Todos os anos, cerca de 12 mil trabalhadores provenientes de várias localidades brasileiras espalham-se pelos pomares da região de Vacaria, no interior do estado, para a safra de maçãs, que abastecerão os mercados europeu e dos países árabes. Os safristas, como são chamados, trabalham temporariamente nas colheitas e depois ou retornam para suas localidades de origem ou seguem vida nômade em busca de outra oportunidade de remuneração. Sete desses trabalhadores contam suas histórias de vida. São relatos de abandono familiar, baixa escolaridade, trabalho infantil e de como chegaram até Vacaria, a segunda maior produtora de maçãs do país.
A migração interna de trabalhadores rurais no Brasil sempre esteve ligada às desigualdades sociais e econômicas, ao PIB muito baixo de cidades de pequeno porte, à monopolização da terra e à redução do emprego. Segundo dados do IBGE em estudo lançado em 2011, entre 2004 e 2009, 2 milhões de pessoas migraram dentro do país.
Se por um lado o maior número de migrantes internos está ligado ao êxodo rural das últimas décadas, levando mão de obra das zonas rurais para os grandes centros urbanos, por outro, também há um grande número de trabalhadores que permanecem rurais, porém nômades, deslocando-se por todo país em busca de trabalho nas lavouras, principalmente nos períodos de colheita de determinadas culturas.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), também do IBGE, no Brasil, dos mais de 25 milhões de pessoas que trabalham no campo, cerca de 4,8 milhões são trabalhadores e trabalhadoras rurais assalariados (dados do Censo). Desses assalariados e assalariadas rurais, cerca de 3,2 milhões trabalham em situação de informalidade, representando um índice de 64,9%. Na região Sul, a relação é de 58,4%.
No interior do Rio Grande do Sul, um dos locais que recebe grande número de migrantes é Vacaria, situada a 238 quilômetros de Porto Alegre. Trata-se da segunda maior produtora de maçãs do Brasil. Tem aproximadamente cem propriedades rurais que inclui grandes, médios e pequenos agricultores. O município recebe, de forma sazonal, de 12 mil a 15 mil trabalhadores de vários cantos do país nos períodos de colheita, que ocorrem duas vezes por ano. A migração dos safristas da maçã é considerada sazonal, pois a permanência é apenas em alguns meses. A colheita é feita em duas fases do ano: de janeiro a março e de maio a junho.
Situação melhorou, mas regras precisam ser mais claras
Ana Paola de Oliveira
Os safristas são contratados na cidade de origem, e para esse recrutamento se faz necessária a certidão liberatória junto à Delegacia Regional do Trabalho (DRT). Segundo Sérgio Poletto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Assalariados Rurais de Vacaria e Muitos Capões STR e vice-presidente da Federação dos Trabalhadores Assalariados Rurais do RS – Fetar/RS, eles precisam ter a carteira de trabalho assinada que inclui o valor do salário, horas extras, alimentação, estadia e retorno. “O Sine organiza e contata esses trabalhadores na cidade de origem e quando chegam ao estado passam pelo Ministério do Trabalho, de Caxias do Sul”. O piso salarial é R$ 1.012,00 para 8 horas de trabalho, mais o valor do bins (caixa de maçã colhida) e as horas extras. O salário pode chegar a R$ 2.500,00.
O recrutamento é feito via Sine e quem assina a carteira é a empresa contratante. Há casos de empresas que têm um responsável que procura esses trabalhadores. Segundo Rafael Bolsoni Ramos, recrutador da Rasip – uma das maiores produtoras de maçã do Brasil, integrante do grupo Randon –, ele viaja aos estados de Minas Gerais e Paraná em busca de mão de obra. “Buscamos e treinamos o pessoal aqui, temos trabalhadores que atuam na empresa há 14 anos”, explica.
DIREITOS – Não há uma lei federal que regulamente o trabalho rural. Segundo o sindicalista Sérgio Poletto, há apenas as normas regulamentadoras, as NRs 31 e 33 do Ministério do Trabalho. “Existe um projeto de lei do deputado federal do PCdoB (SP), Orlando Silva, mas o que temos até o momento é a NR 31 que orienta sobre os direitos destes trabalhadores”.
