Foto: Igor Sperotto Foto: Igor Sperotto
O que o ator José Mayer, o cantor Victor Chaves, o senador Lasier Martins e o médico Marcos Härter, participante do programa Big Brother Brasil, têm em comum? Além de serem celebridades e suas imagens estarem nos meios de comunicação, em uma mesma semana eles viraram notícia, no início de abril de 2017, por acusações de assédio sexual e violência contra mulheres. Foram alvo de piadas e comentários, a favor ou contra suas atitudes, nas redes sociais, como se assédio e violência fossem mais um assunto de novela, e não estivessem diretamente relacionados ao assassinato de mulheres por serem mulheres, o chamado feminicídio. No Brasil, a taxa é de 4,8 para 100 mil mulheres assassinadas – a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) –, mas, para boa parte da população, que diminuiu a importância das denúncias contra as celebridades, ou se divertiu com elas, esse número é só mais uma estatística. Até atingir alguma mulher próxima.
O conservadorismo e os retrocessos atingiram a política, e as mulheres que já eram poucas perderam cargos de decisão em secretarias e ministérios. Na Educação, o debate sobre gênero nas escolas foi questionado (veja nesta reportagem). Na internet, novos sites e blogs feministas passaram a se contrapor à mídia tradicional em que, apesar dos protestos, o corpo das mulheres continua a ser usado para vender produtos, assim como a violência contra mulheres, em noticiários e programas de entretenimento, é pretexto para aumentar a audiência.
Desde 2016, o que se viu foi um efeito dominó: no país em que Dilma Rousseff foi eleita a primeira mulher presidente, e era chamada de vadia em campanhas difamatórias, a misoginia (ódio às mulheres) se confundiu com a política. Após a deposição da presidente por um golpe de impeachment, uma das primeiras ações do novo governo foi acabar com o status da Secretaria de Políticas para as Mulheres, criada em 2003 como resultado da luta de anos dos movimentos de mulheres e feministas. E dali em diante, por tabela, nos níveis municipal e estadual, seguiram-se desmontes de secretarias e programas que tinham como prioridade eliminar as discriminações de gênero e assegurar direitos, como a participação em espaços de poder e decisão, a saúde integral, direitos sexuais e reprodutivos, geração de emprego e renda.
“Há um discurso público de que a violência contra mulheres não deve ser aceita. Mas, por estar tão enraizada na sociedade, as pessoas não reconhecem essa violência e a mulher ainda é culpabilizada, como se fosse responsável por ter provocado a agressão. No momento em que se criam políticas públicas de enfrentamento, se demonstra para a sociedade que há um problema e se cria espaço para as mulheres refletirem sobre esses processos”, observa a advogada e antropóloga Renata Jardim, coordenadora técnica do Centro de Referência às Mulheres Vítimas de Violência (CRM) Patrícia Esber, de Canoas.
Sem políticas públicas fortalecidas, há o risco de acirrar os feminicídios e a violência em geral. “Muitos governos alardeiam que defendem as mulheres, mas isso nada significa se não houver um orçamento que concretize a disposição em enfrentar a violência”, enfatiza também a advogada Renata Gonzatti, que trabalhou como consultora de políticas públicas do governo federal. Exemplifica: em 2016, o governo federal destinou ao Atendimento às Mulheres em Situação de Violência, para todos os municípios do Brasil, R$ 56.486.118, valor que, em 2017, foi drasticamente reduzido para R$ 14.673.853. “A redução de recursos impacta diretamente as ações implementadas”, conclui.
Ocupar para dar visibilidade
O resultado mais visível da insuficiência de políticas públicas ocorre na Ocupação Mulheres Mirabal, em Porto Alegre (RS), que acolhe mulheres que sofrem violência doméstica. Desde 25 de novembro de 2016, a casa no centro da cidade, que estava vazia há mais de ano, foi ocupada em uma ação do Movimento Olga Benário. “A ocupação é um método de luta para mostrar que a rede que devia atender as mulheres que sofrem violência não funciona”, explica Priscila Voigt, uma das coordaenadoras do Movimento Olga Benário e da Ocupação Mirabal.
