Indígenas contestam Bolsonaro na Justiça
Foto: Igor Sperotto
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O movimento indígena do Rio Grande do Sul entregou nesta quarta-feira, 16 de janeiro, uma representação ao Ministério Público Federal (MPF) solicitando a anulação das medidas do governo de Jair Bolsonaro na Medida Provisória 870. Nela, o Governo Bolsonaro desloca a Fundação Nacional de Apoio ao índio (Funai) do Ministério da Justiça e Segurança Pública para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos e transfere a demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).
Centenas de indígenas das etnias Guarani e Kaingang e apoiadores da causa realizaram um ato no início da tarde em frente ao Incra e saíram em caminhada até o MPF e entregaram o pedido ao procurador da República Pedro Nicolau Moura Sacco. Ele afirmou que encaminhará com urgência o pedido à 6ª Câmara da Procuradoria-Geral da República, que trata dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais. “Vai depender do Superior Tribunal Federal. Se tivermos instituições democráticas, teremos bons resultados”, expressou ao receber toda a comitiva no térreo da instituição”.
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“Entregar esse tema ao setor econômico, que é parte contrária à demarcação das terras indígenas, dá sinais de não se cumprir o que está na Constituição Federal. Espero que as instituições bloqueiem esse movimento desastroso”, declarou o procurador. “É dever constitucional a proteção e demarcação das terras indígenas e também cumprir tratados internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho”.
“Queremos nosso território para viver do nosso jeito. Todos os dias somos atacados, ameaçados. Sangramos há 519 anos. Todos precisamos da natureza para viver. Não queremos venenos nos nossos territórios. Queremos proteger a água que todos bebemos juntos. Cabe todo mundo no nosso país. Basta não pensar só em dinheiro, não matar pela ganância”, discursou o cacique Kaingang, Odirlei Kaingang Fidelis, da aldeia Vãnka, no Lami, de Porto Alegre.
Arnildo Werá, integrante da Comissão Regional Guarani Sul, da aldeia de Itapuã, reforçou a importância da posição do MPF para cumprir a lei. “A Constituição foi escrita por brancos, e esse papel que entregamos é a resistência de nossos direitos. Hoje lutamos para não morrer. Nós não queremos nenhum bem, queremos apenas a vida e manter o futuro de nossas crianças”.
A Frente Quilombola também entregou documento ao MPF solicitando o reconhecimento dos territórios no RS.
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A mobilização nacional cresce
Mobilizações estão ocorrendo em vários estados brasileiros após o anúncio das medidas e de ataques a tiros a várias aldeias, como ocorreu na comunidade Guarani da Ponta do Arado, em Porto Alegre, no último dia 13.
“A intenção é chamar atenção da opinião pública e do MPF sobre as ilegalidades dessas medidas. Passar a demarcação para o Mapa, comandado pelo ruralismo e o agronegócio, é uma transferência de competência muito grave. É dever do Estado preservar e proteger os direitos dos indígenas”, registra o integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Roberto Liebgott.
O representante do Cimi alerta ainda que os povos indígenas não foram chamados pelo governo brasileiro para se manifestarem sobre as medidas, como prevê a Constituição. “É uma agressão administrativa que afetará a vida prática das comunidades que estarão em situação de vulnerabilidade jurídica, trazendo grande insegurança para o futuro dos povos”, acentua.
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De acordo com o representante do Cimi, as medidas são para fragilizar a Funai, constitucionalmente responsável pela demarcação, proteção e fiscalização das áreas demarcadas, mantendo-as para uso exclusivo de comunidades indígenas.
Para o indigenista, cientista Social e Mestre em Psicologia Social, João Maurício Farias, o atual governo avança nas práticas genocidas a partir do Estado. “A intenção é colocar fim aos direitos indígenas”, resume. Integrante do Observatório Indigenista, observa que se a intenção é destruir e dizimar o governo está bem assessorado, mas se havia alguma intenção de construir alguma política positiva há um grande equívoco.
De acordo com o antropólogo Walmir Pereira, do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, as manifestações devem se acentuar em todo o país e se intensificar até o “abril indígena”, quando ocorre o encontro nacional, em Brasília. Cerca de 35 mil indígenas vivem no território gaúcho, sendo 95% Kaingang, o restante do contingente Guarani e alguns remanescentes de Charrua e Xokleng.
Segundo o IBGE, há cerca de 900 mil índios no Brasil, ocupando pouco mais de 12% do território, compondo 305 etnias e falam ao menos 274 línguas, um dos países com maior diversidade sociocultural do planeta.
Causa planetária
Além de representantes de diversas organizações, dezenas de pessoas participaram do ato divulgado pelas redes sociais. “Esta causa é a mais importante de todas entre os retrocessos que estão ocorrendo, porque é planetária. Se retrocedemos, é um passo para a morte. É mais que um dever entrar nessa luta de corpo e alma”, contou emocionada a educadora Adela Bálsamo Armando, 69 anos, que veio de Gravataí e conversava com os indígenas durante todo o trajeto.
Com o rosto pintado com desenhos indígenas, a professora de arte, Taís Leite, 33 anos, de Caxias do Sul, interrompeu as férias na praia para estar no ato, informada por uma amiga. “Me identifico muito com a causa indígena porque cuidam do planeta, das águas, de todo mundo. Participar ativamente da sociedade é ser educadora. Tenho muitas inquietações com as questões do planeta. E essa é uma causa fundamental”.
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Diretora da escola indígena Nhamandu, da Zona sul de Porto Alegre, Alessandra Santos, pediu a palavra na entrega da representação ao MPF. “Eu aprendi com eles sobre a terra, a espiritualidade, a natureza. Nossa cultura deve aprender isso. Eles estão nos ajudando a proteger o planeta, a mata, o ar, a água. Estamos esquecendo que quando a mãe terra responder será tarde”, declarou.
Várias organizações sociais, como conselhos, sindicatos, associações, coletivos e outras entidades participaram da atividade. Durante todo o ato, um grupo de indígenas entoou uma canção que fala em fortalecer o coletivo para poder avançar, traduziu Láercio Karai, 25 anos, escrevendo os versos em Guarani:
Nhambobarete´i katu
Pavê´î joupive gua´i
Nhamonhendu´i katu
Mborai´i javy´a aguâ
Enquanto fumava seu cachimbo, a Guarani Talcira Gomes, 56 anos, conta que veio da aldeia Pararonké, de Rio Grande para protestar. Mas aconselha: “Temos que lutar com o coração leve, com espiritualidade. Rezo todo o dia para que não corra coisa ruim. Peço a Ñanderu esclarecimento, coragem, luz e amor. Com amor ninguém nos vence”, acredita.