Conforme dados divulgados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), no Brasil, a informalidade e o trabalho escravo vêm diminuindo. O que é atribuído à atuação do Movimento Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (MSTTR) e dos sindicatos dos trabalhadores rurais na luta contra o trabalho escravo e informalidade, além da atuação do Ministério do Trabalho e Emprego, que faz fiscalização nas propriedades e resgata trabalhadores explorados.
De acordo com a Contag, de 1995 a 2010 foram resgatados 39.180 trabalhadores(as) em condição de trabalho degradante. Somente no período de 2007 a 2008 foram 11.015 trabalhadores(as) resgatados e, em 2011, foram 2.628 trabalhadores(as).
Foto: Ana Paola de Oliveira
Para Sérgio Poletto, presidente do STR de Vacaria, na década de 1990, quando começou a atuar no Sindicato dos Trabalhadores Assalariados Rurais de Vacaria e Muitos Capões (STR), os trabalhadores eram transportados em cima de caminhões. “Eles tinham que levar a própria comida em marmitas, não tinha refeitório, nem alojamento. Houve um período muito complicado. Tinha gente que ficava acampada embaixo de lonas”.
Passados quase 30 anos, ele vê uma sensível evolução na questão trabalhista. “Hoje a responsabilidade é toda da empresa, mas é preciso ter normas mais claras, que deem para o trabalhador mais garantias. No passado, houve denúncia de trabalho escravo, o que denegriu a imagem de uma empresa e da cidade. Para realizar a exportação da fruta é preciso seguir normas trabalhistas”, explica. As maçãs brasileiras são vendidas para a Europa e países árabes. “Mas num universo de 15 mil trabalhadores é difícil que não tenham problemas. O sindicato tem que cuidar desses trabalhadores e eles não devem ser tratados como escravos”, afirma.
Relatos de abandono e trabalho infantil
Foto: Ana Paola de Oliveira
Elvio Nunes Barcelos parece um modelo fotográfico, mas sua vida não foi glamorosa. Tem 40 anos, nasceu na Fonteira Oeste do Rio Grande do Sul, em São Francisco de Assis. Estudou até o ensino fundamental e largou os estudos para ajudar em casa. A sua mãe havia herdado um pedaço de campo do avô, mas ela vendeu para ajudar nos estudos de Odontologia do seu pai. “Quando ele se formou, sumiu de casa e nunca mais voltou, assim tive que ajudar a mãe”. O primeiro serviço foi aos nove anos numa loja de móveis na qual ajudava na limpeza, trabalhou de faxineiro em casa de família e aos 12 anos numa olaria. “Depois fui para Uruguaiana trabalhar com saca de arroz, secador e serialista. Numa cidade pequena não tem muito serviço, aí tem que trabalhar com o que aparece”, constata. Ao retornar para sua casa, vai fazer bicos. Separado, cria seus três filhos. Ele foi por conta própria nesta safra, mas geralmente viaja em grupo.
Foto: Ana Paola de Oliveira
Já Alexsandro dos Santos, 23 anos, nascido em Tenente Portela no interior do RS, começou a trabalhar ainda criança, aos 12 anos, num pomar. De origem indígena, mora numa das aldeias de Farroupilha, a Pãnmon e fala caingangue; hoje, além de safrista, confecciona artesanato, vende cestos, balaios e casinhas. Segundo Alexsandro, há muitos índios para pouca terra e o trabalho em volta das aldeias é bem difícil. “A própria cidade nos discrimina, então trabalho longe da minha terra”, diz. Quando sua mãe morreu ele tinha dois anos, então foi criado pela avó e viveu na aldeia Guarita, em Tenente Portela. Chegou a Vacaria com mais quatro jovens indígenas. É sua primeira vez na cidade. Já trabalhou em Lagoa Vermelha, Ipê e São Joaquim. Após a colheita vai voltar para Farroupilha. Tem um filho e esposa. O filho tem bolsa-família, mas ele comenta que não dá para comprar muita coisa, mas “ajuda no básico”. Ele espera fazer de tudo para que o filho possa estudar e ter uma vida melhor.
