Ocupação da Fazenda Annoni completa 30 anos
Foto: Daniel Andrade/Arquivo MST
Os 30 anos da ocupação da Fazenda Annoni são marcados por uma série de atividades comemorativas organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Entre elas um acampamento de três dias para cerca de 700 a 800 jovens, filhos de acampados e assentados, a partir de 29 de outubro. O objetivo é debater a luta pela reforma agrária e o contexto atual. Do ponto de vista histórico, nestes 30 anos, houve grandes transformações, tantona agricultura quanto no movimento. A luta pelo direito à terra e por reforma agrária permanece e é central, mas há outros novos e grandes elementos.
“Em 1985, quando a Annoni foi ocupada, o tema central era o direito à terra e o direito a produzir. Era claro o enfrentamento dos sem terra contra o latifúndio improdutivo. Hoje o grande embate é o que e como produzir. Permanece a grande questão da concentração da terra, que não foi resolvida, mas também entram outros pontos como a necessidade de uma alimentação saudável em contraponto à produção de comida com veneno e insumos agrícolas, que é o resultado do agronegócio. O acampamento que estamos oferecendo à juventude servirá para debates como este”, informa Cedenir de Oliveira, dirigente nacional do MST para o Rio Grande do Sul.
Os jovens têm a oportunidade de resgatar o processo histórico, saber das dificuldades enfrentadas por pais e parentes no início da luta e dar o passo adiante a partir dos desafios atuais, como a busca por alimentos de verdade e sem veneno. E não são só os meninos que precisam compreender. “A sociedade deve entender que só é possível produzir alimentos sadios e diversificados com muitas pessoas fazendo esta operação”, diz Cedenir, hoje com 36 anos e que começou a viver em acampamento aos 17.
Ele relata, orgulhoso que, atualmente, 5 mil hectares de arroz orgânico estão sob controle de 500 famílias ligadas ao MST. “Nosso desafio é conscientizar mais trabalhadores a fazer este tipo de produção”. E diz: “Nestes 30 anos não ficamos somente no tema da terra, na ocupação. Ocupamos e fazemos o quê? Tem o lado econômico da luta e tem outro lado que é a própria vida humana e talvez seja este nosso principal avanço. Não só pelo tipo de alimentos que estamos oferecendo, mas também quando olhamos para milhares de nossos jovens que se criaram sem fome, podendo estudar em escolas, cursar uma universidade”.
Junto com Cedenir de Oliveira, Silvia Reis Marques integra a direção nacional do MST para o Rio Grande do Sul. Assentada com seus dois filhos em Bossoroca, na região Missioneira, acredita que, quando a terra é conquistada, a próxima etapa é a produção de alimentos saudáveis “não só para nossos filhos, mas de toda a sociedade, que também são nossos”.
Ao lembrar Roseli Nunes da Silva, a Rose, agricultora sem terra que ocupou a Annoni e foi assassinada em 1987 (que disse um dia que preferia morrer lutando a morrer de fome), Silvia observa que a luta por vida digna está no “DNA” das mulheres. “Tivemos muitas perdas estes anos, de companheiros valiosos, e seguimos lutando. E a luta por alimentação saudável, os cuidados com as sementes, com a terra, que nos dá o sustento, é o nosso legado. Seguimos com nossa bandeira pela reforma agrária, na perspectiva de uma produção saudável, sem venenos e a um custo que as pessoas possam pagar. Queremos produzir a vida”.
Para Chomski, o MST é o mais importante movimento de massas no mundo
Por sua trajetória, o MST é reconhecido internacionalmente. O filósofo e linguista estadunidense Noam Chomski, Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), costuma falar que se trata “do mais importante movimento de massas do mundo”. Como reflexo de sua importância, ao longo dos anos, vem conquistando reconhecimento internacional.
Como o Prêmio Nobel alternativo, concedido pelo Parlamento sueco em 1991. Outro reconhecimento foi a condecoração pelo modelo educacional implementado nos assentamentos, entregue pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), em 1995. Em 2011, o MST recebeu, nos EUA, o Prêmio Soberania Alimentar, concedido anualmente pela Community Food Security Coalition, entidade que agrega cerca de 300 organizações voltadas para o combate à fome, a segurança alimentar e agricultura sustentável.
Foto: Roberto Santos
MST contribuiu para o fim da ditadura militar
Voltar no tempo 30 anos remete a um Brasil fechando as cortinas para a ditadura militar, mas com todo aparato violento e repressor em ação. Quando aquelas 1,5 mil famílias ocuparam a Fazenda Annoni receberam um cerco policial. Ninguém entrava ou saía, o que resultou em todo tipo de privações para aquelas pessoas: fome, frio, doenças. “Éramos mais de 7 mil pessoas, mobilizadas em uma noite. Isto foi mesmo um marco”, lembra Mário Lill, que participou da ocupação quando tinha 20 anos e era solteiro.
