Menos comida na mesa
Foto: Igor Sperotto
Enquanto promove a anistia de dívidas bilionárias do agronegócio e não esconde sua cumplicidade com os interesses do latifúndio, o governo de Michel Temer asfixia a agricultura familiar, cortando verbas dos programas de incentivo, da assistência técnica e da reforma agrária. A proposta orçamentária que o governo acaba de enviar para o Congresso – e que deverá ser aprovada sem dificuldades, já que grande parte dos parlamentares está a serviço do agronegócio – determina cortes de até 99,8% dos recursos das ações estruturantes para os pequenos produtores. Além de sufocar a agricultura familiar, os cortes de verbas decretam a extinção de programas sociais ligados à produção e acesso aos alimentos e condenam milhares de famílias à miséria e à fome.
Rio Grande do Sul vivem 13,5 mil famílias em 327 assentamentos de reforma agrária. Nesse ambiente, agricultores e agricultoras vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) conquistaram números gigantes na safra 2016/2017 – como a histórica colheita de 400 mil sacas da maior produção de arroz orgânico da América Latina. Ou 120 milhões de litros de leite. Resultados como esses, porém, são o alvo da Proposta de Lei Orçamentária Anual 2018 (Ploa) encaminhada ao Congresso Nacional, que prevê cortes de até 99,8% relacionados a ações estruturantes para a agricultura familiar, quando comparadas as dotações de 2015 às do próximo ano.
Foto: Marcos Corrêa/PR
Mas não precisa esperar 2018. Os estragos já começaram. Em 15 de setembro, em Porto Alegre, por exemplo, o superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), André Bessow, comunicou a suspensão por tempo indeterminado de todos os contratos de assistência técnica a assentados no Rio Grande do Sul. Sem aviso prévio. Na lista está inclusive a tradicionalíssima e pública Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).
A assistência técnica é importante para quase tudo – não só para o plantio, mas envolve elaboração de projetos importantes para a sobrevivência da agricultura familiar. A cooperativa de técnicos do MST estava trabalhando com um orçamento de quase R$ 5 milhões para este ano e pleiteava mais R$ 2 milhões, quando soube que tudo o que tinha para receber em 2017 já fora pago. O Incra já não tem mais recursos para honrar os compromissos. O presidente da Cooperativa de Trabalho em Serviços Técnicos (Coptec), Arnaldo Delatorre, informa que o Incra não repassa os pagamentos por assistência técnica desde fevereiro. A dívida com a cooperativa já soma mais de R$ 1 milhão.
O sumiço das cestas básicas
No estado, as políticas do governo Michel Temer também já fizeram desaparecer frutas, hortaliças, morangas, aipins da mesa de quase 230 mil pessoas extremamente pobres que matavam a fome com cestas básicas do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), nos últimos sete anos.
“Os ataques à agricultura familiar não são de hoje. Vêm acontecendo desde que o golpe se instalou no país, antes ainda do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, quando ela já não governava mais o país”, explica Arnaldo Borges, coordenador de Hortas do MST na regional do município de Nova Santa Rita, área metropolitana da capital gaúcha, onde o PAA chegou a alimentar 2 mil pessoas, com envolvimento de 130 a 150 famílias produtoras. “Operamos projetos locais no total de R$ 700 mil, e esse valor agora será destinado a produtores de todo o Brasil”, relata. Esse total refere-se a três modalidades do programa; essa que contribui com segurança alimentar e se denomina Doação Simultânea, e outras denominadas Aquisição de Sementes e Compras Diretas.
A oferta gratuita de alimentos atraía 150 pessoas que formavam fila, uma vez por mês, na frente da Paróquia Santa Rita. Entre elas, famílias que vivem nas margens do Caí e Sinos, em moradias de alto risco, que frequentemente são atingidas pelas cheias dos rios. “Todos esperavam os alimentos fresquinhos, produzidos sem veneno aqui mesmo na cidade. Tinha milho, melancia, caixas de bergamotas, laranja, frutas que as famílias não sabiam nem mesmo comer, de tão pobres que são”, conta Isoldi Maria Steffen Theisen, responsável por Projetos Sociais da paróquia. Ela diz que o público-alvo era cadastrado pela Pastoral da Criança, que além de receber comida, roupas, informações sobre políticas públicas, oportunidades de frequentar cursos de inclusão econômica, também tinham filhos de zero a seis anos com pesagem e nutrição monitoradas regularmente.
A proposta encaminhada pelo presidente ao Congresso Nacional propõe R$ 750 mil para operar o PAA em todo o Brasil, incluindo as três modalidades. Esse valor era de R$ 609 milhões em 2015; uma redução de 99,8%, segundo estudos que foram realizados pelos assessores técnicos do Núcleo Agrário da Liderança do PT na Câmara dos Deputados, João Intini e Gerson Teixeira. Os dados do Ploa são do Projeto de Lei do Congresso Nacional PLN nº 20 de 2017, e os dados de dotações atuais são das Loas e foram extraídos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão.
