Foto: Igor Sperotto
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A Lei Maria da Penha é identificada por 98% dos brasileiros como referência na prevenção da violência doméstica e familiar contra mulheres, pois prevê a prisão em flagrante do agressor e a adoção de medidas para proteger a integridade física e psicológica da vítima. Porém, para funcionar plenamente, a legislação depende de uma rede de apoio que nem sempre funciona.
Se existe uma legislação que está na cabeça da população, esta é a Lei 11.340. O número não diz muito, mas como Lei Maria da Penha, é reconhecida por 98% dos brasileiros, segundo pesquisas do Instituto Patrícia Galvão e do Data Popular. A Lei, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, completou em agosto 10 anos desde a sua promulgação, mas há pouco a comemorar. Apesar de ser resolutiva na prevenção à violência de gênero e na punição de agressores, enfrenta limitações para sua plena efetivação.
A legislação é uma referência à história de maus-tratos e resistência protagonizada pela farmacêutica cearense Maria da Penha Fernandes, que escapou de duas tentativas de assassinato pelo marido, o professor colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Na primeira vez, sobreviveu aos tiros em um assalto simulado por ele, que, depois, tentou eletrocutá-la. Maria ficou paraplégica em consequência das agressões. Ela denunciou o agressor, que permaneceu impune. O caso tornou-se conhecido no país e repercutiu no exterior. O Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem/Brasil) fez a denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, pois o processo não era julgado havia 12 anos. Viveros foi condenado a oito anos de prisão, no desfecho de um processo que, pela primeira vez, reconheceu como crime a violência doméstica. A entidade juntou-se a outras organizações em um consórcio nacional que elaborou um documento, mais tarde transformado na Lei Maria da Penha.
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA – A advogada Rubia Abs da Cruz, coordenadora do Cladem/Brasil e ex-coordenadora da Themis, Gênero, Justiça e Direitos Humanos, explica que a violência contra a mulher era um padrão sistemático no Brasil, sem resposta”. “Na época, como não foi aceita uma solução amistosa para o caso, os membros da Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendaram uma série de ações, entre elas a elaboração de uma lei específica, capacitação de policiais para atendimento de casos de violência contra a mulher e pagamento de indenização. “Foi uma vitória, resultado de um trabalho de anos. A Lei Maria da Penha reconhece que a violência contra a mulher é uma violação de direitos humanos”, enfatiza Rubia.
A lei inova em alguns aspectos, como a prisão em flagrante do agressor e as medidas protetivas e ação integrada dos poderes públicos, visando a preservar a integridade física e psicológica da vítima. Apesar de a Lei ter se popularizado, Rubia aponta que a violência é algo muito corriqueiro na cultura nacional. “O reconhecimento da violência é um passo importante”, avalia.
A advogada lembra que, logo após a promulgação, muitas instituições negaram a Lei, por desrespeito ao que está escrito, pois muitos juízes fazem uma interpretação individual da legislação. Embora promulgada em 2006, dois anos após, em 2008, a Advocacia Geral da União teve de entrar com uma Ação Direta de Constitucionalidade (ADC), pois muitos juízes acreditavam que a LMP era inconstitucional. Em 2007, o juiz Edilson Rumbesperger Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), por exemplo, qualificou a Maria da Penha de “um conjunto de regras diabólicas”, afirmando que a desgraça humana começou por causa da mulher e que o mundo seria masculino e assim deveria permanecer. Ele foi afastado de suas funções e, em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou pela constitucionalidade da Lei.
Violência doméstica, um padrão sistemático
Vera Daisy Barcellos, jornalista e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Condim), concorda que a LMP é uma lei conhecida, “mas há muito a ser feito até se considerar que foi realmente efetivada”. A Lei determina a necessidade de uma rede de atendimento às mulheres em todos os sentidos, mas não há atendimento para toda a demanda na capital gaúcha, por exemplo.
