MOVIMENTO

Tiro no pé

Por Priscila Lobregatte / Publicado em 9 de junho de 2017

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Cartazes com advertência foram espalhados pelo Centro Histórico de Porto Alegre no início de maio

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O porte de armas por civis despreparados e assustados com a violência e que agem sem pensar, no afã de se “proteger de bandidos” e “defender o patrimônio”, segue produzindo vítimas inocentes. No Brasil, a cada 9 minutos ocorre uma morte violenta com o emprego de arma de fogo. Os defensores do fim da política de desarmamento atendem a um discurso alimentado por parlamentares da Bancada da Bala, que legislam de acordo com os interesses das indústrias de armas, e reforçado pelo fracasso das políticas de segurança pública.

Na manhã do domingo, 23 de abril do ano 2000, Carol Santos enfrentou o pior momento da sua vida. Inconformado com o fim da relação, seu ex-namorado, de 15 anos, entrou armado na casa da jovem, em Viamão, com um revólver calibre 38, disparou contra ela, matou seu namorado e depois se matou. “Se ele cometeu essa tragédia, foi porque havia uma arma, um facilitador”, conclui Carol, que na época do crime tinha 17 anos. Ela ficou paraplégica devido ao disparo que a atingiu. Hoje, é militante do grupo Inclusivass.

No réveillon de 2001, Vitória Bernardes, então com 16 anos, foi atingida por uma bala perdida disparada durante um assalto que ocorreu próximo ao telefone público que ela utilizava em Novo Hamburgo. “As armas de fogo têm sua origem legal. Ao buscar essa ‘proteção’, um cidadão pode estar contribuindo para alimentar um mercado ilegal”, alerta Vitória, que ficou tetraplégica após o ferimento. “É preciso questionar sobre os valores que se está disseminando quando se defende o uso de armas”, completa. Vitória é psicóloga e, além do Inclusivass, integra a Rede Desarma Brasil, do Grupo de Trabalho sobre Controle de Armas do Ministério da Justiça.

As histórias de Carol e Vitória dizem muito sobre as consequências de uma cultura que associa o porte de armas por civis à ideia de proteção pessoal e do patrimônio. Não são casos isolados.

Foto: Telia Negrao/ Divulgação

Para Carol, que foi ferida com um tiro quando tinha 17 anos e perdeu o movimento das pernas, a posse da arma potencializa a violência de pessoas agressivas

Foto: Telia Negrao/ Divulgação

Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2016, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que em 2015 houve 58.467 mortes violentas intencionais: homicídios dolosos, latrocínios, lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais. Ou seja, a cada 9 minutos, uma pessoa perdeu a vida de forma violenta.

Este cenário tem relação direta com o porte de armas de fogo. De acordo com o Mapa da Violência 2016, mais de 70% dos homicídios ocorridos no ano de 2014 foram cometidos com armas de fogo, totalizando mais de 42 mil mortes. Estima-se que haja 8,5 milhões de armas ilegais em circulação e outras 6,8 milhões registradas no país. Desse total de mais de 15 milhões de armas, 3,8 milhões estariam nas mãos de criminosos, segundo dados do Mapa da Violência.

Pode parecer inverossímil, mas conforme pesquisadores, a situação já foi bem pior. Segundo Robert Muggah, do Instituto Igarapé, e Daniel Cerqueira, ex-diretor da Diretoria de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Ipea, em artigo publicado no site da revista Carta Capital, “o número de homicídios, que cresceu 8,4% a cada ano entre 1980 e 2003, pela primeira vez sofreu uma redução nos anos posteriores ao Estatuto do Desarmamento. Na média, entre 2004 e 2013 o número de vítimas aumentou num ritmo bem inferior ao que vinha acontecendo anteriormente, de 0,5% a cada ano”. Os autores completam: “estudo de pesquisadores do Iesp/Uerj e do Ipea apresentou evidências de que se o Estatuto do Desarmamento não tivesse sido implementado, cerca de 121 mil pessoas teriam morrido a mais entre 2004 e 2014”.

A percepção da maioria da população vai ao encontro desses números. Pesquisa encomendada pelo FBSP ao DataFolha, divulgada em maio deste ano, mostra que 78% dos brasileiros acreditam que o aumento no número de armas de fogo aumenta o número de mortes.

Soluções simplificadoras
O discurso em defesa da liberação do porte de arma voltou à tona com força a partir do final de 2015, quando foi aprovado, por comissão especial da Câmara, projeto de lei criando o Estatuto de Controle de Armas de Fogo, um substitutivo do relator, deputado Laudivio Carvalho (PMDB-MG), ao Projeto de Lei 3722/12, de autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), ao qual foram anexados outros 47 projetos.

O desarmamento é combatido pela Bancada da Bala – parlamentares que legislam de acordo com os interesses das indústrias de armas e militam pelo porte de armas por civis. Entre os mais atuantes estão o deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), capitão da reserva do Exército, e Alberto Fraga (DEM-DF), coronel reformado da Polícia Militar, além do próprio autor do PL. Mas, também fazem parte da bancada os gaúchos Onyx Lorenzoni (DEM), Pompeo de Mattos (PDT), Alceu Moreira (PMDB) e Jerônimo Goergen (PP).

Se aprovado, o PL acaba com o Estatuto do Desarmamento e facilita o acesso às armas de fogo pela população. Entre outras mudanças, o PL possibilita que qualquer cidadão que cumpra os requisitos básicos tenha o direito de comprar e portar armas de fogo – hoje é preciso comprovar a necessidade –; reduz a idade mínima para a compra de armas de 25 para 21 anos; acaba com os impedimentos para que pessoas que respondam a inquérito policial ou a processo criminal possam comprar ou portar arma de fogo e garante o porte para autoridades.

