MOVIMENTO

A Justiça politizada

Por Flavia Bemfica / Publicado em 8 de maio de 2018
Ativismo judicial: criminalistas discutem se é aceitável a mais alta Corte do país alterar uma garantia prevista na Constituição e no Código de Processo Penal

Foto: Carlos Moura/ SCO/ STF

Ativismo judicial: criminalistas discutem se é aceitável a mais alta Corte do país alterar uma garantia prevista na Constituição e no Código de Processo Penal

Foto: Carlos Moura/ SCO/ STF

Ao adotar uma agenda de moralização do país, o sistema judicial vem interferindo em questões políticas, avançando sobre os demais poderes e, até, se permitindo confrontar a Constituição. Em meio à crise de valores que toma o país, a operação Lava Jato expõe um Judiciário onde os papeis de acusador e julgador se confundem, o ativismo judicial e o populismo penal ganham força, e o conceito do lawfare já chama a atenção de juristas e pesquisadores

Ativismo judicial, judicialização da política, lawfare. Até há pouco tempo, os termos, todos referentes à supremacia crescente do poder Judiciário, suas consequências e a relação de tudo com o debate sobre a democracia, ficavam restritos aos círculos jurídicos e acadêmicos. A intensificação de movimentos de grupos sociais específicos, o politicamente correto e a invasão das redes sociais aumentaram sua visibilidade. Mas, no Brasil, o debate só ganhou de vez os holofotes a partir da operação Lava Jato e seus desdobramentos: no mais recente deles, a condenação e prisão do ex-presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva. No ano passado, três dos advogados que atuam na defesa do ex-presidente lançaram o Lawfare Institute. Em tese, uma instituição com o objetivo de levar a cabo pesquisas multidisciplinares sobre direito, diagnosticar e informar casos de lawfare (a instrumentalização da lei com fins políticos) em todo o mundo. Na prática, por enquanto,  um movimento na estratégia da defesa de Lula, no qual a discussão sobre o seu caso está no centro dos debates.Como vem ocorrendo de forma disseminada, as discussões sobre como o Judiciário passou a pautar a agenda política, a caracterização de ações como lawfare, ativismo judicial e populismo penal também se polarizaram. De um lado, os que apontam métodos da Lava Jato, o impeachment, a profusão de processos contra Lula e outras ações como casos de lawfare. De outro, os que acusam os primeiros de tentarem acabar com a Lava Jato e o combate à corrupção. O debate, contudo, é muito mais complexo. “Todas as definições pressupõem critérios. É preciso definir o que se quer conceituar. E os conceitos também funcionam até um determinado ponto. A partir dele, precisam ser colocados à prova. Por tudo isso, entendo que a definição de ativismo judicial pode ser aplicada à realidade brasileira, enquanto o termo lawfare depende de um pouco mais de cautela”, resume o criminalista e professor da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS (FMP), Norberto Flach.

Midiáticos: o juiz federal Sérgio Moro, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e o procurador Deltan Dallagnol, aquele do power point, na palestra "Democracia, Corrupção e Justiça", no UniCeub

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Midiáticos: o juiz federal Sérgio Moro, o ministro do STF, Luís Roberto Barroso, e o procurador Deltan Dallagnol, aquele do power point, na palestra “Democracia, Corrupção e Justiça”, no UniCeubNo âmbito da Lava Jato, alguns eventos ganharam visibilidade e aumentaram a polêmica sobre os avanços do Judiciário e suas consequências sobre a democracia. Como a apresentação do procurador Deltan Dallagnol para a imprensa, em 2016, de um PowerPoint apontando Lula como maestro de uma orquestra para saquear os cofres públicos e chefe da ‘propinocracia’, mas após a qual o petista não foi denunciado por formação de quadrilha. Ou a sentença do juiz Sérgio Moro, titular da 13ª Vara Federal em Curitiba, por “fatos indeterminados”. Ou a didática do voto do desembargador Victor Laus no julgamento de Lula na 8ª Turma do TRF4. “Se tenho um computador na minha frente, se há um texto ali, e se eu estou lendo um texto, é natural se intuir que estou lendo o texto que está na tela”, concluiu.

