O sonho de Ceco e as lições que deixou
Foto: Clarinha Glock
Ceco morreu. A notícia se espalhou pelas ruas de Porto Alegre e segue correndo boca a boca, como se não houvesse golpe, Lava Jato, reformas para tirar direitos. Porque nas ruas onde Ceco vivia, o tempo é outro. Ceco, ou Nego, como a mãe o chamava José Nedir Malta Ramires, tinha 36 anos e um grande sorriso sempre aberto na hora de vender o jornal Boca de Rua nos bares, em esquinas, em eventos. Ele, que sabia cantar rap, que gostava de ler, que falava criticamente, e com profundidade, sobre os “gravatinhas” que não sabiam como era humilhante e injusto ser barrado nos lugares pela aparência ou pela condição econômica. Ceco, cuja morte seria mais uma, não fosse por um detalhe: morador de rua e de casas, ele transitou por todos os lados e deixou marcas em textos, fotos, vídeos, canções, além de filhos que têm o seu sorriso.
Ceco fez diferença: contou para as pessoas, através da música e do jornal, como era sofrer preconceito, perder amigos pela violência, conviver com a dureza da fome e do frio nas ruas. “A única coisa que meu coração de mãe me diz é que ele agora vai descansar, não vai passar mais necessidades. E que deixou saudades”, falou Vera, a mãe que o buscava de volta para casa sempre.
Foi embaixo de uma ponte, para onde tinha ido, seguindo o caminho do irmão mais velho, que Ceco se apresentou pela primeira vez para a equipe do jornal Boca de Rua, um jornal diferente, em que quem decide o que é pauta e escreve, faz fotos e ilustra as páginas é quem vive a notícia – no caso, as pessoas em situação de rua de Porto Alegre. As “vozes de uma gente invisível”, como eles e elas se descreveram no início do milênio de 2000 quando o jornal começou, viraram uma referência de comunicação alternativa no Brasil e na Rede Internacional de Publicações de Rua. Sempre sob a supervisão da ONG Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação (ALICE), aquela em que o “i” da sigla foi inicialmente INFÂNCIA, o jornal Boca de Rua continua seu trabalho sem interrupções desde então, promovendo cidadania e inclusão.
Ceco já estava no jornal quando chorou a morte do irmão mais velho, o Maltinha, 16 anos, de quem contraiu o vírus HIV na época em que compartilhava seringas. Engajou-se no Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa), e mostrou talento como rapper ativista no grupo Realidade de Rua no projeto Saúde. Cantou com garra o Rap de outro amigo da rua que morreu, o Mercedez, que virou hino do grupo. Ceco era multimídia muito antes da era dos “telefones inteligentes” (smartphones). Viajou com o Gapa para falar da experiência de rua, de rapper, de dificuldade de ser autêntico e feliz, independentemente de dinheiro, de status, de posses, de casa. Em seu currículo consta que foi capataz da Cooperativa de Trabalhadores Autônomos das Vilas de Porto Alegre (Cootravipa), depois teve outro emprego de carteira assinada. Mas para o povo da rua, aquele que conviveu com Ceco até sua morte com meningite no hospital, em 25 de maio de 2017, Ceco foi um exemplo de perseverança.
Reprodução do Jornal Extra Classe | Foto: Tânia Meinerz
Em agosto de 2005, entrevistado pelo jornal Extra Classe para uma edição especial dedicada à Jornada de Literatura de Passo Fundo, falou de um sonho. Leitor de livros resgatados das lixeiras e das doações alheias, tinha acabado de ler Dom Quixote, de Cervantes, que havia pedido emprestado. Sobre o livro, escreveu para o jornal: “…se temos um sonho, não devemos desistir dele nunca, por mais difícil que seja, porque a vida é seguida de sonhos e, se não temos algum sonho, não vivemos corretamente. Porque sempre sonhamos um mundo melhor para todos, sonhamos às vezes sonhos que achamos impossíveis que, quando você esquece, torna-se real”.
Mais do que um obituário, este texto é um agradecimento a Ceco, por ter se deixado conhecer através do jornal Boca de Rua e da música do Realidade de Rua. E, através dele, uma homenagem às pessoas segredadas por estarem fora dos parâmetros econômicos, sociais e morais até, e que ensinam diariamente como há muito a aprender com realidades diversas, doídas, alegres, controversas, riquíssimas em experiências e cores. A morte de Ceco acontece em meio a gritantes denúncias de violações dos direitos das populações de rua em Porto Alegre e em outras capitais do Brasil, com remoções forçadas, agressões, assassinatos não esclarecidos, fechamento de centros de saúde e atendimento, políticas de esvaziamento e precarização dos poucos serviços de apoio. Como legado, Ceco deixa também a luta para denunciar e provocar mudanças.
Vídeos do Ceco cantando com o Realidade de Rua:
https://www.youtube.com/watch?v=u5ZqjSQ7u3Y
https://www.youtube.com/watch?v=tZdmecEO11A