Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
Nova Lei de Imigração, com ênfase nos direitos humanos, pode ser aprovada em maio na Câmara dos Deputados. Ela substituirá o atual Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80), que ainda carrega resquícios da Lei de Segurança Nacional e possui o caráter policial dos anos de ditadura militar, que entendia o estrangeiro como ameaça. Porém, o trâmite final se dá em meio ao fogo cruzado entre Executivo, Legislativo e Judiciário, reflexo da batalha política travada dentro da comissão do impeachment e que mobilizou parlamentares contra e a favor do governo federal.
Assim como na maioria das cidades industrializadas do estado e do país, no município de Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul, cerca de 700 imigrantes haitianos atuam no mercado de trabalho, além dos senegaleses, ganeses, nigerianos e afegãos, em menor número. A maioria está na indústria de alimentos e alguns na construção civil. Eles comparecem periodicamente à Polícia Federal (PF) para manter sua situação regularizada no país e a nova lei terá impacto direto sobre suas vidas, já que muitos interpretam a atual legislação como restritiva ao pleno exercício da cidadania, pois traz restrições à livre organização e manifestação. Pelo estatuto atual, um cidadão estrangeiro, conforme interpretação da autoridade policial, pode ser sumariamente deportado se for considerado autor ou participante de ato considerado subversivo.
Renel Simon, 27 anos, que mora no Brasil há quatro anos, aguarda a nova lei com grande expectativa. Ele tornou-se uma peça importante na Secretaria de Assistência Social da Prefeitura na triagem e encaminhamento dos estrangei- ros que chegam ao município jun- to à Polícia Federal, embaixadas, Ministério do Trabalho e órgãos públicos de diversas esferas, inclusive em Brasília. O atendimento é feito em cinco idiomas, já que a maioria chega sem saber nada de português.“Atualmente o desconhecimento da língua é um dos maiores entraves à integração dos estrangeiros nas comunidades”, explica. Ele chegou no país em 2012. “Não sabia nada em português quando cheguei, mas falar inglês e espanhol ajudou”, diz. Em Lajeado, os próprios imigrantes estão organizando uma escola de idiomas. “Já damos aulas de português, mas não são muitos alunos. Ano passado con- seguimos atender 120 pessoas. A Univates já ajudou na iniciativa e este ano as aulas iniciarão em abril, com 40 pessoas. Aos poucos estamos melhorando essa situação. Sem saber se comunicar, a pessoa não se integra”, argumenta Simon.
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Como muitos haitianos, Simon entrou clandestinamente no país por Tabatinga, cidade do interior amazonense que faz divisa com a Colômbia, onde do outro lado da fronteira está a cidade de Letícia. “Fiquei seis meses em Manaus, depois vim para o Rio Grande do Sul”. Ele explica que desde 2010, quando aconteceu o terremoto, muitos haitianos começaram a deixar o Haiti para vir para o Brasil, passando pelo Peru, Equador, Colômbia. Os imigrantes aguardam na fronteira para obter um protocolo provisório com validade para seis meses, depois aguardam a publicação do nome do Diário Oficial da União para poder ter permanência no país.
Em fevereiro de 2012, a presidente Dilma Rousseff assinou um acordo com o governo haitiano para que a embaixada brasileira no Haiti passasse a emitir cem vis- tos por mês. Já em 2013, não ha- via mais limite de vistos. “Durante esse processo eu já estava no Bra- sil e foi mais uma questão de legalizar minha situação. Trabalhei como caseiro em Manaus e saí de lá porque queria continuar meus estudos. “Fiz curso de técnico administrativo e tranquei a matrícula na faculdade de Relações Internacionais, na Univates, por falta de condições financeiras”. Segundo Simon, fica difícil manter os estudos no ensino superior para quem ganha em média R$ 1.200 por mês e faz cinco disciplinas semanais. Para ele, da forma como está, o estrangeiro, mesmo com escolaridade, vem para o Brasil para ser mão de obra, mas enfrenta dificuldades para seguir os estudos, quando se trata de educação superior.
