Foto: Igor Sperotto
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“A nossa democracia ainda é muito pouco democrática”. A afirmação do professor de Filosofia da Unicamp, Marcos Nobre, sustenta um debate que está no centro da deposição de mais um presidente – no caso, presidenta – eleito democraticamente no país e que não consegue terminar seu mandato. Afinal, qual o valor que o brasileiro dá para a democracia?
Apesar de paradoxal, a expressão de Nobre está longe de ser fictícia. A consultoria britânica Economist Intelligence Unit (EIU) produz um índice que classifica os países de acordo com a qualidade da sua democracia. O ranking coloca o Brasil como o 44º país mais democrático entre 167 nações analisadas, atrás de Uruguai (17º) e África do Sul (30º) – Noruega é o mais democrático.
O Brasil está no grupo das “democracias imperfeitas”, isto é, países em que há eleições livres e justas e onde as liberdades civis básicas são respeitadas (como liberdade de expressão e religiosa). Mas, também, onde costuma haver problemas de governança (como corrupção e pouca transparência em órgãos públicos) e baixos níveis de participação política.
“Uma coisa é falar de instituições formais da democracia, um Judiciário relativamente independente, direito ao voto, essas coisas. Mas democracia não é só isso. Necessita de participação, do interesse público. E, nesse aspecto, estamos de fato muito atrasados”, ressalta Nobre.
O professor Francisco Marshall, do Programa de Pós-graduação em História da Ufrgs, salienta que os dois conceitos fundamentais da democracia construídos historicamente são pouco, ou nada, considerados no Brasil: desejo de participar, de acompanhar o processo político, e noção de que todos são beneficiários do regime.
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“O eleitor médio, no Brasil, não se guia por esse cálculo de que é necessário controlar, analisar e fiscalizar o sistema político, para que ele cumpra seus objetivos de inclusão, de estender a mão para quem não tem nada. Há um despreparo intelectual muito grande. Nesse sentido, somos em geral perfeitamente manipuláveis”, constata.
Marshall sustenta ainda que o sistema de dominação política no Brasil gerou uma espécie de mentalidade colonial no brasileiro médio, que pode ser traduzida pela alienação política em termos de participação. Como se a democracia fosse vista como uma ameaça ao status quo, um risco de mudança social (seja qual for) desprezado pelos estratos sociais médios.
“Nessa estratégia centenária de dominação das oligarquias brasileiras, a democracia virou sinônimo de desordem e também de prejuízo ao funcionamento normal das instituições, numa clara tentativa de preservação do poder”, argumenta.
Nem tradição, nem estabilidade, nem igualdade
No levantamento da Economist Intelligence Unit há 24 democracias com notas superior a 8 (o Brasil teve nota 7,38 em 2014, último ranking disponível) e, por isso, consideradas “completas” pela consultoria, onde os níveis de participação e controle social das instituições – não apenas do Parlamento, mas do Judiciário, dos governos e também da mídia – são elevados. Coisa de países com tradição de participação popular e onde os índices de desigualdade econômica são menores.
“Democracia é aprendizado. Nenhuma nação constrói um ambiente de estabilidade política e de respeito ao outro, que formam o escopo democrático tradicional, sem igualdade social. Infelizmente não temos essa tradição, nem de estabilidade, nem de igualdade”, destaca o professor Benedito Tadeu César, coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência Política da Ufrgs.
A desigualdade social, por exemplo, faz com que o brasileiro médio tenha uma baixa capacidade de interpretar o que lê. Nesse sentido, parece fácil construir um contexto de caos político e econômico descolado da realidade para se justificar uma ruptura institucional. Benedito cita a Alemanha pré-nazista dos anos de 1930, onde uma grave crise econômica mundial propiciou o aparecimento de uma liderança nacionalista e selvagem que resultou na Segunda Guerra Mundial.
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“No Brasil a crise foi fabricada por uma elite truculenta e tosca, da qual faz parte um sistema judiciário que tem resquícios do século 19. Na democracia não há problema em combater um governo eleito democraticamente. Mas tem que ser dentro das regras. Essa é a grande conquista democrática. Aqui, infelizmente, vivemos de golpe em golpe”, analisa.
O filósofo Marcos Nobre, da Unicamp, explica melhor seu conceito de “democracia pouco democrática” que se observa no país: a transição da ditadura militar, a partir de 1985, para um regime parlamentar estável que só seria referendado pela Constituinte de 1988 e pelas eleições do ano seguinte foi “lenta e conservadora”, o que resultou na ideia de que era necessário ceder para evitar confrontos.