No local antes funcionou o Lar Dom Bosco, mantido pela Inspetoria Salesiana Pio X. Em 15 de março de 2017, a 20ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça decidiu pela reintegração de posse do prédio para a Inspetoria em um prazo de 30 dias. A decisão foi publicada no Diário da Justiça Eletrônico em 20 de abril de 2017. A Ocupação Mirabal vai entrar com recurso. Paralelamente, negocia com a Prefeitura outro lugar para alojar as mulheres.
É fato. “Em Porto Alegre, temos serviços precarizados, que não funcionam de acordo com a legislação e normas técnicas”, admite a psicóloga Maria Luisa Pereira de Oliveira, especialista em violência doméstica, mestra em Saúde Coletiva e conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (Comdim – POA). Segundo Maria Luisa, a situação se complicou ainda mais quando a Secretaria Adjunta da Mulher (SAM) no município perdeu o pouco orçamento que tinha. “Para 2017 estamos com orçamento contingenciado”, informou a Assessoria de Comunicação da Prefeitura de Porto Alegre.
“Uma rede de enfrentamento implementada significa ter um conjunto de serviços e programas de diferentes políticas: justiça, segurança, saúde, educação, assistência social, funcionando de maneira articulada, com acesso facilitado e preparados para acolher as mulheres em situação de violência. Por isso, é fundamental o Plano Municipal de Políticas para Mulheres”, defende Maria Luisa. Assim como é importante que as políticas, programas e ações considerem as especificidades das mulheres negras, com deficiência, de diferentes orientações sexuais, de outras etnias. Uma estratégia é ocupar e reinventar espaços de controle social e decisão política. O Comdim – POA foi um dos primeiros conselhos de direitos das mulheres a se constituir no Brasil. “Nasceu para formular diretrizes e promover políticas em todos os níveis da administração pública; contudo, carece de estrutura mínima, como sede e orçamento”, informa Maria Luisa.
Plataforma Digital vai permitir melhorar estratégias e políticas
Apesar das ameaças e perdas de conquistas, alguns programas já implantados trabalham para melhorar o planejamento de políticas de combate à violência. O Centro de Referência às Mulheres Vítimas de Violência (CRM) Patrícia Esber de Canoas, na região Metropolitana, lançou em 2016 a primeira fase da Plataforma Digital Patrícia Esber, serviço inédito no estado que permite compartilhar com integrantes da rede de atendimento e proteção dados de casos atendidos, e assim ampliar estratégias integradas de segurança. O projeto é executado pelo Coletivo Feminino Plural com apoio da Vara de Execuções Penais, Canoastec e Coordenadoria de Políticas para Mulheres de Canoas.
Foto: Igor Sperotto
São atendidas ali 180 mulheres por mês, em média, sendo em torno de 50 novos casos. O nome é uma homenagem à moradora de Canoas assassinada pelo marido quando tentou romper a relação. “No Brasil existem cerca de 238 Centros de Atendimento às Mulheres, o que é pouco, considerando que são mais de 5 mil municípios e muitos não têm serviços especializados”, informa a coordenadora Renata Jardim. Com uma equipe multidisciplinar, os centros são responsáveis por articular a rede, acompanhar e encaminhar mulheres para os demais serviços, dar suporte e monitorar para superarem a situação de violência.
A difícil tarefa de ajudar a reconstruir vidas
Na Ocupação Mirabal, as mulheres em vulnerabilidade social podem passar uma noite, dias ou semanas, dependendo do tempo necessário para se reorganizarem, explica Priscila. O número de mulheres que vive no local não é divulgado, por segurança. Algumas são encaminhadas pela Delegacia da Mulher ou pela Defensoria Pública. Na casa, funcionam comissões de acolhimento e apoio formadas por integrantes do Movimento Olga Benário e por voluntárias de Psicologia, Medicina, Direito e Assistência Social. O espaço oferece cursos de capacitação e geração de renda.