“Até agora, ainda não sei se estrangeiro pode ou não usufruir do Fies. Num primeiro momento fui informado de que não era possível fazer o Fies sendo estrangeiro, depois, o contrário. Em função disso, procurei ajuda no Ministério Público, questionando essa informação. A resposta do procurador é que era possível fazer o Fies”. Mas, apesar da legislação não conter qualquer restrição, toda a questão burocrática que envolve fiança, por exemplo, acaba inviabilizando esse crédito para o imigrante. “Quando finalmente consegui resposta positiva do MP, vieram os atrasos das inscrições e tive de trancar”, explica.“Nosso objetivo não é só trabalhar e depois ir embora. Queremos crescer com o Brasil e isso passa por estudar para poder ajudar no mercado profissional e se integrar ao país”, sintetiza. Quando Simon chegou ao Brasil, em Manaus entravam 300 a 400 haitianos por dia e empresas do Rio Grande do Sul iam buscar mão de obra na região. “Eu vim para cá com uma empresa de Estrela, de concreto, embora morasse em Bom Retiro do Sul. Cheguei lá em agosto de 2012. É uma cidade pequena e muito fechada, o que me levou a sair de lá e morar em Lajeado, principalmente para poder seguir meus estudos. Fiz EJA durante um ano e meio até concluir o ensino médio para depois entrar na faculdade”.
Para Simon, o atendimento direto da Polícia Federal não resolve, porque basicamente se limita à concessão do Registro Nacional de Estrangeiro (RNE). O que o imigrante precisa é de um serviço básico, não só em Lajeado, mas em todo o país. “Aqui o pessoal se sente bem atendi- do por causa do meu trabalho, mas isso deveria existir em qualquer lugar onde se faça necessário. Aqui acompanho eles em tudo, banco, hospital e até nas empresas”.
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Eles também estão em fase de legalização de uma associação, provisoriamente chamada Organização de Haitianos e Imigrantes no Rio Grande do Sul. Em 2015, Simon esteve em Brasília, num encontro que resultou em uma carta-manifesto que foi entregue ao secretário-geral da Presidência, Miguel Rossetto, sugerindo uma melhor forma de organizar a chegada dos estrangeiros no país, o que passa pela montagem de organizações de imigrantes que auxiliariam nesse primeiro contato do estrangeiro com o Brasil. Segundo ele, a recepção foi afirmativa e ocorreu na presença do ministro da Justiça. “Na época, a nosso pedido, foi protocolado e encaminhado. Outra coisa: sem que o imigrante possa se organizar fica muito difícil se integrar. Não se trata de ter vida política no Brasil, mas queremos ter nossos direitos também respeitados”. Para Simon, uma pessoa que mora no Brasil há dois anos não deveria ter problemas com documentos nem se sentir ameaçado ou um cidadão de segunda categoria. “O protocolo provisório só vale para fazer a carteira de trabalho, CPF e atendimento nos postos de saúde, mas para viajar, fazer cartão de crédito, fazer um empréstimo já não vale. Somos cidadãos honestos e trabalhadores e precisamos desses direitos. Essas são questões básicas que um cidadão muitas vezes necessita em um país estranho”, explica.
INSTABILIDADE – 70 mil haitianos estão em processo para adquirir Carteira Nacional de Estrangeiro. Com esse documento é possível fazer muitas coisas como, por exemplo, abrir conta bancária, viajar para fora do país e retornar. Onde o imigrante for será pedido esse documento. Os imigrantes embora reticentes em admitir publicamente, olham com certa apreensão o cenário político brasileiro, pois numa eventual guinada à direita ou aprofundamento da crise política, a situação deles pode ficar mais delicada. “O governo brasileiro, como qualquer governo, tem seus problemas, mas tem trabalhado para melhorar a vida dos imigrantes aqui no país. A Embaixada do Brasil no Haiti dá 2 mil vistos humanitários por mês, o que evita que os haitianos tenham de passar pelo Acre ou Tabatinga. Temos medo de que numa eventual queda desse governo essas políticas pró-imigrantes retrocedam e que o próprio PL venha a não ser aprovado”, desabafa Simon.