No centro dos debates estão questões caras ao Direito, como a importância da diferenciação entre provas e indícios, os limites entre fatos, deduções e convicções, a organização de eventos e o uso das redes sociais para divulgar investigações e elementos dos processos e a importância da influência sobre a opinião pública. De novo, no rumoroso caso Lula, por exemplo, apesar de entre criminalistas predominar o entendimento de que, na sentença de Moro, os chamados ‘saltos lógicos’ preencheram fragilidades como a inexistência de provas, ligando a reforma no apartamento aos contratos da OAS com a Petrobras, para fatias expressivas da população a discussão sobre a força das provas não é a mais relevante.

O fato de Moro não barrar sua constante caracterização como adversário ou opositor do ex-presidente e ações como a divulgação de gravações não autorizadas judicialmente de conversas telefônicas entre Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), posteriormente anuladas como prova, alimentam os questionamentos sobre a imparcialidade da operação, do Judiciário e do MP. No último dia 24 de abril, dois anos após apresentada a denúncia, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) começou a julgar o processo que apura se o juiz, com as gravações e sua revelação, cometeu crimes contra a Constituição.

“O Ministério Público não é pura e simplesmente um acusador que deve a qualquer custo condenar o acusado e sem possuir o acervo probatório para tanto. Ele é um defensor da ordem jurídica e da ordem democrática, conforme disposto na Constituição. É importante ter clareza de que a Lava Jato é uma operação criada pela Polícia Federal e com a qual concordou parte da Receita Federal e do MP. O Judiciário é o destinatário da produção da Lava Jato. Deveria, portanto, receber esta produção de forma imparcial e atuar para corrigir erros ao invés de apresentar a operação como uma panaceia que ela nunca vai ser”, assinala o professor de Direito Constitucional e coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Emilio Peluso Neder Meyer.

Mas, pelo menos desde o julgamento do Mensalão, a atuação do STF também tem deixado larga margem para a discussão sobre uma interferência do Judiciário sobre os outros poderes, a política, a prática do ativismo judicial e a ameaça do uso crescente de medidas de exceção. No final de 2015, o STF determinou a prisão do então senador Delcídio Amaral (PT/MS), que exercia o mandato. Em 2016, em decisão comemorada por aliados e adversários do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), a Corte estipulou o afastamento do deputado do mandato e, por consequência, do cargo. O então ministro relator da Lava Jato no STF, Teori Zavascki, que adotou a medida endossada na sequência pelo Pleno, ressalvou que o afastamento não estava especificamente previsto na Constituição, mas que decidia “uma situação extraordinária, excepcional e, por isso, pontual e individualizada”.

A ministra Rosa Weber, que condenou José Dirceu sem provas, mas com base na “literatura jurídica” e votou contra o habeas corpus de Lula, abrindo mão de sua posição para acompanhar a maioria

Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

A ministra Rosa Weber, que condenou José Dirceu sem provas, mas com base na “literatura jurídica” e votou contra o habeas corpus de Lula, abrindo mão de sua posição para acompanhar a maioria dos ministros do STF

Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Em outubro do mesmo ano, o ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar determinando o afastamento do cargo do então presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB/AL), que acabou revogada. Em setembro passado, a 1ª Turma do STF designou o afastamento do senador Aécio Neves (PSDB/MG) do cargo e seu recolhimento noturno. A polêmica sobre os casos fez com que, em outubro, o Supremo decidisse, em uma votação apertada (seis votos a cinco), que o afastamento de parlamentares de suas funções só poderia acontecer com aval da Câmara ou do Senado. Agora, na polêmica mais recente, o STF reluta em tratar em definitivo sobre a prisão após condenação em segunda instância, um tema cujos desdobramentos se estendem para muito além do caso Lula ou da esfera política. Nesse caso, entre criminalistas, também se discute se podem ser apontadas como lawfare as negativas da presidente do Supremo, ministra Carmen Lúcia, em incluir a prisão em segunda instância na pauta de julgamentos. Ou se caracteriza ativismo judicial a mais alta Corte do país entender que pode alterar uma garantia prevista na Constituição e no Código de Processo Penal.