“O Batalhão de Polícia vigiava toda a área. Era a força pública protegendo a propriedade privada. Mas tinha uma unidade, uma força do povo, era uma coisa muito bonita”, lembra. Foi um longo período de resistência e as dificuldades eram muitas. “O ministro da Justiça era o Paulo Brossard e o governador era o Jair Soares. Eles exerceram um cerco muito grande. “Se passou por tudo, impediram entrada de alimentos, de visitas, medicamentos”…
A violência do Estado já tinha ocorrido em anos anteriores. Em 1979, quando houve a ocupação das fazendas Macali e Brilhante e, em 1981, no acampamento em Encruzilhada Natalino, tudo na região da produção. Como no dito popular “o que não mata fortalece”, a falta de democracia e o fato de tantos homens, mulheres e crianças despossuídos passarem
por privações levaram a um forte sentimento de resistência e unidade. E foram sete anos de resistência.
O assentamento na Annoni ocorreu em 1992. Mário Lill vive lá, hoje com esposa e dois filhos. No local foram assentadas 423 famílias. São 270 ligadas ao MST. As demais são de antigos empregados, posseiros, mais um grupo de ocupantes de uma área chamada Passo Real. Neste período houve uma centena de outras ocupações pois, ao serem resolvidas as necessidades de uns, surgem outras. “Faço parte de um coletivo de 13 famílias que forma uma cooperativa de produção. Temos um frigorífico para abate de bovinos e suínos, tambo de leite, lavoura de soja, milho, pastagem trigo, feijão. E também o que chamamos de autossustento, com hortigranjeiros.Vendemos o excedente para merenda escolar”.
“Nosso assentamento é o melhor lugar do mundo para se viver”
Hoje, os assentados da Fazenda Annoni contam com uma escola de ensino fundamental, a 1,5 km de distância. Dentro de assentamento há uma escola de ensino médio conveniada com o Instituto Federal de Sertão (Instituto Educar), com enfoque na agroecologia. Também, no interior do assentamento, em parceria com a Universidade Federal Fronteira Sul, é oferecido o curso de Agronomia, também com enfoque na agroecologia.
Em relação à saúde, mora no local (chamado de agrovila) um casal de médicos que trabalham na Equipe de Saúde da Família (ESF), do município de Pontão (desmembrado de Sarandi). O médico é supervisor do programa Mais Médicos na região. “Nosso assentamento é o melhor lugar do mundo para se viver. Fizemos dele um ambiente bom. Ele está aí para mostrar que fazer a reforma agrária dá certo. Tivemos um sonho de transformar o latifúndio improdutivo em um espaço de vivência, de trabalho e estamos avançando”, avalia Lill.
Antiga liderança no movimento, Marli Castro tinha 29 anos quando ocupou a Annoni, junto com a família. “A ocupação envolveu 32 municípios da região Celeiro, no Alto Uruguai. Era uma área que estava em litígio por 17 anos”, recorda. A ocupação da área marcou a luta pela reforma agrária, não só nacional, mas internacionalmente. “Foi uma ousadia, em 2 horas milhares de famílias tomando a terra, o que mostrou um potencial de organização muito grande desde o início”. O local ficou conhecido como cidade de lona. Foram criadas estruturas, com equipes responsáveis por diversos setores: segurança, saúde, educação, inclusive cuidados para preservação do ambiente natural. “Estávamos cercados pela polícia. Então, havia uma coordenação do movimento, com seis pessoas, para cuidar do conjunto das ações e negociar com o governo”. Por conta de suas ações, Castro passou por perseguições e prisões.
“Foram anos difíceis, mas conseguimos mobilizar entidades de apoio que deram suporte inclusive de alimentos, roupas, medicamentos”. Na época, foi criada uma farmácia básica e implantaram um sistema de educação. “Eram 3 mil crianças em idade escolar, precisávamos fazer alguma coisa. Conseguimos uma escola de forma provisória e criamos uma escola itinerante que, depois, foi fixada. Foi lago inovador. Com uma estrutura mínima fizemos uma mudança que marcou a opinião pública, que passou a nos enxergar como trabalhadores que buscavam espaço no processo produtivo e não um conjunto de baderneiros como quiseram nos pintar”.