De outros estados em busca de remuneração
Foto: Ana Paola de Oliveira
Vindo de Carapicuíba, interior de São Paulo (próximo a Osasco), Valdenir Sena Gomes, de 40 anos, não conheceu seu pai, foi criado pela mãe e fez apenas o primeiro grau. A mãe faleceu quando tinha 12 anos e teve que criar o irmão mais novo sozinho. “Com 16 anos saí de casa, fui trabalhar em Ro¬deio montando touro brabo, aca¬bei me machucando e quebrei a clavícula”, recorda. Trabalhou em terras particulares com bois e por¬cos e chegou a Vacaria por curio¬sidade. “É a primeira vez que vou colher maçã”, diz. Ele é um homem sem residência fixa. “Estou na es¬trada para o que der e vier, pre¬tendo ir até a Argentina ou voltar para Barretos onde conheço muita gente”. Busca apenas se sustentar, para seguir adiante, pois não tem filhos. Chegou sozinho na cidade, por indicação de um amigo de São Paulo. “Nós saí¬mos juntos, mas nos perdemos no caminho. Vivo na solidão das estradas”, explica. Passou por Pilar do Sul, Sorocaba, Curitiba até chegar em Vacaria, após fazer várias paradas de trabalho.
Foto: Ana Paola de Oliveira
Neiriberto da Silva Alves veio de Minas Gerais, da cidade de Ituiutaba. Aos 30 anos, é o único dos entrevistados que terminou o ensino médio. Sonha cursar Engenharia Civil ou Gastronomia. Ele começou a trabalhar cedo, aos nove anos. Foi vendedor de picolé, vendeu alface na rua, fez serviços de servente de pedreiro e auxiliar de cozinha. Segundo ele, na cidade de onde veio o desemprego está muito grande. Além de buscar trabalho, ele queria conhecer o sul do país. A primeira vez que trabalhou em Vacaria foi em 2015. Nesse ano viajou com 42 pessoas, todas mineiras, e chegou de ônibus fretado. Ele não quer voltar para Minas, pois pretende ficar em Vacaria. Na sua terra natal, mora com os pais numa casa própria e não tem filhos. Para ele, ser migrante brasileiro é uma maravilha, independente do esforço pessoal. “Faço amizades, tem novos sotaques, comidas e conheço muitas rodovias”, justifica.
As mulheres na estrada
Foto: Ana Paola de Oliveira
Rosileni Aparecida Ferreira tem 41 anos é de Lucélia, interior de São Paulo. Mãe de cinco filhos, ela os deixou com o ex-marido enquanto está no sul. Foi criada no sítio e sempre trabalhou na terra, colhendo café. Depois que casou, virou cozinheira em restaurantes de Lucélia. “Como não havia trabalho lá, optei em ir a Vacaria e acabei gostando do serviço”. Ela estudou até a sétima série. Em 2012, o marido sofreu um acidente e não pode mais trabalhar, então ela decidiu ir a Vacaria pela primeira vez, pois o que ganhava era muito pouco. “Vi um panfleto sobre o emprego e procurei a associação comercial. A resposta da vaga chegou às 9 horas da manhã e às 13 horas eu já estava partindo para ser safrista no sul”, recorda. Ela vai ficar os três meses da colheita, volta para Lucélia para depois retornar na segunda safra da maçã em maio. Com ela, viajaram mais 44 pessoas com a mesma finalidade. Rosileni não trabalha mais como safrista na Rasip. “Passei a fazer faxina, lavar os banheiros e agora sou responsável pela segurança dos alojamentos das mulheres”, conta orgulhosa. Para ela, o mais difícil de ser migrante é ter que deixar os filhos para trás.
