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Primeira infância ameaçada

Por Clarinha Glock / Publicado em 7 de dezembro de 2018

Foto: Igor Sperotto

Foto: Igor Sperotto

O Marco Legal da Primeira Infância completa três anos em março de 2019 sob ameaças. A lei que assegura o direito de brincar, de crianças serem cuidadas por profissionais qualificados, especialmente se estiverem em situação de vulnerabilidade, de serem prioridade nas políticas públicas, de pais e mães terem asseguradas licenças maternidade e paternidade, entre tantos outros avanços, ainda é desconhecida de boa parte da população. E corre o risco de ser gravemente infringida com o fim do Fundeb, e medidas como a redução da maioridade penal

Instituído pela Lei nº 13.257/2016, o Marco Legal da Primeira Infância permitiu aprimorar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), colocando o foco também nos cuidadores, nas mulheres encarceradas, nas gestantes adolescentes. Em seu artigo quarto, prevê que as políticas públicas devem envolver toda a sociedade para promover uma cultura de proteção e promoção da criança. “O Marco fala de direitos positivos de crianças de zero a seis anos, como evitar a subnutrição e a evasão escolar e brincar para desenvolver seu potencial cognitivo”, salientou o juiz Hugo Zaher, coordenador-adjunto da Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba durante a Oficina sobre Primeira Infância promovida pela Unesco, Rede Nacional Primeira Infância e Andi Comunicação e Direitos, com apoio do Ministério do Desenvolvimento Social e realizada em novembro no Rio de Janeiro.

Uma das bases para assegurar esses direitos é o financiamento da educação infantil. A psicóloga Viviane Fernandes Faria, secretária executiva da Rede Estadual da Primeira Infância do Piauí, observou que foi a partir da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), pela Emenda Constitucional nº 53/2006, que o governo passou a redistribuir impostos para todas as matrículas da educação básica, e não só do ensino fundamental. “Os Estados e municípios juntam o que arrecadam e o Fundo é dividido pelo número de alunos nas redes. Estados sem arrecadação suficiente têm o valor complementado pelo Governo Federal”, explicou. No entanto, a Emenda prevê que o Fundeb só se estenderá até 2020. “Duas propostas tramitam na Câmara para que o Fundeb vire lei, mas há quem defenda que a educação infantil saia do Fundo, porque onera os estados. Se já há dificuldades hoje, imagine se deixar de ser obrigatório, principalmente em alguns estados do Nordeste, onde o governo federal precisa fazer a complementação”, argumentou.

Cortes em financiamentos nas áreas de Saúde e Educação resultam em perdas: dados do Ministério da Saúde indicam que a taxa de mortalidade infantil subiu de 13,3 (em 2015) para 14 (em 2016) a cada 1.000 nascidos vivos. Entre 25% das crianças mais pobres da população, apenas 14% das crianças têm acesso à creche (Inep, 2015). A falta de atenção à Primeira Infância leva à evasão escolar, à violência, à falta de oportunidades, salientou Viviane.

Titular da 1ª Promotoria de Justiça de Infância e Juventude de São João do Meriti (RJ), a promotora de Justiça Luciana Pereira Grumbach Carvalho lembrou que a sociedade pode e deve cobrar dos gestores investimentos na Primeira Infância, participando dos Conselhos de Direitos de Crianças e Adolescentes ou acionando o Ministério Público para questionar e demandar orçamentos e políticas públicas.

Arquitetura do cérebro explica como se dá o amadurecimento

É na Primeira Infância, do nascimento aos seis anos de idade, que a arquitetura do cérebro humano começa a se formar. Estudiosos do comportamento, como Freud, Winnicott e Vygotsky, já afirmavam a importância dos primeiros anos de vida. O desenvolvimento acentuado das tecnologias a partir dos anos de 1990 possibilitou entender melhor o funcionamento do cérebro humano e comprovar que seu desenvolvimento não se dá apenas pelo código genético herdado, mas principalmente por experiências vivenciadas desde o nascimento, explicou Anna Chiesa, consultora técnica da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, criada para mobilizar lideranças, sensibilizar a sociedade, fortalecer os cuidados com as crianças e ajudar a qualificar a educação infantil. “Precisamos rever a maneira como estamos nos comunicando com as famílias para reforçar o cuidado amoroso às demandas da criança”, enfatizou Anna, porque o que acontece de negativo na Primeira Infância pode deixar marcas profundas.