Liderança do movimento é vereador em Nova Santa Rita
Hoje assentado em Itapuí, Nova Santa Rita, na região Metropolitana, Marli Castro é vereador e tem orgulho em dizer que é oriundo desta luta. Criou cinco filhos no movimento, todos estudaram. “É claro que valeu a pena chegar até aqui, é nossa história, milhares de famílias conquistaram seu espaço produtivo e dignidade”.
Hoje no Brasil são 120 mil famílias acampadas, sendo 2 mil no Rio Grande do Sul. Em todo o país, são 300 mil assentados e 14 mil no estado. No domingo, 18 de outubro, 400 famílias ocuparam uma área de 500 hectares na comunidade Madureira, em Santana do Livramento, na Fronteira Oeste do estado. A área está localizada entre os assentamentos São João do Ibicuí e Dom Camilo, não possui denominação e é considerada improdutiva.
No dia seguinte, 19, outras 400 famílias ocuparam a Fazenda Sol Agrícola, em São Lourenço do Sul, região sul do estado. A área possui aproximadamente 750 hectares e tem capacidade para assentar 50 famílias. Os ocupantes estavam acampados nos municípios de Encruzilhada do Sul, Eldorado do Sul, Tapes e Pelotas. E, após sete anos embaixo da lona preta, ainda em outubro, famílias puderam comemorar seu assentamento na Fazenda São Clemente, no município de Esmeralda, nos Campos de Cima da Serra. O local recebeu o nome de Dom Orlando Dotti e é o primeiro federal criado este ano do Rio Grande do Sul e pode abrigar até 143 famílias ligadas ao MST e Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).
Representantes nos legislativos
A força da organização dos últimos anos resultou na conquista de espaços no Parlamento, tanto estadual quanto federal a partir de 1986, quando o pequeno agricultor de Miraguaí, Adão Pretto, um dos fundadores do MST, tornou-se o primeiro deputado eleito pelo movimento. Foi deputado estadual de 1986 a 1990 e federal por cinco mandatos consecutivos, até sua morte, em 2009. Com pouco estudo, alfabetizado aos 16 anos e com apenas 22 hectares de terra, ele queria dar uma vida melhor para os nove filhos. Ligado à igreja católica, tomou contato com padres progressistas e descobriu que ser pobre não era por obra de Deus e que era necessário fazer coisas para mudar esta condição.
“Ele começou a pregar isto, ganhou muitos amigos e também inimigos”, lembra Edegar Pretto, um dos filhos, que seguiu os passos do pai e hoje é deputado estadual. Sob a liderança de Adão Pretto, a pequena Miraguaí foi a primeira cidade em que houve protestos de pequenos agricultores após a ditadura. Edegar era um menino e já acompanhava o pai na organização das famílias para ocupações no início da década de 1980. “A gente mapeava as famílias, quem iria para o acampamento, tais e tais famílias, qual o local… nosso trabalho, meu e dos irmãos, era ajudar a reunir as pessoas. Tudo organizado, com hora marcada”.
Na década de 1990, com Adão Pretto em Brasília, o sem terra Dionilso Marcon foi eleito deputado estadual. Desde meados dos anos 1980, o movimento passou a garantir assento nos parlamentos estadual e federal. Atualmente o MST gaúcho está representado por Marcon na bancada federal e Edegar Pretto na estadual. Marcon relata a enorme dificuldade que enfrenta em Brasília, pois a bancada ruralista, que faz oposição ao MST, possui 257 deputados contra três ligados ao movimento. “A Câmara dos Deputados não existe para defender o povo brasileiro, mas defender o interesse de meia dúzia”, desabafa. Só a JBS, uma das maiores indústrias de alimentos do mundo (controla marcas como Friboi, Swift e Seara, com negócios espalhados pelos cinco continentes) elegeu 166 deputados federais. “Eles vão defender os pequenos agricultores ou a JBS?”.
De acordo com ele, esse desequilíbrio na representação gera imensas dificuldades. “Hoje, na Câmara, os maiores partidos não são os legalizados pela Justiça Eleitoral, mas os com alinhamento no agronegócio. Segundo o parlamentar, atuar com tamanha desproporção “é o inferno”. Assentado em Nova Santa Rita, Marcon enfrenta cotidianamente bancadas conhecidas como da bala, da bíblia (embora ele não goste de usar esta expressão, pois considera muitos evangélicos aliados) e do boi, que dão à Câmara dos Deputados atual o status de mais conservadora dos últimos 60 anos.
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Confira a seguir galeria de fotos exclusivas especialmente cedidas ao Extra Classe pelo repórter fotográfico Roberto Santos, um dos pioneiros na cobertura do movimento dos trabalhadores sem-terra.