“O confronto aberto está na raiz da democracia. Mas no Brasil ocorreu o contrário: para evitar conflitos, discussões, debates, as decisões passaram a ser tomadas em acordos de gabinetes sem que a população se envolva nos atos que mudarão sua vida cotidiana”, salienta Nobre. Coisas de uma nação acostumada a ser sacudida, periodicamente, por golpes de Estado ou arranjos que começaram ainda na transição da Monarquia para a República.
Nobre cita questões como a autorização dos casamentos homoafetivos como relevantes para compreender o desprezo das instituições pelo processo democrático. “Em vez de ser motivo de campanhas, de debates, de consulta popular, a legalização se deu por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Por 11 ministros”, lamenta.
O filósofo diz que uma lei não vai mudar a opinião das pessoas sobre um tema dessa importância. “Isso depende de uma parte da sociedade tentar convencer o todo de que direitos iguais são uma forma de convivência superior a todas as outras. E isso faz da democracia também uma forma superior a todas as outras”.
Controle da mídia sem ferir liberdade
O cientista político Benedito Tadeu César, da Ufrgs, acredita que o primeiro passo para construir um sistema democrático equilibrado e participativo no Brasil é uma reforma da mídia. “Não tem solução perfeita, mas no mundo todo há formas de controle da opinião pública que não ferem a liberdade de imprensa”, opina.
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Pessimista, Benedito diz que a cidadania brasileira “está à deriva”. E que as instituições capazes de reestruturar o país, como o Judiciário e o Parlamento, foram paulatinamente sendo destruídas pela onda conservadora. “Trocamos os militares de 1964 pelos juízes e promotores de 2016”, ironiza.
“Num país tão desigual como o Brasil, qualquer conquista, por menor que seja, tende a ser vista como um privilégio. Então, os setores médios passaram a reagir à ameaça de invasão do seu espaço pelas camadas mais baixas a partir das políticas inclusivas dos últimos governos. É a velha luta de classes, que os analistas conservadores tendem a ridicularizar, que está de volta”, conclui.
Francisco Marshall, por sua vez, aposta no “combate à ignorância” como forma mais eficaz de superar o descaso brasileiro com as normas democráticas. “Quando o [Leonel] Brizola mencionava nos anos de 1990 uma certa teoria conspiratória para manter o povo brasileiro na ignorância, todo mundo ria e achava aquilo absurdo. Parece que o homem estava certo”, ironiza Marshall.
Na América Latina, Brasil só supera Guatemala em apoio à democracia
O apoio à democracia na América Latina caiu para um nível histórico, segundo pesquisa publicada em setembro pela Corporación Latino barómetro. E o Brasil é o país onde mais se verifica essa tendência – o índice caiu de 54% para 32% em apenas um ano.
A atual análise foi resultado de uma sondagem realizada com 20 mil pessoas em 18 países da América Latina. O resultado: desde 2010, o índice de apoio à democracia na região caiu de 61% para 54%.
Desde 1995 a organização não governamental apoiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) avalia anualmente o apoio dos latino-americanos à democracia como forma de governo. Somente na Guatemala – onde, em 2015, o presidente Otto Pérez Molina teve que renunciar por causa de acusações de corrupção – o índice de apoio à democracia é menor que no Brasil: 30%.
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As consequências da situação no Brasil são graves. “O Brasil não é somente o maior e mais poderoso, mas também o único país da América Latina que está lado a lado com as potências mundiais ” diz o estudo. Por isso, o estado da democracia brasileira tem fundamental importância para toda a América Latina. No Chile, Uruguai, Nicarágua e El Salvador o apoio à democracia também caiu.
Ainda segundo o estudo, o aumento da indiferença política na região é particularmente preocupante. Do total de entrevistados, 23% não se importam se o governo foi eleito democraticamente ou não. Em 2010, esse índice era de somente 16%.”A perda de confiança se manifesta num momento em que as perspectivas sombrias para a região se misturam com as altas exigências dos cidadãos em relação aos seus representantes no governo”, afirma o levantamento.
Perspectivas econômicas negativas não são fatores decisivos para a crescente desilusão com a democracia, segundo o estudo. Durante a crise mundial de 2008 e 2009, o índice de aprovação do regime alcançou, respectivamente, 57% e 59%. Um ano depois, em 2010, ele chegou a 61%.
A ONG sugere que a queda de confiança se deve aos casos de corrupção. “A sociedade mudou e o que ainda era tolerado há cinco anos não é mais aceitável. As pessoas exigem soluções concretas que precisam ser implementadas imediatamente contra problemas também concretos. Elas não estão mais dispostas a esperar para depois”, detecta o documento.
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