Nem memória, nem verdade, nem justiça
A divulgação dos relatórios concluídos pela Comissão da Verdade e as indenizações referentes ao período da Ditadura Militar foram escanteados pelo governo Temer, já no dia seguinte à sua posse. Projetos que vinham sendo desenvolvidos há anos foram interrompidos e nomes pouco identificados com o tema foram indicados para os cargos
Um dia depois que Michel Temer assumiu a presidência da República, quando o ministro Alexandre de Moraes se tornou interino no Ministério da Justiça, sete dos 22 conselheiros da Comissão de Anistia foram afastados. Outros saíram por não concordarem com a maneira como houve a troca do comando do país. Após Temer assumir, foram empossados novos 20 conselheiros, mas, destes, nenhum era reconhecido por compromisso com a pauta dos direitos humanos. “O fato é que a comissão está praticamente parada. Todos os projetos de memória que vinham se desenvolvendo há anos foram praticamente paralisados e sem sinalização de continuidade”, ressalta José Carlos Moreira da Silva Filho, que atuou durante quase dez anos como conselheiro da Comissão da Anistia antes de ser afastado.
Criada para “reparar moral e economicamente as vítimas de atos de exceção, arbítrio e violações aos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988”, a Comissão da Anistia e as Comissões da Verdade, que trabalharam para recuperar essa memória, correm sérios riscos. “Os anistiados não estão tendo suas portarias assinadas. Muitos estão com idade avançada, com doenças até de sequelas das torturas que sofreram, e não têm acesso à reparação. E outros não têm o processo apreciado porque a comissão não está funcionando”, denuncia Moreira da Silva Filho, que é professor da Escola de Direito da PUCRS e do Pós-Graduação em Ciências Criminais. Antes da ruptura institucional em 2016 com a deposição da presidente Dilma Rousseff, a Comissão estava também construindo políticas de memória.
O projeto Caravanas da Anistia ia aos estados e, em espaços públicos, ouvia o testemunho de pessoas perseguidas. Ao final, o presidente da Comissão pedia desculpas em nome do Estado pelo mal que praticou. O Marcas da Memória financia projetos da sociedade civil, como filmes e publicações. As Clínicas do Testemunho propiciam reparação psíquica, com atendimento psicológico a vítimas do Estado durante a ditadura. O projeto acontece por edital para sociedades psicanalíticas. O edital atual foi fechado antes de Temer assumir e se encerra em 2017. Ainda não foi lançado novo edital.
Foto: Reprodução
“Houve uma perda de autonomia por parte do conselho. Há uma crescente ingerência de órgãos de assessoramento jurídico do Ministério da Justiça nos pedidos de anistia e reparação e na análise do mérito se houve perseguição política, assunto que, por lei, é de competência exclusiva da Comissão de Anistia”, diz o professor. Ele observa ainda a falta de apoio à Comissão de Mortos e Desaparecidos por parte do governo atual. Para dar andamento aos trabalhos, a Comissão de Mortos e Desaparecidos e as Clínicas do Testemunho buscam financiamentos alternativos, como emendas parlamentares e apoio de ONGs internacionais.
Difícil é saber se serão cumpridas todas recomendações a que chegou a Comissão Nacional da Verdade (CNV) criada em 2011 para “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas, para efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. Assim como as demais Comissões e Comitês que se multiplicaram no país, a CNV recomendou a continuidade de ações educacionais, a inauguração de espaços de memória e a identificação dos mortos e desaparecidos. Em plena era digital, no Rio Grande do Sul os documentos da Comissão Estadual da Verdade que estavam disponíveis na internet na página da Casa Civil foram retirados do ar em fevereiro de 2016, sob alegação de alto custo de manutenção. Para consultá-los, é preciso ir ao Arquivo Público em Porto Alegre. O acervo da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro não foi entregue ainda ao Arquivo Público, que ficou fechado três meses por falta de luz. A previsão é de que seria entregue em agosto.
Na crise política, econômica e de governabilidade atual, as recomendações deveriam ser prioridade, diz Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada que coordenou a CNV. “Os mais desprotegidos e violentados são a população que vive em favelas ou áreas periféricas, que ocupa as ruas, as centenas de pobres e negros presos em prisões superlotadas e os trabalhadores desempregados ou sem trabalho”, afirma. As recomendações de criação de mecanismos de combate à tortura se aplicam também às “batidas”, prisões e encarceramento como forma de tortura, salienta. Ela ressalta a importância da promoção de direitos humanos e dos valores democráticos na educação, inclusive para policiais e militares.
ANISTIA – O ministro da Justiça Torquato Jardim, que assumiu em maio, determinou que a consultoria jurídica do ministério avalie as decisões da Comissão de Anistia. Este órgão é responsável por determinar a concessão ou não de anistia e reparação material às vítimas da ditadura. Integrante da Comissão até 2013, o advogado Egmar OIiveira declarou que medida é uma violação à autonomia da Comissão.
Professores têm direito e obrigação de se informar para formar
Foto: Agência Brasil
Exercício para sala de aula: quem era quem na ditadura? E hoje, onde estão estas pessoas? As empreiteiras naqueles tempos pagavam propina para os militares? Durante os anos de censura, sem internet, como a população se informava? Personagens, mecanismos de manipulação da informação e formas de corrupção, depois de mais de 30 anos do fim do período ditatorial no Brasil, estão presentes no Congresso, nos governos, nos meios de comunicação, nas empresas. Mas é mais comum alguém saber que na Argentina a ditadura deixou 30 mil desaparecidos, do que o que se passou no Brasil.