Foto: Ana Paola de Oliveira
Graciele Rodriguez de Souza é uma mulher tímida de 30 anos. Ela mora em Vesceslau Brás, no interior do Paraná. Fala pouco, mas conta com dificuldade que sempre trabalhou na lavoura e começou com 14 anos colhendo tomates. O pai morreu quando ela tinha 13 anos e teve que trabalhar depois disso. Tem apenas a sétima série, mas seu sonho é terminar o segundo grau. “Depois que o pai morreu não tinha mais como ir à escola, ou trabalhava ou estudava”. Seus dois irmãos também foram para a lavoura e não estudaram. “Precisávamos trabalhar para comer”. Graciele lembra que em Vesceslau Brás não há emprego, só plantação de café. Há seis anos trabalha nas colheitas em Vacaria. Ela tem três filhos, é casada e o marido trabalha junto como safrista. “As crianças ficaram com a minha sogra, assim elas podem estudar”, diz. Ela acredita no Brasil, pois seus filhos estão na escola. migração interna de trabalhadores rurais no Brasil sempre esteve ligada às desigualdades sociais e econômicas, ao PIB muito baixo de cidades de pequeno porte, à monopolização da terra e à redução do emprego. Segundo dados do IBGE em estudo lançado em 2011, entre 2004 e 2009, 2 milhões de pessoas migraram dentro do país.
Se por um lado o maior número de migrantes internos está ligado ao êxodo rural das últimas décadas, levando mão de obra das zonas rurais para os grandes centros urbanos, por outro, também há um grande número de trabalhadores que permanecem rurais, porém nômades, deslocando-se por todo país em busca de trabalho nas lavouras, principalmente nos períodos de colheita de determinadas culturas.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), também do IBGE, no Brasil, dos mais de 25 milhões de pessoas que trabalham no campo, cerca de 4,8 milhões são trabalhadores e trabalhadoras rurais assalariados (dados do Censo). Desses assalariados e assalariadas rurais, cerca de 3,2 milhões trabalham em situação de informalidade, representando um índice de 64,9%. Na região Sul, a relação é de 58,4%.
No interior do Rio Grande do Sul, um dos locais que recebe grande número de migrantes é Vacaria, situada a 238 quilômetros de Porto Alegre. Trata-se da segunda maior produtora de maçãs do Brasil. Tem aproximadamente cem propriedades rurais que inclui grandes, médios e pequenos agricultores. O município recebe, de forma sazonal, de 12 mil a 15 mil trabalhadores de vários cantos do país nos períodos de colheita, que ocorrem duas vezes por ano. A migração dos safristas da maçã é considerada sazonal, pois a permanência é apenas em alguns meses. A colheita é feita em duas fases do ano: de janeiro a março e de maio a junho.
“Não viajo porque gosto, mas por uma necessidade real”
Do Maranhão, Francivaldo Ferrei¬ra Lima tem 29 anos e é natural da cidade de Anajatuba. Estudou até o ensino médio e já trabalhou em to¬dos os estados do Brasil. “Estive em São Paulo, Goiás, Minas Gerais, Rio de Janeiro sempre colhendo cana de açúcar. Onde tem oportunidade eu vou”. A mãe morreu quando ele tinha quatro anos e o pai não assumiu o filho. Foi criado pela avó junto com o irmão. Os dois sempre trabalham juntos. “Somos muito unidos”. Ele estava trabalhando na Odebrecht em 2014, no estado do Mato Grosso, quando ficou sabendo sobre o traba¬lho em Vacaria. “Eu não queria colher maçã e foi me dito que seria chefe de turma, mas o trabalho era para ser sa-frista. Eu não gos¬tei do contrato e fui embora depois de 15 dias. Agora em 2016 abriram 18 vagas e voltei”. Em março retorna ao Maranhão. Ele tem três filhos e estão estudando. “Eles têm bolsa-família, esse dinheiro vem certo, este mês vai dar para comprar o material escolar”. Ele sonha que seus filhos se formem numa faculdade. Ele diz que ser mi¬grante brasileiro é ser um eterno via¬jante. “Não viajo porque gosto, mas por uma necessidade real”, conclui.
Foto: Ana Paola de Oliveira