A comida com sabor, saber e identidade
Foto: Hans-Peter Siffert/ Arquivo Movimento Slow Food
Comer, saborear e, de preferência, pensar no que come. Este movimento em torno da mesa não cabe num único nome, mas tem como centro a cozinha, a terra e a integralidade da relação entre pessoas e alimentos. Começam a se esboçar sinais de uma grande rede que tem como parâmetro a cozinha regional, o alimento justo e saudável e a recuperação do sabor com um toque de saber. “É um trabalho que passa muito pelas escolas. Houve um afastamento das pessoas do ato de cozinhar e a industrialização do alimento afastou as pessoas de pensar no que comem”, diz Jussara Dutra, psicóloga e formada em gastronomia que, durante o governo do estado de Tarso Genro, assumiu a cozinha do Palácio Piratini e fez disso um grande centro de fomento à culinária regional.
Foi demarcado um mapa onde a cozinha serviu como ponto de diálogo com saúde, educação, desenvolvimento regional, identidade cultural. Cidades da Serra, região Central, Fronteira e Missões serviram como berço dessa política pública. O ponto de partida foi um edital lançado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do RS (Fapergs) que permitiu a criação de um grupo de estudos da gastronomia regional. No entanto, por trás disso, está um movimento mundial que se estende por quase duas centenas de países: o slow food, criado na década de 1980 pelo italiano Carlo Petrini, que tem como princípio o alimento bom, limpo e justo. Enfim, uma grande rede que vai, literalmente, da cozinha de casa a um movimento planetário.
É um movimento de apropriação da simplicidade e da autenticidade dos frutos da terra, da identidade cultural, do sentido de pertencimento e de apropriação do ato humano mais básico, o de se alimentar. Jussara vê também que a glamourização do que se chama de alta gastronomia pode estabelecer uma elitização e uma desvalorização da cozinha local ou regional.
“Na verdade, penso que a alta gastronomia não exilou as pessoas e sim a gourmetização, pois esta não leva em consideração os aspectos relacionados à essência da cozinha. Neste sentido, a gastronomia está indo a passos largos para a descaracterização da cozinha com identidade. Os próprios cozinheiros acabam também por seguir tendências ou influências gastronômicas que não refletem o saber fazer da gastronomia propriamente dita, gastronomia esta que possui história, está impregnada de cultura, representa a localidade e principalmente identifica e diferencia as regiões”, opina Roberto do Nascimento e Silva, do Curso Superior de Tecnologia em Gastronomia da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc).
Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini
No Rio Grande do Sul, estado de enorme diversidade, esse movimento ganhou força nas festas regionais e no mapeamento de novas possibilidades. Por exemplo: há dois anos acontece na fronteira Santana do Livramento ‒ Rivera o Festival Binacional de Eno Gastronomia e Produtos do Pampa, que está servindo também como um impulso a todo um processo de desenvolvimento regional. A começar por duas vocações do lugar: a produção de vinhos e de carne.
Atílio Ibargoyen, produtor rural e proprietário do Hotel Fazenda Palomas, fala dessa forma de aproximar o produtor e o consumidor e descortinar, enfim, uma cozinha em que a simplicidade é um grande valor a ser agregado. “Oferecemos a qualidade que vem do ambiente, do tipo de criação dos animais. Além disso, nesta região da fronteira, a gastronomia pode ser uma alternativa a essa sazonalidade cambial ao oferecer um produto que é um atrativo permanente”.
Um movimento social
Entretanto, se há a produção e o preparo de comida a partir de fatores como tradição e consciência de quem consome, é necessário também pensar a questão por outro lado. “A alimentação não é só para quem pode pensar no que consome”, alerta Tainá Zaneti, professora do curso de Gastronomia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Ela já participou de um projeto da Universidade de Brasília (UnB) para a valorização dos frutos do cerrado, integra o movimento do slow food e vê, em toda essa questão, a necessidade também de elaboração de políticas públicas. Ou seja: a transformação da cozinha pressupõe um outro horizonte também da sociedade.
Por isso, Jussara Dutra fala na escola. A educação pelo gosto é também a consciência de um lugar, de uma história, de uma memória passada através do alimento. Ela lembra de uma pesquisa sobre frutas feita com alunos, que mostra um absoluto desconhecimento das 54 espécies nativas que proliferam no estado. Consciência do que come, consciência de si mesmo, cordão umbilical que liga uma pessoa ao mundo. Como as plantas e os animais, cada um também tem o seu terroir, ou seja, o lugar onde viceja, vive e prospera. É o que afirma Roberto do Nascimento e Silva.
Foto: Beit Karama/Arquivo Movimento Slow Food
“A questão da gastronomia tem alguns condicionantes básicos: o sentimento de pertencimento (reconhecimento das pessoas em se reconhecerem através da gastronomia oferecida), atração de pessoas para a região para conhecer a gastronomia local, configuração dos terroirs e de indicações geográficas. No Brasil existem duas certificações: Indicação de Procedência e Denominação de Origem, como por exemplo os vinhos do Vale dos Vinhedos (RS), e o café do Cerrado Mineiro (MG). Mas, a priori, sempre se buscam regiões reconhecidas territorialmente, através da construção de um processo histórico e cultural”.
A questão talvez seja simples: se apropriar da cozinha para se conhecer e se dar a conhecer. E assim estabelecer redes, vínculos e parâmetros de uma vida melhor em todos os sentidos. Ou, como afirma, Silva, simplesmente isso: “A melhor gastronomia é aquela desenvolvida com amor, respeito e dedicação independentemente do grau de sofisticação do prato. E que tenha por objetivo a satisfação de todos os envolvidos no processo, desde o produtor rural até o comensal final”, constata.
Impulso ao desenvolvimento local
Costuma-se dizer que Livramento, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, é a cidade do já teve: já teve prosperidade, já teve um frigorífico, já teve um lanifício. Hoje só tem saudade de um passado que, olhado de longe, sempre parece melhor pintado com as cores da fantasia.
Foto: Alan Gonçalves/Divulgação
O Festival Binacional de Eno Gastronomia e Produtos do Pampa, que caminha para a sua terceira edição, revitalizou a fronteira, com a integração do lado uruguaio através de Rivera. Em torno dessa grande mesa sentaram grandes chefs nacionais (como Ana Luiza Trajano), ONGs de desenvolvimento rural (como a Alianza de los Pastizales), produtores locais de vinho e carne, turistas e público em geral.
Os primeiros resultados disso: pecuaristas já discutem como melhorar a produção de carne em campo nativo; está abrindo um frigorífico para abate de cordeiros e o festival caminha para a terceira edição. Na segunda, realizada este ano, Carlo Petrini, o criador do slow food, esteve por lá. Saboreou churrasco, conversou com pessoas, deu um ar cosmopolita ao encontro local. Mostrou o óbvio: a grandeza da boa mesa está no valor e na força da simplicidade.