Abdias Geffard, 29 anos, fala cinco idiomas. É linguista e atua no centro de distribuição de uma rede de supermercados. Ganha em torno de 1.200 reais por mês. Ao lado de Renel Simon, atua na associação e na organização dos imigrantes em Lajeado. Essa organização não tem fins lucrativos. “Estamos lutando para ter representatividade e trazer melhorias para os imigrantes. Não que estejam vivendo mal, mas é preciso representação”, explica.
A entidade nasceu em Lajeado, no Vale do Taquari, e a intenção é ampliar a representatividade. “Muitas associações como esta estão surgindo e em vários locais e nossa ideia é atuar de forma integrada”, explica. “Não temos medo de nos organizar, pois não estamos fazendo nada contra a lei ou fora da lei, apenas exercendo nossa cidadania. Mas precisamos saber quais nossos deveres e restrições. Isso vale para todo cidadão, mas como somos imigrantes e vivemos de uma constituição estrangeira, queremos saber quais nossos limites no Brasil. Por isso estamos trabalhando forte nesse sentido, até para mudar quem sabe esses limites exagerados, mas dentro da legalidade”, argumenta.
Votação pode ocorrer em maio no Plenário
“O PL 2516/15 pretende ampliar direitos de cidadãos estrangeiros no país”, explica o relator e vice-líder do governo, deputado Orlando Silva (PCdoB/SP), que quer aprová-lo na comissão especial em abril e encaminhá-la para plenário a partir de maio, dependendo da agenda de votações estabelecida pela presidência da casa. Esse cenário deixa os imigrantes que já vivem em território nacional apreensivos.
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Conforme o relator, o objetivo é que a nova lei para imigrantes seja centrada nos direitos humanos e livre do resquício judicial presente no atual Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80). Dentre os ganhos com a nova Lei de Migração está a regulamentação da entrada de imigrantes que fogem de conflitos armados, de grandes calamidades e de violação de direitos humanos. “O projeto que vamos encaminhar ao Plenário tem como foco a garantia e o reconhecimento do direito que toda nacionalidade tem de migrar, porque migrar é da natureza humana. Há milênios homens e mulheres circulam pelo mundo. E a nossa lei tem de estabelecer acesso a serviços e direitos, independentemente da nacionalidade de quem quer que seja”.
O projeto de lei analisado na comissão trata, entre outros temas, do visto humanitário. Hoje, por exemplo, esse tipo de visto é concedido aos imigrantes sírios por meio de norma expedida pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). A proibição da distinção entre brasileiros e estrangeiros foi defendida pela coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão sobre Direi- tos Humanos e Mobilidade Urbana Internacional da Universidade de Santa Maria (RS), Giuliana Redin. Ela afirma que, como a Constituição Federal não dispõe de qualquer regra que faça distinção entre brasileiros e estrangeiros, salvo em relação aos direitos políticos, é importante que a nova lei vede qualquer tentativa de norma infraconstitucional de estabelecer tratamento diferenciado em direitos. Segundo a pesquisadora, além de vedar a distinção, é fundamental que a norma estabeleça como princípio o desenvolvimento de leis e práticas voltadas para reduzir progressivamente a diferença jurídica de imigrantes e brasileiros.
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Direitos trabalhistas e de organização
De acordo com Claudir Nespolo, presidente da CUT/RS, o trabalhador imigrante está totalmente vulnerável do ponto de vista dos direitos civis. Principalmente por- que esse cidadão está subordinado à Polícia Federal. E, como eventualmente eles precisam apresentar-se na PF, o maior temor que eles têm é que a qualquer momento a autoridade policial possa exigir alguma coisa e levá-los à deportação. Por medo de enfrentar a periodicidade das entrevistas, muitos imigrantes caem na informalidade e na ilegalidade, onde não há garantia de direitos nem possibilidade de fiscalização dos sindicatos. “Trata-se de uma questão de garantir o pleno exercício da cidadania”, alerta. O sindicalista explica que devido à diminuição do número de em- pregos já existe muita xenofobia e alguma perseguição por setores desinformados da sociedade. “Se aprofundar a crise, as coisas podem se complicar”, diz.