Em entrevista recente ao jornal El País, Eloísa Machado de Almeida, uma das coordenadoras do projeto Supremo em Pauta, da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destaca que, a partir do Mensalão, o Judiciário adotou uma agenda de moralização da política, encampada pela PGR e o MP, que é perniciosa ao ambiente democrático. Nela, a política é vista como algo sujo e corrupto, as ações políticas passam a ser vistas como ruins e a via da política é substituída pelas figuras dos ‘heróis do Judiciário’.  Em resumo, a coordenadora alerta para o risco de o Judiciário decidir quem governa e quem pode ser eleito.

“Hoje há um protagonismo do sistema de Justiça que não existia há alguns anos. Depois da Constituição de 1988, o Judiciário, o Ministério Público e outros órgãos estão mais fortes e independentes, têm melhores salários e estruturas. Isso não é ruim. Pelo contrário: é muito importante ter um Judiciário forte. Mas o que observamos também é o Judiciário intervindo em questões políticas e decidindo contrariamente à Constituição e às leis. Quando faz isso, decide de acordo com a opção que lhe é particular, gera um decisionismo. Um juiz não pode desconsiderar a Constituição, que é parte fundamental da democracia, sob o argumento de que está fazendo justiça. Ele não tem esse poder. As intervenções cometidas pelo Judiciário precisam ser debatidas e os mecanismos limitadores desta atuação também”, elenca o professor-adjunto de Relações Internacionais e do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade do Rio Grande (Furg), Luciano Vaz Ferreira.

Quais são e como se diferenciam as distorções de comportamento do Judiciário

Ativismo Judicial: chamado de interpretação extensiva do texto constitucional e das leis, define a postura do Judiciário de interferir de forma recorrente em opções políticas dos demais poderes. Designa os casos em que juízes, por vontade própria, adotam uma interpretação ativa de leis como forma de resolver casos concretos que lhes chegam pautada mais em princípios constitucionais do que na letra dos textos legais. Inclui determinações para que outros poderes adotem ou realizem determinadas ações sem que para tanto existam previsões legais expressas, requisições prévias ou mesmo participação dos outros poderes no caso. Seus críticos argumentam que enfraquece os poderes eleitos, gera desmobilização popular e insegurança jurídica e pressupõe o chamado exclusivismo moral do Judiciário. Seus defensores argumentam que toma por base a igualdade social e a dignidade da pessoa humana.

Judicialização da Política: quando decisões políticas acabam sendo encaminhadas ao Judiciário pelos outros poderes ou por agentes políticos. Em resumo, eles encaminham para solução judicial questões que poderiam ser resolvidas internamente. O argumento para a judicialização em substituição às esferas políticas tradicionais, como o Congresso Nacional ou o Executivo, via de regra, é a grande repercussão política ou social de determinados temas. Em tese, no contexto brasileiro, a judicialização é uma circunstância decorrente do modelo constitucional, e não um exercício deliberado de vontade política, na qual o Judiciário é obrigado a se manifestar dentro de seus limites.

Lawfare: Popularizada nos anos 2000 nos Estados Unidos, a expressão foi cunhada para caracterizar o uso do Direito como alternativa aos meios militares tradicionais para alcançar objetivos estratégicos. De modo geral, passou a ser referida também como a instrumentalização da lei para finalidades políticas determinadas, com destaque para a deslegitimação, incapacitação ou eliminação de adversários por meio de táticas como a ‘destruição de reputação’. Suas características incluem a manipulação do sistema legal, a abertura de processos judiciais mediante acusações frívolas, a tentativa de influenciar a opinião pública e a incitação ao ódio.

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