, pois a Previdência consegue apurar apenas os casos com carteira assinada, que representam 50% da população economicamente ativa. Sanvicente destaca que os acidentes e adoecimentos provocam danos não só aos trabalhadores e suas famílias. “Este é o dano mais óbvio”.
Mas há ainda o que é pouco visto ou comentado, que atinge toda a sociedade, o sistema de saúde, o sistema jurídico e que desorganiza a produção: os custos com a invalidez, permanente ou temporária, e os óbitos. “É algo muito grande, coisa que não se percebe imediatamente, e que é pago por toda a sociedade”. Além da Previdência, que desembolsou R$ 10 bilhões em 2014 para aposentadorias e afastamentos por acidentes ou doenças no trabalho, a Justiça gaúcha também sofre impactos. Ano passado, houve 8,3 mil processos envolvendo acidentes e doenças ocupacionais. Para Raul Sanvicente, é errado atribuir os acidentes à fatalidade ou ao infortúnio. “O Brasil carece de uma cultura de prevenção por parte de empresas e empregados. As entidades de classe devem investir nisto. Ambas as partes precisam fazer uma análise dos riscos de suas atividades e criar um plano de preventivo”.
Ele diz que, em muitos processos, as empresas atribuem a culpa ao empregado. “Até pode ser que o trabalhador cometa erro, mas quantas horas ele trabalhava por dia? Ele recebeu treinamento e equipamento de segurança adequados”? Para o desembargador, no caso específico das empresas terceirizadas, alvo de grande parte das ações judiciais, o Projeto de Lei nº4.330 (ou PLC 30/2015, no Senado), que visa a autorizar a terceirização das atividades-fim no Brasil, poderá aumentar a gravidade deste quadro. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) estima que, de dez acidentes laborais, oito ocorrem em atividades terceirizadas, bem como quatro em cada cinco mortes no trabalho acontecem na terceirização.
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