Segundo a análise de Intini e Teixeira, os cortes no orçamento do Incra para obtenção de terras para a reforma agrária cairão 86,7%, em um tombo de R$ 800 milhões em 2015 para R$ 34 milhões a serem destinados no próximo ano. Entre 2017 e 2018, os recursos para assistência técnica rural destinada à reforma agrária serão enxugados de R$ 85,4 milhões para R$ 12,6 milhões, o que significam 85,2% a menos de recursos. Nos últimos anos do governo Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016, esses valores corresponderam a R$ 355,4 milhões e R$ 199,6 milhões respectivamente.
Foto: Igor Sperotto
Para a infraestrutura de desenvolvimento dos assentamentos no Brasil, os recursos passarão de R$ 242,5 milhões em 2017 para R$ 75,3 milhões em 2018, correspondendo a 69% de redução. Em 2015 e 2016, os valores destinados à infraestrutura dos assentamentos foram de R$ 261,9 milhões e R$ 168,2 milhões, respectivamente. A promoção da educação no campo, nos quesitos que ficavam a cargo do Incra, passará de R$ 14,8 milhões para R$ 2 milhões, entre 2017 e 2018, o que representa diminuição de 86,1%. O orçamento previsto para o reconhecimento e indenização de territórios quilombolas sofrerá corte de 62,5% em igual período.
Fatos evidenciam que as questões não se relacionam à falta de dinheiro. Em dezembro do ano passado, o relatório Terrenos da desigualdade: terra, agricultura e desigualdade no Brasil rural, publicado pela Oxam, instituição presente em 94 países e vinculada à Universidade de Oxford, do Reino Unido, mostrou que 4.013 pessoas físicas e jurídicas detentoras de terras devem R$ 906 bilhões à União. A dívida é maior do que o Produto Interno Bruto (PIB) de 26 estados. Mas serve de boa barganha. Afinal, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) ofereceu metade dos votos que derrubou a presidente Dilma Rousseff (50%) no ano passado, e deu mais da metade dos votos (51%) para manter no poder o presidente mais malquisto da história nacional, denunciado por esquema de corrupção.
Foto: Igor Sperotto
Cooperativas agrícolas estão ameaçadas
Joice Sarmento dos Santos, 51 anos, é um histórico do MST. Suas lições foram aprendidas com as experiências do mais emblemático grupo do Rio Grande do Sul, aquele do acampamento Encruzilhada Natalino, que entre 1980 e 1983 resistiu contra operações policiais militares da ditadura, em Ronda Alta, e ficou conhecido no país como um dos marcos da retomada da luta pela reforma agrária no Brasil. Foi lá no noroeste gaúcho que ele conheceu o movimento dos trabalhadores rurais, e decidiu: “quero fazer parte disso”. Viveu sete anos em Nonoai, na costa do Uruguai. Depois morou em São Gabriel, onde “desenhei lotes com o Incra” e chegou a ter grande produção. “A Solange, minha mulher, cuidava de uma horta de um hectare e meio (15 mil m²)”, ilustra.
Muita luta e sete despejos o tornaram assentado em 2010. “Sou crioulo de Nova Santa Rita”, diz, referindo-se ao município onde vive hoje. Joice e Solange fizeram brotar fartura da terra, tudo com muito cuidado e nenhum veneno. De 4 hectares, tiraram anualmente inclusive 800 sacos do arroz orgânico que contribuíram com a safra histórica do MST. Um dos segredos do sucesso foram os anos de aquisições feitas pelo governo federal, por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que entregava os alimentos para as famílias extremamente pobres cadastradas.
Foto: Igor Sperotto
O PAA foi criado em 2003, reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e levado a países africanos por sua eficiência no combate à fome e fortalecimento de cadeias produtivas. No ano em que Joice foi assentado na região Metropolitana de Porto Alegre, a modalidade Doação Simultânea teve no Rio Grande do Sul R$ 16 milhões assegurados. O valor foi reduzido a apenas R$ 1 milhão em 2017, o que na prática significa a extinção do programa.
“O produtor pobre não sobrevive sozinho. Até agora tivemos sucesso na agricultura familiar porque somos um conjunto. O meu arroz é fruto de políticas públicas”, afirma Joice. Ele mostra as garrafinhas de suco e os potinhos da geleia produzidos pela agroindústria do MST em Nova Santa Rita. “Eu não produzo amora, mas nós somos a cooperativa. Cada um é a cooperativa. Se esta conjuntura está se quebrando, eu estou morto”.
Acabou a merenda
Outro forte impacto que será sentido no campo será a falta na execução do Programa Nacional e Alimentação Escolar (PNAE). Aí, o problema não está no orçamento, mas na forma de aquisição. Em 2009, a Lei nº 11.947 passou a determinar que 30% das compras feitas para abastecer as cantinas das escolas devem ser feitas na agricultura familiar. Muitos municípios já deixaram de cumprir a lei. O prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), decidiu mudar os critérios e excluiu famílias agricultoras gaúchas de seus fornecedores. Desde 2013, o MST-RS vendeu 4.835 toneladas de arroz orgânico para a Prefeitura de São Paulo, via PNAE. A decisão de suspender as compras é estúpida. Alimentos provenientes dessa fonte são puros. Não têm venenos. E representam saúde para ampla população: uma rede inteira de estudantes e de famílias produtoras.
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