Acordo ameaça comunidades quilombolas de Alcântara
Foto: Ana Mendes
“Que progresso é esse que só atende um lado?”, indaga Inácio Diniz, do Movimento dos Atingidos pela Base, que assim como as famílias de 25 comunidades, foi removido do território étnico quilombola para as agrovilas construídas pela Aeronáutica, nos anos 1980, para a construção do Centro de Lançamento de Alcântara. Agora, devido à iminência de um acordo para a exploração da base pelos norte-americanos, as comunidades revivem o pesadelo das remoções que afastaram famílias inteiras da região e as privaram do acesso ao mar, à pesca e tentaram apagar sua cultura e até a memória dos antepassados
Quilombolas de Alcântara, na região metropolitana de São Luís (MA), receberam como um petardo a notícia da visita do secretário de Defesa dos Estados Unidos, James Mattis, ao Brasil, em 13 de agosto. Um dos itens da pauta do chefe do Pentágono foi o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) para utilização do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Incrustado no coração do território étnico quilombola de Alcântara, a cerca de uma hora de barco pelo mar da capital ludovicense, a base militar de lançamento pioneira do país foi implementada durante a ditadura para a realização de experimentos inovadores e lançamentos de engenhos aeroespaciais, mas teve como resultado forte impacto no cotidiano de populações que revivem agora o pânico de serem mais uma vez arrancadas de suas casas e de suas vidas tradicionais.
A proposta de um acordo com os EUA não é nova. O Projeto de Decreto Legislativo 1.446-A/2001, que normatizava o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) foi barrado, em 2001, no Congresso Nacional, sob a justificativa de que as exigências norte-americanas de proteção de propriedade intelectual feriam a soberania nacional. O Brasil teve, então, que buscar outro parceiro. Em 2003 fechou cooperação com a Ucrânia e fundou a pessoa jurídica binacional Alcântara Cyclone Space (ACS) para administrar o que viria a ser a primeira base comercial de lançamentos do país, entretanto, em 2016 a Ucrânia entrou em guerra e não pode cumprir com a sua parte. O que acarretou em, ao menos, meio bilhão de reais em dívidas ao Tesouro Nacional. Em nota publicada em maio deste ano, a Agência Espacial Brasileira (AEB) defende o AST a ser assinado com os norte-americanos afirmando que “a assinatura de um acordo de salvaguardas pelo Brasil com outro país significa apenas que o Brasil reitera seu compromisso de proteger a propriedade intelectual de terceiros, assim como exige que outros países respeitem sua propriedade intelectual”. Sob esse aspecto, reitera o comunicado, o acordo protege os interesses brasileiros. “Com o AST, os EUA terão a mesma obrigação de respeitar e proteger a propriedade intelectual de nossos equipamentos espaciais”, argumenta.
O momento é estratégico para a agenda internacional neoliberal, especialmente no Brasil do golpe, e por isso as conversações em Brasília evidentemente repercutiram não só nos quilombos, mas em toda a América Latina. A imprensa tradicional trata a notícia com toda a naturalidade diplomática. Os veículos alternativos de comunicação a refletem não como um encontro para diálogo entre países, mas como uma imposição norte-americana a uma nação vassala, para o controle da base aeroespacial. “Essa proposta de James Mattis, simplesmente para açambarcar a base para utilização comercial e controle estratégico para os Estados Unidos, confronta-se com uma proposta feita pela Agência Espacial da Rússia para o desenvolvimento tecnológico, em participação cooperativa, na base espacial de Alcântara. Ou seja, transferência de tecnologia”, afirmou o jornalista Beto Almeida, do Brasil, para a TeleSur TV.
MPF reconhece direito das famílias à terra
Foto: Ana Mendes
Para as mais de 150 comunidades quilombolas de Alcântara o aceno de novas tratativas entre os dois países reacende as tensões vividas há mais de 30 anos, quando cerca de 300 famílias de 25 localidades sofreram remoções compulsórias para a instalação do CLA. Os moradores têm medo de novos deslocamentos para dar espaço à expansão do Projeto Espacial Brasileiro, pois a Agência Espacial Brasileira, autarquia vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação (MCTIC), também tinha interesse, originalmente, em ocupar outros 12 mil hectares, além dos 8 mil já em posse da aeronáutica. Essas duas áreas somariam mais de 21 mil hectares e equivaleriam a 25% do território quilombola. O intento, entretanto, não se concretizou porque o Ministério Público Federal (MPF) interveio, em 2001, exigindo a elaboração de uma perícia antropológica para apontar precisamente a área de ocupação tradicional quilombola. O laudo, que apontou 85 mil hectares de terras pertencentes aos quilombolas, foi finalizado no mesmo ano, mas a titulação nunca aconteceu.
A demarcação das terras identificadas há mais de uma década é, portanto, uma das principais exigências dos quilombolas, pois sem a garantia da posse da área, o medo de remoções é constante, a rotina é instável, com reflexos na cultura e na tradição das comunidades. Os moradores que viveram as primeiras remoções, nos anos 1980, contam que deixar os mortos no cemitério antigo foi uma decisão difícil e não unânime. Alguns levaram os restos mortais dos parentes, outros voltavam anualmente no dia de finados para visitar os entes. Houve ainda quem em vida exigiu ser enterrado na terra onde nasceu. Maria da Glória Silva, moradora da agrovila Peru, deixou três filhos enterrados na antiga comunidade e conta que a sogra pediu para não sair da terra, mas ela morreu antes mesmo das remoções acontecerem. “Quem quis tirar os seus cadáveres que estavam lá pediu autorização na Aeronáutica e teve alguém que trouxe. Minha sogra ficou muito triste porque ela não queria ser realocada de uma comunidade pra outra. Ela adoeceu, teve um AVC, mas já tava de idade, então morreu mesmo. Mas ela disse que quando morresse não queria ser tirada de lá, que o corpo dela era pra ficar lá. Ela que não quis, por isso que nós não fizemos”, relata Maria da Glória.