Embora não exista diferenciação de salários por função, há uma certa discriminação na distribuição de cargos. Um exemplo são os haitianos, que possuem muitas competências devido à alta escolaridade, não raro o ensino superior. Trata-se de um trabalhador que desenvolveu muito a sua cultura e o pensar as coisas e está subaproveitado em funções de auxiliar de fábrica ou ajudante. “Jamais um trabalhador brasileiro com nível superior estaria desempenhando uma atividade destinada a trabalhadores de baixa escolaridade. Por outro lado, isso faz com que ele seja um ajudante de fábrica muito produtivo”. Ele não recebe menos do que um auxiliar de fábrica brasileiro, entre R$ 1.200 ou R$ 1.500,00.“Então, a superexploração está nisso. O empresariado tem se beneficiado da oferta de trabalhadores extremamente qualificados para desempenhar tarefas simples”, sintetiza. Para Nespolo, o problema é de difícil enfrentamento por se tratar da lei da oferta e da procura. “Primeiro, porque não é ilegal e nem a nova lei de imigração vai melhorar isso”. Outra questão é da livre organização. “Não há impeditivo a ele de se sindicalizar, mas ele não pode concorrer e nem se manifestar publicamente. Há uma contradição, pois qualquer participação corporativa pode ser lida, dependendo da autoridade, como uma transgressão”, explica.
Na região Metropolitana de Porto Alegre, os imigrantes estão instalados nas periferias e em ocupações, muitas vezes, em situação precária. Porque assim como com os demais trabalhadores, a empresa não tem qualquer compromisso com essa parte. O que a empresa faz é estimular a vinda. “Porém, esses trabalhadores chegaram no Brasil numa situação, de alguns anos atrás, de pleno emprego e agora começa a reduzir o número de vagas. Na indústria em que os trabalhadores normalmente fazem parte de algum sindicato, são raros os casos de descumprimento da isonomia, pois eles integram bases organizadas. No entanto,na cadeia produtiva há setores tercei- rizados de difícil fiscalização do cumprimento de direitos”, afirma o presidente da CUT/RS.
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Asnord Dumorin, 28 anos, trabalha como auxiliar de uma indústria de fundição em Cachoeirinha. Possui dois cursos superiores completos no Haiti, um na área mecânica e outro de ciências contábeis. Está há três anos no Brasil, depois de passar por Santo Domingo e pelo Panamá. Ele conta que deixou a terra natal por causa do terremoto de 2010. “Meu objetivo aqui é trabalhar. Infelizmente meus diplomas não servem aqui, embora seja qualificado. Tenho de ganhar o suficiente para me manter e mandar dinheiro para a família no Haiti”, revela. Ele paga R$ 450 de aluguel da casa que divide com a esposa. “Minha ideia é um dia voltar ao Haiti.Vou ficar no Brasil só se valer a pena financeiramente. Se o Brasil ficar melhor, eu fico; caso contrário, vou embora. Uns amigos meus dizem que o Brasil está bom, outros que o Brasil está ruim. Quando me perguntam, o que digo? Bem, eu não digo nada”, brinca.
Situação semelhante é a de ElyseeJn-Charles, 27 anos, que divide aluguel de R$ 700 com o irmão e um amigo. Recebe R$ 1.200 como auxiliar de fábrica também na Ecoplan, onde trabalham mais 17 haitianos. Já foram quase 50. Quando veio para o Brasil, ficou um tempo no acampamento de imigrantes do Acre e morou oito meses no Mato Grosso, onde trabalhou com reciclagem de pneus. Fez contato com um amigo que trabalhava em Cachoeirinha via redes sociais, que o convenceu a não ficar sozinho onde estava. “Vim inicialmente morar com este meu amigo, depois veio meu irmão, que também mora com a gente. No Haiti fiz o segundo grau. No Brasil, dois cursos, aprendi a trabalhar como pedreiro e soldador”. Ele também aprendeu sozinho a se comunicar em português. “O terremoto destruiu a universidade onde eu estudava no Haiti e aqui é muito difícil estudar. Mas minha ideia é aprender melhor a língua para poder fazer curso superior na área química, já no ano que vem”, planeja.