Além da visibilidade das Madres de Plaza de Mayo – as mães de desaparecidos argentinos que se reúnem em frente ao palácio do governo para exigir uma resposta sobre o paradeiro de filhos e filhas –, uma visita à ex-Escola de Mecânica da Armada (Esma), em Buenos Aires, que foi um centro clandestino de tortura e hoje abriga espaços de memória e direitos humanos, é uma aula e um libelo contra o autoritarismo e a violência. No Brasil, apesar de famílias seguirem na batalha para identificarem e sepultarem seus desaparecidos, o tema não chega aos meios de comunicação, como se a dor pudesse ser silenciada.
O Memorial da Anistia Política em Belo Horizonte (MG) está quase pronto, mas depende de verba para finalização. Um dos poucos espaços permanentes é o Memorial da Resistência de São Paulo, prédio tombado do Departamento Estadual de Ordem Política e Social, que foi palco de atrocidades na ditadura. Em Porto Alegre, o Comitê Carlos de Ré da Verdade e da Justiça luta pela instituição de um espaço de memória no Dopinha, onde funcionou um centro de tortura, na Rua Santo Antônio. O prédio sequer foi tombado. No Rio de Janeiro, a “Casa da Morte”, em Petrópolis, foi desapropriada para virar museu, mas até julho de 2017 não havia sido liberada a verba de desapropriação.
Seguindo as recomendações do Programa Nacional de Direitos Humanos, a Prefeitura de SP na gestão 2013-2016 criou a Coordenação de Políticas pelo Direito à Memória e à Verdade. A ex-coordenadora, Carla Borges, vê com preocupação a continuidade de projetos. “Houve cortes no orçamento. Além disso, há retrocessos, como a nomeação de um viaduto em homenagem ao diretor do Dops, um dos maiores centros de tortura”, lembra Carla, que é coordenadora de projetos do Instituto Vladimir Herzog. Uma das frentes prioritárias da Coordenação era a retomada da identificação das mais de mil ossadas encontradas nos anos 1990 no Cemitério de Perus. “Até o momento o orçamento para esse Grupo de Trabalho não foi repassado”. Há também o projeto Rua de Memória, que alterou o nome do Minhocão de Costa e Silva para Presidente João Goulart, e o projeto Conhecer para não Repetir, que permitiu a 6 mil professores da rede municipal receberem formação e o Kit Direito à Memória e à Verdade com livros, filmes e material didático.
Entre outras ações, no Rio de Janeiro, a Coordenadoria Estadual por Memória e Verdade fez um curso de extensão para professores em parceria com a Universidade Federal Rural e Fluminense em Cachoeira de Macacu, onde houve maior número de desaparecimentos e mortes de trabalhadores rurais durante a ditadura. “Estamos organizando iniciativas com parceiros da sociedade civil para solucionar a falta de pessoal e financiamento”, explica o professor Lucas Pedretti, assessor da Coordenadoria. “Quanto mais eu vejo as pessoas pedindo a volta do regime militar, mais me convenço de que é preciso conscientização sobre os mecanismos que poderes autoritários utilizam. Só conhecendo a fundo o que aconteceu se tem condições de impedir que as atrocidades se repitam”, argumenta Carla.
Jair Krischke ameaçado por direitistas uruguaios
Aos 79 anos de idade a serem completados em outubro, dos quais mais de 50 na luta por direitos humanos, Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, com sede em Porto Alegre, recebeu escolta da polícia e proteção da embaixada brasileira em Montevideo, Uruguai, em junho. Krischke foi prestigiar o lançamento do livro Operação Condor do jornalista Luiz Cláudio Cunha, em castelhano.
Krischke foi incluído em uma lista de 13 ameaçados de morte por ex-militares uruguaios do chamado Comando Barneix. Entre os ameaçados estão o ministro da Defesa Jorge Menéndez, advogados de famílias de mortos e desaparecidos e outros defensores de direitos humanos. No e-mail que veio a público em fevereiro de 2016, integrantes do Comando referem o suicídio do general Pedro Barneix que, acusado pela morte de pessoas na ditadura no Uruguai, se matou antes de ser preso. “Por cada suicídio mais, alguém da lista vai morrer” era o recado. “Quer dizer, nenhum processo mais. São 302 processos em andamento no Uruguai contra militares que torturaram e mataram durante a ditadura”, observa Krischke.
A indiferença do governo uruguaio frente à ameaça fez com que Krischke, a diretora do Institución Nacional de Derechos Humanos y Defensoria del Pueblo, Mirtha Guianze – que atuou em uma série de condenações de militares –, a pesquisadora italiana Francesca Lessa, também ameaçadas, e integrantes do Observatório Luz Ibarburu denunciassem o caso em maio, na 162ª Sessão Extraordinária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em Buenos Aires. Durante as audiências, a sociedade civil apresenta denúncias frente a representantes do Estado denunciado. O governo uruguaio não mandou representantes.
“O Comando Barneix significa que existem pessoas organizadas com o mesmo pensamento da ditadura, e não há investigação por parte do Estado. É uma tentativa de intimidação”, disse Mirtha. “Não se pode menosprezar essas pessoas. Mesmo tendo militares presos”, acredita Krischke. O mais grave, a seu ver, é a passividade do governo diante das ameaças. Não foi a Justiça, mas Mirtha quem conseguiu identificar a origem do e-mail: um computador nos Estados Unidos. Investigações paralelas indicam que o caso pode ter relações com grupos neonazistas. “No Uruguai, há democracia, mas ainda há situações soterradas. Trabalhar a verdade e a memória é importante para buscar Justiça. O que se sofreu no passado marca hoje a sociedade como um todo, com impunidade e violência”, afirma Mirtha.