Foto: Igor Sperotto

Na falta de diálogo coletivo sobre desigualdades, surgem os justiceiros, sintetiza o sociólogo e especialista em segurança Marcos Rolim

Foto: Igor Sperotto

Em março, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) apresentou requerimento à Mesa da Câmara solicitando a votação da proposta em regime de urgência. Além disso, portarias e decretos do governo de Michel Temer flexibilizam regras que envolvem o controle das armas de fogo, como a ampliação, de três para dez anos, do prazo para a renovação do atestado de capacidade técnica, e a permissão para que sócios de clubes de tiro – há 90 mil cadastrados no Exército – possam transportar suas armas já carregadas até os locais de treinamento.

No plano local, iniciativas de parlamentares gaúchos e de setores da sociedade civil organizada buscam apoiar as propostas da Bancada da Bala no Congresso. É o caso, por exemplo, do movimento Armas pela Vida,  que originou o protocolo de criação de frente parlamentar homônima na Câmara de Porto Alegre, assinado pelos vereadores Valter Nagelstein (PMDB), Pablo Mendes Ribeiro (PMDB), Comandante Nádia (PMDB), Mônica Leal (PP), Felipe Camozzato (Novo) e pelo Professor Wambert Di Lorenzo (Pros), em apoio ao PL 3722/12. “Não defendemos o uso indiscriminado de arma, mas que dentro dessa possibilidade haja exame psicotécnico e todo um procedimento que irão garantir que a pessoa tenha condições e equilíbrio para poder portar sua arma”, justifica Nagelstein. Na Assembleia gaúcha, foi protocolado em março pedido de criação da mesma frente, de autoria do deputado Edu Olivera (PSD), com apoio do deputado Marcel Van Hattem (PP).

ARMADOS E PERIGOSOS – Também há ações isoladas de cidadãos, como ocorreu recentemente na Avenida André da Rocha, no centro de Porto Alegre, cujos postes passaram a ostentar cartazes alertando que ali havia moradores “prontos para atirar em bandidos”. Porém, o resultado mais alarmante desse cenário são as reações armadas que atingem pessoas inocentes, a exemplo de Maria Eulália Mendes Pacheco, 78 anos, que foi morta dentro da própria casa ao acordar de madrugada para ir ao banheiro e ser confundida com um assaltante pelo marido.

Quem defende o uso de armas de fogo pelos chamados “cidadãos de bem”, geralmente evoca o direito à defesa, à proteção de seus entes e propriedades e a suposta segurança na sociedade que resultaria do fato de haver pessoas armadas dispostas a reagir quando necessário.

O professor de Sociologia Alex Niche Teixeira, do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da Ufrgs, lembra que quando se trata de homicídio por arma de fogo, “boa parcela resulta da dinâmica do tráfico, mas entre 30% e 40% é o velho homicídio das relações interpessoais”, ocorrências que tendem a se tornar mais constantes na medida em que as armas de fogo passam a estar mais presentes. Um exemplo pode ser verificado no Mapa da Violência 2015, que mostra que 48% dos homicídios de mulheres em 2013 foram perpetrados por armas de fogo, dos quais 27% cometidos na casa da vítima. Ao todo, 4.762 mulheres foram assassinadas naquele ano. “Os governos e parlamentares adotaram esse tipo de postura populista, esse discurso personalístico, é superperigoso, porque é uma chancela: ‘não conseguimos pagar os policiais em dia, não temos uma política de segurança, então, façam o que quiserem’”, pondera.

Segundo Marcos Rolim, jornalista e sociólogo especialista em Segurança Pública, “é evidente que enfrentamos uma crise muito grave na disseminação de atos de violência; mas, enquanto estes atos estavam na periferia, não implicavam medo na opinião pública. Na medida em que essas fronteiras foram ultrapassadas, o crime foi sendo despejado no colo da classe média, que passou a vivenciar experiências de violência e a se alarmar com a situação”.

Rolim também alerta para a dinâmica social que a sensação de insegurança pode produzir. O medo reduz a ocupação dos espaços públicos, que ficam mais vulneráveis à criminalidade, e também leva à migração de bairros mais violentos, o que influencia no aumento do desemprego e da degradação local. “Cria-se um círculo vicioso: cada vez mais pessoas com um pouco mais de recursos, muitas delas empreendedoras, saem dessas regiões, aumentando o desemprego, reduzindo o valor dos imóveis, e são atraídas para essas regiões pessoas com maior carência e vulnerabilidade social, e assim vai se reforçando essa espiral de exclusão e violência”, explica.

Alex Niche Teixeira explica que na área da segurança pública “não se tem conseguido estabelecer uma lógica de Estado, estamos sempre a reboque de governos, com idas e vindas, avanços e recuos”, como ocorreu com o Estatuto, o Pronasci e outras medidas que acabaram não tendo os desdobramentos e a continuidade necessários.

De acordo com o sociólogo do Grupo de Pesquisa Violência e Cidadania da Ufrgs, enquanto não houver o reforço das instâncias coletivas atuando junto com a autoridade pública em torno de uma política transversal focada na segurança pública, “vamos continuar vivendo nesse universo dos cartazes e das tentativas de solução personalísticas”. Para o pesquisador, a sociedade somente conseguirá superar o preconceito e a segregação dialogando coletivamente sobre as desigualdades. “Sim, o bairro mais rico precisa de policiamento, mas os mais pobres também precisam de policiamento, de postos de saúde, de professor, e de escola com segurança”, aponta Teixeira.

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