GENOCÍDIO – O antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, pesquisador e professor da Universidade Estadual do Maranhão, encarregado da perícia feita ao MPF, afirma que o conflito existente em Alcântara é um tipo de genocídio que violenta os grupos sociais utilizando o tempo como arma. “Você tem duas gerações que não sabem o dia de amanhã, se vai ficar ou se vai sair, quando vai sair. Quando você rouba de uma unidade social o seu destino, o seu futuro, você provoca direta ou indiretamente uma insegurança no grupo que pode gerar a sua destruição. Então essa é uma forma genocida. Essa é a violência maior que se pode cometer contra as pessoas, roubar o futuro delas”, alerta. A morosidade em finalizar o processo de titulação reflete o atrito de interesses dentro do próprio Estado e deixa transparecer um impasse ainda sem solução, em que aparentemente a titulação da terra está condicionada à exclusão da área que ainda interessa ao Estado. De um lado há as razões geopolíticas e comerciais e, do outro, a sobrevivência física e cultural de centenas de famílias.
A notícia sobre a possível assinatura de um acordo entre Brasil e Estados Unidos ainda não chegou oficialmente aos quilombolas de Alcântara, entretanto, há a expectativa de que se cumpra ainda este ano o passo inicial da cooperação já anunciada pelo Ministro da Defesa, Joaquim Silva e Luna, conforme reportagem do jornal O Globo veiculada no dia 13 de agosto. Não é a primeira vez este ano que a base de Alcântara entra na pauta. Em junho, o vice-presidente norte-americano, Mike Pence, esteve em Alcântara. E antes dele, ainda, o próprio presidente brasileiro Michel Temer visitou a base. As assessorias da Agência Espacial Brasileira, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e dos Ministérios da Defesa e da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicação não retornaram aos pedidos de entrevistas sobre o que acontecerá em Alcântara.
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Remoções para longe do mar
Nos anos 1970, quando os militares, que integravam a já extinta Comissão Brasileira de Atividades Espaciais (Cobae), começaram a pensar no projeto a ser instalado em Alcântara, a localidade era vista apenas como um ponto estratégico no mapa, pois ficava a dois graus da linha do Equador, o que possibilitaria a entrada em órbita mais rápida dos artefatos lançados. A localização às margens do oceano Atlântico traria segurança para os lançamentos. Entretanto, Alcântara não era um vazio demográfico com características físicas ideais. Habitavam o município milhares de remanescentes de quilombos, netos de pessoas escravizadas que trabalharam nas fazendas de cana até o declínio do ciclo, no final do século 19, e que depois permaneceram nas terras. Portanto, quando os militares chegaram, essa população ocupava a região havia pelo menos um século.
Uma das estratégias adotadas pela Aeronáutica para esvaziar a área onde seria instalado o CLA foi recrutar jovens quilombolas para fazer o corpo a corpo com as comunidades no processo de convencimento para facilitar as remoções. Para isso, 30 jovens foram convidados para ir a São Paulo. “Eu, Sérvulo Borges, não sabia que ia ser militar. Eu estava indo pra fazer um curso. Mas nunca me disseram ‘tu vai ser soldado’”, conta Sérvulo Borges, um dos selecionados, hoje com 56 anos. Ele e mais 29 meninos foram incentivados pelos pais e levados para um treinamento de seis meses em São Paulo e entraram na carreira militar. “Voltamos pra casa com os valores do Sul. Farda de botão dourado, dinheiro no bolso. Aí, qual é o pai que vai ter coragem de dizer que este projeto é ruim?”, questiona Borges. “Só a partir de 1987 fui perceber que aquilo era uma furada. Dos 30 soldados, o único que teve coragem de sair e dizer que este projeto foi e é ruim, fui eu”, completa ele, uma das principais lideranças hoje na luta pelo território.
As 25 comunidades que Borges ajudou a remover, como soldado, para a instalação da base, trocaram a vida farta no Litoral por um cotidiano árido no interior do continente, nas chamadas agrovilas, construídas pela Aeronáutica. Ficaram afastados cerca de 20 quilômetros do mar, sua fonte de subsistência e renda. Inácio Silva Diniz, morador da agrovila Marudá e secretário do Movimento dos Atingidos pela Base (Mabe), tinha sete anos quando sua família foi removida. “Começamos a perceber a real dificuldade quando meu pai ia pescar e começou a faltar peixe”. O acesso à água doce antes facilitado pela proximidade de rios e igarapés também não fazia mais parte da realidade. Sem ter o que comer, alguns moradores voltavam à antiga comunidade a pé para pescar. “Já pensou você andar 4 horas de viagem? Já pensou você levar 5 quilos de sal no ombro? Para nós só é progresso se ambas as partes progredirem. Mas que progresso é esse que só atende um lado?”, indaga.