Quem ajuda, é fortalecida, diz Claudia Moraes, que foi despejada com os três filhos e uma filha do bairro Rubem Berta. Convidada a colaborar, hoje é uma das coordenadoras na Ocupação. Voltou a estudar, e afirma: “Aqui, a gente é a família Mirabal”. O espaço recebe doações e abriga outros movimentos e eventos, como a conferência livre de saúde das mulheres e “A cidade que queremos”. O nome da ocupação lembra as irmãs Patria, Minerva e Antonia Mirabal, que lutaram contra a ditadura do presidente Rafael Trujillo, da República Dominicana, e foram assassinadas em 25 de novembro de 1960. Em 1999, a ONU definiu a data como o Dia Internacional da não Violência contra a Mulher.
MEC suprimiu “orientação sexual” e “gênero” da base curricular
A prevenção à violência passa pela educação. E a escola também é um espaço de violência de gênero. Daí a necessidade de discutir o tema em aula. No entanto, em abril deste ano, o Ministério da Educação retirou do documento da Base Nacional Comum Curricular entregue ao Conselho Nacional de Educação trechos que falavam do respeito à “orientação sexual” e identidade de “gênero”, atendendo a demandas de setores conservadores do Congresso Nacional e movimentos como a Escola sem Partido que cresceram no governo pós-impeachment. Paralelamente, aumentaram as ações de pais e mães para impedir que professores e professoras falem em aula sobre gênero e respeito às diferenças.
“Ações e notificações extrajudiciais não têm validade jurídica, assim como são inconstitucionais as leis municipais para proibir o debate”, esclarece Ingrid Leão, do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), que participa do projeto Educação e Gênero. Há um constrangimento que atinge professores e o currículo escolar, observa. Ingrid explica que ninguém pode ser criminalizado por falar de gênero com estudantes. E mais do que nunca é importante abordar o tema. “A Lei Maria da Penha prevê, como medida preventiva, discutir políticas de direitos humanos nas escolas”, diz.
A questão chegou à Organização das Nações Unidas, que encaminhou ao governo de Michel Temer um alerta sobre riscos de censura e violação a direitos ao proibir o debate em escolas sobre gênero, religião e sexualidade. Em março de 2017, uma Nota Técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão também afirmou: o Estado deve ter programas de educação e treinamento para “eliminar atitudes ou comportamentos preconceituosos ou discriminatórios relacionados à ideia de inferioridade ou superioridade de qualquer orientação sexual, identidade ou expressão de gênero”.
Para a professora e consultora da Unesco Mônica Waldhelm, os professores não podem perder a chance de contribuir para que se concretize o papel da escola como locus social onde se espera que as aprendizagens se efetivem de modo intencional, planejado e para tod@s. “Aprendizagens que incluem reconhecimento, respeito e valorização da singularidade humana”, salienta. Mônica é uma das autoras do livro de Ciências do Projeto Apoema, aprovado pelo Plano Nacional do Livro Didático para uso em redes privada e pública, que virou notícia após o protesto de um grupo de pais de Ji-Paraná (RO). Eles consideraram as ilustrações de órgãos genitais “conteúdos de educação sexual impróprios”. Mônica sugere: “É preciso aproximar-se das famílias e de demais setores da comunidade escolar e sociedade, identificar as concepções do papel da escola e, se houver reducionismo ou crenças que limitam o trabalho em prol da diversidade, não fugir do embate. É hora de fazer parcerias, de reconhecer a dificuldade do outro – e nossa – em romper com visões de mundo cristalizadas historicamente”.
Saiba mais:
O Projeto Gênero e Educação disponibiliza material para o debate de igualdade de gênero nas escolas. Acesse em http://generoeeducacao.org.br/
Entenda como a mídia contribui para a violência contra mulheres em Ideias e Experiências: www.claraglock.blogspot.com