O professor Fernando Mazzilli Louzada, do Departamento de Fisiologia da Universidade Federal do Paraná, coordenador do Laboratório de Cronobiologia Humana e membro da Rede Nacional de Ciência para Educação e do Núcleo Ciência pela Infância, explicou que é nos primeiros anos de vida que se formam no cérebro as sinapses – conexões entre neurônios. “As experiências – brincadeiras, por exemplo – reforçam sinapses, outras desaparecem com o tempo. Na Primeira Infância e na Adolescência o cérebro tem mais plasticidade e capacidade de aprender, podendo se modificar a partir das experiências, mas tem também mais vulnerabilidade a fatores que podem ser prejudiciais. Quando ficamos adultos, a plasticidade diminui”, observou.

Segundo Louzada, um fenômeno pelo qual passa o cérebro é a mielinização. A mielina facilita a condução dos impulsos nervosos, ou seja, o amadurecimento cerebral. “Esse fenômeno não acontece ao mesmo tempo em todas as regiões cerebrais. Nas áreas pré-frontais, responsáveis pelo controle de ações, tomada de decisões e avaliação de consequências dos atos – o que se chama de razão, se adquire mielina por volta dos 20 anos de idade. Portanto, o cérebro de uma criança e adolescente não está maduro. E esse é um argumento excelente contra a redução da maioridade penal”, concluiu.

Primeira Infância Melhor: um exemplo no RS

Experiências da primeira infância vale para toda a vida, destaca a coordenadora do Primeira Infância Melhor no RS, Gisele Silva

Foto: Clarinha Glock

Experiências da primeira infância vale para toda a vida, destaca a coordenadora
do Primeira Infância Melhor no RS, Gisele Silva

Foto: Clarinha Glock

É possível estimular o afeto e a saúde brincando. “O que você faz pelo seu filho hoje vale para toda a vida” é lema de visitadores integrantes do programa Primeira Infância Melhor (PIM), que começou em 2003 e virou Lei n.º 12.544 em 2006 no estado, tendo como referência a metodologia do projeto cubano Educa a tu Hijo. Os visitadores são da área de Educação, Saúde, Assistência Social, Justiça e Direitos Humanos, profissionais e bolsistas que orientam famílias para que promovam o desenvolvimento de crianças da gestação aos seis anos de idade. Em 15 anos, foram atendidas 200 mil famílias, 250 mil crianças, 40 mil gestantes.

O programa é uma porta de entrada para serviços da rede pública e começa antes de as crianças entrarem na escola, com visitação domiciliar a famílias em situação de risco ou vulnerabilidade, informa a coordenadora-adjunta Gisele Mariuse da Silva. Os objetivos são o desenvolvimento cognitivo, de linguagem, socioafetivo, de motricidade; o fortalecimento do vínculo familiar, e a melhoria de acesso aos serviços. Os visitadores fazem escuta de qualidade e usam o lúdico no atendimento. “O brincar desperta o que há de melhor nas pessoas: autoestima, autossuficiência. Não se fixa nas faltas, mas no potencial de cada um”, ressalta Gisele.

O PIM está presente em 50% dos municípios gaúchos e conta com incentivo financeiro do Estado aos municípios, que são responsáveis pela contratação de visitadores. Alguns municípios alegam crise econômica para a não contratação. Em 2012, o programa começou a mapear filhos de homens e mulheres que estão presos. O trabalho vai integrar uma pesquisa financiada pela Fundação Getúlio Vargas, Banco Interamericano de Desenvolvimento e Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, para acompanhar 4 mil crianças em 20 anos. “Essas crianças geralmente são negligenciadas ou abandonadas, perpetuando o ciclo de violência de pobreza”, explica Gisele.

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