CPI da Funai/Incra mostra um legislativo machista, preconceituoso e violento
Foto: Cleia Viana / Câmara dos Deputados
A conclusão da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), criada na Câmara Federal para apurar atos da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está marcada para a próxima terça-feira (23/5). O trabalho foi interrompido nesta quarta-feira (17/5), em plena confusão do flagrante das malas de dinheiro e das mesadas repassadas para livrar incriminados de corrupção e estancar investigações que abalaram o governo Michel Temer e aliados. Vigiados por seguranças, os deputados guardaram o relatório de 3.385 páginas, que indicia 90 pessoas, incluindo o que eles identificaram como falsos índios. As lideranças indígenas não puderam assistir a sessão. Ficaram do lado de fora do prédio, segurando uma simbólica faixa, onde se lia: “CPI da Funai. De ruralistas para ruralistas”.
Originada por requerimento de deputados da bancada do agronegócio na Câmara Federal, oficialmente foram duas CPIs da Funai/Incra, que se desenrolaram em um total de 500 dias, com início em 2015. Sua primeira fase foi encerrada sem sequer produzir um relatório conclusivo. Nesta quarta-feira, os parlamentares aprovaram o texto principal, mas com destaques a serem votados na semana que vem. O documento tem 14 indiciados no Rio Grande do Sul. Entre eles, agricultores familiares, uma antropóloga, três procuradores federais e um missionário.
A antropóloga gaúcha é Flávia Cristina de Mello, que realizou estudos de identificação e delimitação da Terra Indígena Mato Preto – que tem portaria declaratória expedida pelo Ministério da Justiça desde 2012, mas não foi regularizada por sofrer fortes pressões por interesse do agronegócio. A área localiza-se nos municípios de Erechim, Erebango e Getúlio Vargas. Flávia foi selecionada para fazer esse trabalho por meio de edital público em convênio entre a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) e Funai. Ela foi uma das primeiras pessoas a serem convocadas pela CPI, prestando depoimento em audiência pública realizada em dezembro de 2015. Embora existam exemplos numerosos de situações esdrúxulas no desenrolar de toda a comissão parlamentar d e inquérito, essa foi uma sessão ímpar.
Flávia foi submetida a questionamentos como: “A senhora frequentava semanalmente a casa de (…) fazendo aulas de guarani com um de seus filhos (…), professor da escola indígena. Qual o seu vínculo com ele? Existe algum tipo de relacionamento da senhora com ele? (…) A senhora teve algum relacionamento amoroso?”. Ao que o plenário da CPI se manifestou com fortes exclamações, de deputados e deputadas indignados com a abordagem.
“Considero sim que os deputados agiram desta forma por eu ser mulher”, afirma a antropóloga ao Extra Classe. “Eles desrespeitaram meu trabalho científico, como se o fato de eu ser mulher me desqualificasse para aquela função, como se fosse um demérito eu estar ali naquela função, e não tivesse formação profissional, não tivesse competência técnica”. Ela ressalta que outras antropólogas constaram da CPI e considera que a misoginia possa ser um dos motivos.
Foto: Cleia Viana / Câmara dos Deputados
“De fato, a CPI não produziu um relatório, mas um libelo comprometido com a perseguição, criminalização e intimidação das pessoas e instituições que lutam em defesa da reforma agrária e da demarcação de terras indígenas e quilombolas”, disse o deputado Nilto Tatto (PT/SP), repetindo uma das frases que fazem parte do Voto em Separado e Relatório Paralelo que foi apresentado à Comissão Parlamentar de Inquérito, em 10 de maio, por parlamentares que se autodenominam “do campo popular e democrático” na Câmara Federal.
Neste documento, os deputados listam informações relevantes que deveriam ter feito parte das investigações da CPI, mas foram deixadas de lado. “No relatório não consta uma linha sobre as operações que a Polícia Federal e o Ministério Público Federal estão investigando, como a Operação Terra Prometida, que investiga a existência de uma organização criminosa que comprou lotes da reforma agrária no Projeto de Assentamento Itanhangá, no município de Tapurah (MT). Foram cumpridos 52 mandados de prisão preventiva, 146 mandados de busca e apreensão e 29 medidas proibitivas (…)”, ressalta o texto que também cita outras operações que investigam crimes como grilagem de terras públicas e ainda o “Leilão da Resistência”, organizado por instituições do agronegócio para financiar a contratação de milicias armadas para proteção de fazendas, em áreas reivindicadas como territórios indígenas.
Oposição vota em separado contra engavetamento de investigações
O Voto em Separado dos parlamentares de oposição protesta contra o engavetamento de requerimentos apresentados por deputados que representam os interesses populares, e ressalta a necessidade de investigação dos grandes devedores da União, “que rotineiramente ameaçam os assentados, os quilombolas e os povos indígenas”. Ainda é citado que a CPI custou R$ 132 mil em viagens de deputados que acabaram provocando mais conflitos nos estados. E enfatiza que 2016 foi o mais violento para os povos do campo, desde 2003, com 61 lideranças e trabalhadores rurais assassinados e outros 200 ameaçados de morte. Com continuidade em 2017, como o massacre de Colniza, em Mato Grosso, e o ataque aos índios Gamela, no Maranhão, em que um dos índios teve a mão decepada.
Diante desse quadro de horror e ameaças em todos os estados brasileiros, os parlamentares da oposição enfatizam o alvo da CPI: “Neste relatório, estão contidos os pedidos de indiciamento – diga-se, de forma ilegal – de mais de 100 pessoas, entre elas 31 indígenas, 5 indigenistas, 9 antropólogos, 14 religiosos católicos, 3 professores universitários, 3 agricultores assentados e 37 servidores e ex-servidores públicos e ainda 16 Procuradores Federais da República e 3 Advogados da União. E pretendem também extinguir a Funai”.
Entre os indiciados no Rio Grande do Sul estão Joel Kuaray Pereira, do assentamento Mato Preto em Getúlio Vargas. Jonatas Inácio, do acampamento Mato Castelhano em Mato Castelhano, Isaias Rosa Kaigo, acampamento Mato do Meio em Gentil, Antonio Donato, Dorvalino Fortes, Batista de Oliveira, acampamento Kandóia de Faxinalzinho, Ireni Franco e Leonir Franco, acampamento Passo Grande da Forquilha, em Sananduva. Flávia Cristina de Melo, antropóloga. Flávio Chiarelli Vicente de Azevedo, Guilherme Mazzoleni e Ricardo Gralha Massia, procuradores federais.
Entre os índios indiciados está o cacique Babau, tupinambá da Bahia. Ele foi considerado negro pelos deputados, por causa dos traços, cor da pele e cabelos. “Eu não engulo esse preconceito racista desses caras. São uns babacas. Quando eles casam com uma alemã e tem filhos, o filho deles não deixa de ser brasileiro. Ao contrário, tem dupla nacionalidade. Eles querem negar os nossos direitos. Se nós estivéssemos reivindicando um quilombo, iam dizer que a gente é índio, mas como reivindicamos aldeias, dizem que somos negros. E afinal, negro ou índio… não tem o mesmo direito ao seu território??? Nasci e cresci na aldeia. Somos nação Tupinambá, somos nação Kaingang. Ninguém deixa de ser índio por dirigir carro ou usar roupa e celular. Temos cultura própria, língua própria, crença própria. Eles são racistas”.