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Recentemente, conselheiras do Condim fizeram uma visita de monitoramento a duas instituições, a Delegacia da Mulher e o Centro de Referência Vânia Araújo. “Constatamos que é pouca a estrutura para a grandiosidade do problema”, explica Vera Daisy. Um exemplo de que não existe uma política pública completa é a Delegacia da Mulher, no Palácio da Polícia, onde há denúncias na demora no atendimento e falta de espaço adequado para acolhimento, equipamentos precários e falta de pessoal. “A vítima chega numa recepção onde estão outras tantas, sem qualquer privacidade; o acesso da mulher com deficiência é nulo, pois não há sequer uma rampa e a porta da Delegacia não tem abertura para a passagem de cadeira de rodas, além dos banheiros não serem adequados”, descreve. Por conta disso, entidades como o Coletivo Feminino Plural e o grupo Inclusivass entraram com solicitação para investigar as condições de atendimento à mulher junto à Procuradoria dos Direitos Humanos, que acolheu a denúncia e abriu uma investigação.
Rede de apoio sem estrutura ou inadequada
O Brasil é considerado o quinto país em termos de violência contra a mulher. Os casos cresceram 44,74% em 2015, em relação ao ano anterior. Dados divulgados em março pela Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 – indicam que, em 2015, foram registradas 76.651 denúncias, ante 52.957 em 2014. Isso representa um caso de violência a cada sete minutos no ano passado. As ocorrências específicas de violência sexual (estupro, assédio e exploração) saltaram 129%, de 1.517 para 3.478 relatos. No país, foram 9,5 estupros por dia. A maior parte de todos os casos registrados é referente à violência física, 38.451 ocorrências, ou seja, 50,15% do total. Outros casos mais recorrentes foram de violência psicológica: 23.247 (30,33%) e violência moral: 5.556 (7,25%).
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Mais confiança para denunciar
Para a coordenadora do Cladem/Brasil, os casos de violência contra mulheres tornaram-se mais visíveis para a sociedade devido à Lei Maria da Penha, pois as ocorrências eram subnotificadas, ou seja, um número maior de vítimas deixava de denunciar as agressões. “As mulheres voltaram a ter confiança e passaram a denunciar, pois estão acontecendo prisões, são dados os flagrantes, o agressor tem que ser mantido afastado. Estamos falando de uma lei resolutiva”, destaca Rubia da Cruz. Antes, argumenta, a mulher poderia desistir da denúncia. “Mas agora, quando há lesão corporal, não é possível a desistência, porque vira uma ação pública incondicionada.” Em 2013, entrou em vigor a Lei de Notificação Compulsória: estabelecimentos públicos e privados devem notificar casos de violência contra a mulher. “Infelizmente, há muito pouca notificação.”
Carmen Hein de Campos, advogada, professora do mestrado de Segurança Pública da Universidade de Vila Velha, e coordenadora do Cladem de 2009 a 2011, comenta que, até o advento da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher era banalizada, tanto no meio jurídico quanto social. “Por isso, nestes 10 anos, temos muito o que comemorar, também porque ela trouxe uma discussão pública de maneira mais profunda e séria.”
Pesquisa de 2015 da Fundação Perseu Abramo aponta que 80% dos homens reconhecem que existe violência, mas consideram errado bater em mulher. “Essa noção, no imaginário, de que é errado bater em mulher é positiva, embora a prática permaneça.” Ela avalia que somente a lei não tem capacidade de mudar o comportamento social, nem proteger todas as mulheres. “A Maria da Penha, que já traz a questão da prevenção, deve estar acompanhada de uma campanha educacional para mudar uma cultura de violência”, argumenta.
Os Centros de Referência já existiam antes da LMP – para dar amparo e apoio psicológico, sem julgar o comportamento de quem necessita deles. “Isso faz toda a diferença”, explica a jornalista Vera Daisy. “As mulheres precisam de uma rede de apoio que seja efetiva, mas muitos locais se viram como podem. A lei, que precisa de todo um aparato de rede, se torna refém da vontade política de governos.” Ela cita que a maior parte dos casos de violência contra a mulher se dá no final da tarde, no início da noite e em finais de semana. “Como entender que um Centro de Referência para atendimento desses casos funcione somente de segunda a sexta-feira, encerrando o expediente no final da tarde?”, questiona a presidenta do Condim.